Crítica da Crítica | Cênicas


Difícil começar a escrever sobre um texto cujo autor se desconhece. Sobretudo, se o texto é uma crítica e, por isso, deva trazer em si um senso de responsabilidade e de ética em relação à obra criticada e seu autor. O anonimato, desresponsabilizando o crítico, por ser desconhecido, invalida, deslegitima a escrita? Fiquei me perguntando. Aqui, refiro-me a @a_eleodora, perfil criado, anonimamente, na plataforma Instagram e que, há mais ou menos um mês, tece críticas sobre espetáculos teatrais em Salvador: “O insta da rota baiana teatral. Uma homenagem a Bárbara Heliodora. Não são obrigados a concordar. Não comento besteirol.”, assim se define x desconhecidx autor/a. Prossigamos.

No início deste mês, a_eleodora escreveu, em sua página, sobre o espetáculo Narcissus, ao qual fui assistir em dia de última apresentação. A performance corporal, na primeira cena, do ator Danilo Cairo, somada à ideia trazida, inicialmente, de que todo rio treme quando vai desaguar no mar, pois, por não querer deixar de ser rio, não entende que o processo, na verdade, é de tornar-se mar, muito me alegraram e, entusiasmada, adentrei no universo da obra.

a_eleodora inicia sua crítica explicando que Narcissus aborda “as diversas facetas do narciso contemplado no século atual”. Partindo dessa ideia, e acreditando que tal abordagem vem em tom de crítica, pretendendo gerar uma possível reflexão, por parte de quem assiste, chamou-me atenção o comportamento do público presente que parecia apenas divertir-se com aquilo que a peça apontava como sendo alguns dos equívocos de nossa rotina contemporânea: a vaidade excessiva, a futilidade, a reverência ao nada. Estaria aquele público em situação privilegiada em relação a uma crítica generalizada direcionada a um modo de vida predominante na sociedade atual? Ou o espelho, do narciso, não refletiu o suficiente para que a plateia se enxergasse como sendo o próprio objeto da análise apresentada? Nesse sentido, devo concordar com a_eleodora quando diz que o diálogo com o público não é bom. Não por haver algo de conteúdo incompreensível diante de nossos olhos (como sugere a_eleodora no final de sua crítica), mas porque há algum ruído, na trama estabelecida entre narrativa e plateia, que, nesse sentido, faz com que esta se julgue sujeito da risada, quando, na verdade, é o objeto mesmo. E não é o caso de rir de si mesmo, rir de nervoso, rir no aprendizado, rir-se, mas, pareceu-me, simplesmente,o riso de quem não se enxerga no que está sendo formulado, de quem não se implica ou, no caso, não foi implicado.

a_eleodora atribui esse ruído à ausência de uma história sendo contada, pois, segundo elx, “cenas jogadas aleatoriamente, mesmo quando executadas por bons atores, acabam impedindo uma compreensão melhor, afastando-nos.” E conclui o ponto de vista, ponderando: “Não quero entrar no mérito de outras divisões teatrais categóricas, mas, ao menos, converse melhor com o público.”

Mais do que não haver “nada de errado em experimentar”, como autoriza a_eleodora, acredito que a criação deve mesmo estar no campo da experimentação para que, de fato, algo aconteça no domínio artístico. Desperdício é falar do que já está dito.

Independente do que ou de quais seja/m, exatamente, essas outras “divisões teatrais categóricas”, a afirmação de que possuem méritos em suas escolhas cênicas não lineares, ou seja, diversas daquela que “conta uma história”, defendida pelo/a autor/a da crítica de que aqui trato, já dissolve a própria consideração de que é a falta de história que afasta a plateia. Pela própria menção aos méritos, ainda que de maneira não aprofundada, dessas outras formas de se fazer teatro, pode-se inferir que é, sim, possível que se joguem cenas ao público e, ao mesmo tempo, se alcancem os tais méritos. Se Narcissus não os obteve, não foi pelo modo como foi encenado, já que este modo pode funcionar, mas talvez pelo próprio o que foi encenado. O tema abordado no espetáculo terá sido mesmo uma ideia boa, como afirmou a_eleodora no início de seu texto? Aliás, o que é mesmo ter uma ideia? Das muitas respostas a que se pode chegar, a mim agrada o pensamento de que é preciso que haja necessidade para que algo seja produzido, criado, inventado. Produção, criação, invenção de algo que não existe, mas que precisa existir. Talvez, a reflexão sobre o afastamento entre Narcissus e seu público esteja nesse campo, o da própria criação. Logo em seguida, e como conclusão do pensamento anterior, a_eleodora faz um apelo aos criadores em teatro: “[…] converse melhor com o público. Faça-o voltar, espalhar por aí. Simplesmente, transforme.” Não consigo dissociar tal convocação da argumentação que teci anteriormente. Ora, a transformação, seja no campo individual, seja na esfera coletiva, e a evidente relação entre os dois, só podem se dar a partir da experimentação de algo novo, o novo transformador. E, quando trago essa indicação, é ainda para tratar da relação da obra e de sua recepção e também para corroborar a exposição que fiz algumas linhas acima. Mais do que não haver “nada de errado em experimentar”, como autoriza a_eleodora, acredito que a criação deve mesmo estar no campo da experimentação para que, de fato, algo aconteça no domínio artístico. Desperdício é falar do que já está dito.

Da perspectiva de uma não atriz, gosto sempre de relatar meu encantamento com a entrega de certos atores. Sempre me pego sentindo medo no lugar da/o atriz/ator: medo de proferir certa fala, de expressar algum gesto, de movimentar-se, de dar a cara a tapa. E reconheço, na atuação de Danilo, a mesma entrega e expressão corporal bem executada referidas por a_eleodora em sua crítica. É bom ver alguém lhe mostrando algo que você se julga incapaz de fazer. O outro como um espelho de possibilidades e caminhos que você não experimentou. É como um segredo à vista, mas, ainda assim, não desvelado. É também um jogo entre imagem e auto imagem.

Senti falta de ter enxergado, em Narcissus, a relação entre o velho e o moço, comentada por a_eleodora. A crítica no Instagram refere-se a esses dois extremos como algo que “poderiam ser [mais bem] aproveitados, se devidamente contextualizados.” Concordo que a exploração desse campo poderia ser um bom caminho para tratar do narcisismo, afinal, o Tempo, indiferente a qualquer amor pela própria imagem e, dessa perspectiva desapegada, para tornar-se visível, “vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica”, como nos diz Proust em À la recherche du temps perdu.

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