Crítica | Cênicas


Foto de João Bertonie

Umbigo e Útero

agosto de 2016

Edição: 7


Crítica sobre os espetáculos Umbigüidades e Ulteridades, solos de Iami Rebouças.

Recentemente o Grupo Caixa do Elefante – Teatro de Bonecos, a partir de seu espetáculo Prólogo Primeiro, fez-me reencontrar com o fantasma de Gordon Craig. Em texto que fiz após ver o espetáculo, desejei que todos os atores fossem assombrados por esse fantasma britânico. Deveria ter sido mais incisivo, mais contundente, específico, e praguejar que Craig assombrasse todos os atores baianos, em principal os que se formam pela Escola de Teatro da UFBA.

Craig viveu numa Inglaterra onde se encontrar com um ator inquieto com o seu fazer era extremamente raro. Acreditando que a arte só é capaz de atingir sua plenitude quando se aproveita da artificialidade, de tudo aquilo que se pode controlar, como podemos ver nas artes visuais e na arquitetura – consequentemente, haveria de ter propósito e razão –, Craig professava que o homem não era arte, logo, o ator não era um artista. No que se refere ao ator ainda havia um agravante, a escravidão emocional; tanto na nova vertente da época, o realismo, quanto no espalhafatoso romantismo nostálgico, aquele que ressuscitaria Shakespeare, o vivo que assombrará todo um pensamento e cultura teatral dali em diante.

Justamente por esse motivo, Craig acreditava que o ator deveria se inquietar com tal questão. Providenciar um agenciamento estético que favoreça a atuação, transformando, enfim o ator num artista, um criador de perceptos. Já ele próprio resolveu tal hipotética “matando” o ator; eis a contradição ou a fortuna de Craig. Não é à toa, sabemos, que Stanislavski o convida para a direção de um Hamlet no Teatro de Arte de Moscou. Como um bom mal-intencionado engenhoso, é óbvio que o russo tinha a intenção de mostrar ao inglês que o ator poderia lidar, também, com a artificialidade, um artifex[1]. Ora, um ator que assume Craig como o fantasma que te assombra tem o dever de agir stanilavskiamente.

Em terras baianas é sempre difícil encontrar um ator ou atriz tormentoso com a sua própria produção, com a sua própria poética e sua capacidade de invenção. Aqueles que o fazem, que se desassossegam, como assim deve ser um ethos artístico, tão logo são taxados pelos deístas do “talento” de intelectualóides, performáticos ou, maldosamente, aconselhados a seguirem uma carreira mais teórica. Muitos desses atores assumem de vez a função/ofício de performer, omitindo suas genialidades que poderiam revolucionar o entendimento do que é a mais contraditória das artes. Os deístas do “talento” minam qualquer possibilidade de novos ares estéticos e não aceitam a subversão dentro da própria linguagem. “Os muitos artistas visuais” que me perdoem, mas nada é mais stanilavskiano do que ser performer. “A performance nada mais é do que o sonho de Stanislavski”, é a frase que em meio à “ilusão” proposta por Iami em seu teatro pautado na representação[2], que penso sair de sua boca.

Iami é a personificação da única possibilidade de se ser stanislavskiana na Bahia. Aquele de assumir Craig como uma de suas maiores assombrações e, sobretudo, a angustia com a sua própria produção. Consequentemente, Iami aponta (ainda) a única possibilidade de se estar em estado de performance, o entendimento preciso de unidades de ação. A atriz encara a si mesma, o seu corpo que muito recebeu, como um território para transversalidades; é assim que se apresenta em Ulteridades, dialogando com seus anseios e desejos artísticos. Um corpo puramente a serviço do que for estético, logo, como obra e processo. Não é à toa que o seu solo estreado em 2000, chama-se Umbigüidades.

No lugar que se situam os dois solos, que, estritamente, tratam da trajetória e do processo de criação da atriz; solos que hoje poderíamos chamar de “demonstrações de trabalho” ou “aulas espetáculo”, é importante frisar que criticar Umbigüidades e Ulteridadesé criticar o ethos artístico de Iami. Afinal é alguém que expõe seu umbigo e seu útero. Digo isso, pois o grau de exposição empreendido pela atriz é algo que poucas vezes se viu ou se verá num teatro de criação ou construção de personagens.

Lendo as críticas sobre Umbigüidadesexpostas do foyer do Teatro Martin Gonçalves, é visível que nomes como Marcos Uzel e, sim, Barbara Heliodora (que achou que a peça não funcionava como espetáculo – devo concordar em algum aspecto), perderam a oportunidade de criar um pensamento, a partir de suas críticas, sobre a poiesis de Iami, sobre esse ethos, que, quem sabe, poderia provocar reverberações para o “teatro do futuro” no território da Bahia. Tudo bem, concordo que o crítico de jornal tem que ser claro e sintético para com o seu leitor. Não obstante, a crítica deve ser, acima de tudo, para a artista.

Umbigüidades se configura como um resultado prático da dissertação de Iami Rebouças. O solo, que teve a sua estreia em 2000, relata seu processo de 20 anos de investigação vocal, mais especificamente na criações de personagens a partir da voz. De modo óbvio, esse caminho a partir da voz não restringe o corpo como um todo. Logo, e é até desnecessário dizer, a atriz pensa a voz como corpo e vice-e-versa. Entretanto, parece escolher a voz como arranque de seu processo de construção. A partir de um mosaico de personagens criados por Iami em espetáculos clássicos do Teatro Baiano, a atriz nos apresenta, sistematicamente, o seu engenhoso processo poético. Vestindo-se como uma espécie de Ricardo III shakespeariano, Iami diz o que irá fazer e faz diante de nossos olhos. Essas vigilâncias, vistas pela Heliodora como um didatismo descomedido, não impede o assombro quando surgem as personagens. O inverso de uma estética do estranhamento, afastar de quem assiste a ilusão para aproximá-lo da própria ilusão. Mas o que se constata em Umbigüidades são dois pontos importantíssimos, apresentados em dois caminhos, o técnico e o ético.

Os grandes pensadores da música estão aí provar que os sons são capazes de provocar nossos organismos de maneira fatalmente sensorial. Diria um Smetak, “capaz de verticalizar a experiência do corpo”. Iami entende isso quando se inquieta com a voz; melhor, com a sua voz. Para além da ideia de composição, que pode incidir numa voz para determinada personagem, deverá existir o entendimento de que a voz é a probabilidade de vibração e extensão, o que pode ligar um número significativo de corpos dentro de uma experiência estética. Aqui não há uma escravidão da palavra, mas, pelo menos no caso de Umbigüidades, um estudo de seu sentido. Ou seja, no processo da atriz não há uma voz escrava pela palavra, mas a palavra que é escravizada pelas pujanças vocais, o som. Eis o caminho técnico que, embora possa parecer pequeno, talvez, se analisado pelos críticos da época, livraria as artes cênicas baianas de uma servidão à interpretação das palavras. Coisa que ainda é crônica no Teatro Baiano, e isso é louco.  Já o elemento ético, apontado por Iami em Umbigüidades, é o inferno que segue o córrego para desaguar em Ulteridades.

A atriz encara a si mesma, o seu corpo que muito recebeu, como um território para transversalidades; é assim que se apresenta em Ulteridades, dialogando com seus anseios e desejos artísticos. Um corpo puramente a serviço do que for estético…

O solo é o resultado prático da pesquisa de doutorado de Iami. Se em Umbigüidades há exposição do umbigo da atriz, suas questões e agruras estéticas, Ulteridades abre a questão no que tange à alteridade. Assume tal problemática a partir da construção de uma Encenação Tese, como define a própria Iami, e trazendo o útero como metáfora de um espaço onde se gere e se lança o outro; no caso o próprio pensamento, a própria atriz. A ideia de Ulteridades, ao que parece, é encarar o processo de criação filosófica e prática em artes cênicas como a própria obra, tendo a alteridade como tema, em diálogo com os expectantes. Esse é o novo buraco negro da atriz, sua fase experimental. Parir o diferente. O risco de Iami dentro do teatro da representação.

Iami concorda que Ulteridades ainda é um campo nebuloso em níveis práticos. Afinal, tudo que é melhor sendo explicado numa conservada tese é complicado em sua execução, nada melhor do que isso. Ou seja, estamos aqui numa zona, de fato, mais comportamental, uma verdadeira aflição quanto à atuação. Umbigüidades possui uma separação clara entre o ethos e o que é pensado de maneira sistematizada, embora estejam ali correlacionados. Já Ulteridadesaponta para algo, de fato, ontológico, que é superar o que foi posto por Iami, por ela mesma, desestruturando, pois, suas próprias bases estéticas. Laís Machado (atriz e performer) diz que os poucos atores que se propuseram a pensar sobre o ofício se restringiram ao seu processo – e isso já é mais do que válido –, contudo, segundo a própria Laís, já é o momento de se pensar a totalidade da obra artística.  Se Ulteridadespode ser chamada de Encenação Tese, podemos começar a pensar, de maneira mais concernente, na possibilidade da performance do ator, sua “presença”, ser encarada como a própria encenação. Seria um adeus definitivo àquele que, pretensiosamente, diz que sua arte está na organização do olhar do outro?

Por fim, Iami exorciza o fantasma de Craig que me assombrou nesses poucos dias, após a minha expectação da obra do Grupo Caixa do Elefante, através de uma performance cênica assombrosa. Desse modo, desejo que todos os atores baianos sejam assombrados pelo útero e umbigo de Iami. Aceitem isso como sinceros votos de felicidade.

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[1] Do grego fazer arte.

[2] Teatro pautado na construção e composição de personagens por meio de ações físicas.

Rebate à crítica “Umbigo e Útero” de Diego Pinheiro

 Por Iami Rebouças

Diego,

Eu me reconheço e me desconheço em muito do que falam sobre o meu trabalho de atriz. Não porque discorde do que é dito, apenas porque jamais poderei me ver em cena. Mas quando sou eu a espectadora e um ator em cena me faz vibrar, eu desejo provocar o mesmo nos meus espectadores.

Meu umbigo é a minha ligação com a matriz e o meu útero é o potencialmente gerador. Conjugar o verbo hipocrinestai é sempre, no meu entender, um jogo de espelhos. Eu sou grata aos meus mestres, porque a transmissão do conhecimento é um grande ato de generosidade. Sou grata aos diretores e professores que me puseram para atuar, mas os meus maiores mestres ainda são os atores. Eu sou fascinada pelos atores e sempre, quando um desses “seres imaginários” me encanta, eu bebo dessa fonte. O teatro lida com o paradoxo do ser e não ser. Estar dentro e estar fora é a condição do ator em geral e da atriz em questão.

Esses dois solos somente se tornaram possíveis como resultados de pesquisas acadêmicas. Eu tinha preconceito com a palavra “performer”. Estou assimilando paulatinamente essa minha nova condição, uma vez que me atribuem o “verbete”. Como a palavra se traduz como desempenho eu aceito a alcunha. É o meu objeto de pesquisa. O desempenho em teatro como discurso, com o seu ethos, pathos e, claro, o seu logos.

Os dois solos surgiram de um permanente diálogo com os espectadores, uma vez que eu optei por não ser dirigida. Isso me fez crescer muito como artista, aprender a lidar com as minhas inseguranças e a fazer escolhas. Sinto que o caminho que escolhi para o meu trajeto como pesquisadora foi mais trabalhoso, mas me deu bons frutos. O desafio de encenar dois trabalhos acadêmicos fez de mim uma defensora da prática como produtora de conhecimento, o que deve ser aceito pela Academia como legítimo. Lendo a crítica que você escreveu tenho uma sensação tão boa de reconhecimento e fico feliz que eu tenha conseguido tocar pessoas com a minha arte.

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