Ensaio | Cênicas


"Pixel", de Mourad Merzouk/ Fotografia: Guilles Aguiar

Em novembro deste ano a França mais uma vez invade o Brasil com sua Dança. Em uma mostra que percorre 15 cidades de nosso território, composta por 16 companhias que trazem coreógrafos consagrados, como Jerome Bel e Maguy Marin, e outros menos conhecidos, como Mourad Merzouki, com sua Cia Käfig, que estará em cartaz no Teatro Castro Alves, no dia 13 de Novembro, em única apresentação.

Merzouki carrega em seu histórico o contato com as Artes Marciais, o Circo e as Danças Urbanas. Interessa ressaltar essa última característica no trabalho deste coreógrafo e a importância que as Danças Urbanas adquiriram no contato com a Dança Contemporânea, especialmente no Brasil e na França. Mas também, quais características as Danças Urbanas têm adquirido quando levadas aos palcos mesmo sem um diálogo tão próximo com Dança Contemporânea.

Partindo do pressuposto de que qualquer tipo de criação, artística ou não artística, possui como matéria prima a base cultural que os indivíduos vivenciaram, ou seja, em que lugares viveram (cidades, casa, apartamento, fazenda), quais músicas ouviram, em que comunidade conviveram, o que comeram, com quem dançaram, com quem caminharam, onde estudaram, que filmes viram ou, mesmo se viram na TV ou no cinema. Esses elementos estão presentes no processo criativo, e a habilidade de manipulá-los, organizá-los e as relações que esses artistas conseguem estabelecer entre eles dão a cara e o teor de suas composições.

A cultura hip hop começou a se delinear em fins da década de 1960 e início de 1970. Vários elementos contribuíram para elaboração dessa cultura e de suas manifestações pela dança. Dentre eles, a Black Music americana, com o Soul e a Funk Music; dão crescimento da população de imigrantes latino americana para os EUA, levando consigo danças como a Rumba, Mambo, Cha-cha-cha, a Salsa e a própria Capoeira; o universo tecnológico do período com filmes de ficção cientifica e a popularização do videocassete, de câmeras, da TV a cabo, do computador pessoal; o diálogo da cultura pop com as danças hip hop levando para shows de inúmeros cantores, as tensões criadas em metrópoles inchadas, desiguais, e, sobretudo, violentas, com pouca oferta de lazer para os mais pobres.

Portanto, considerando que só é possível criar algo a partir da sua cultura, e de que essa é permeada por memórias e universos imaginários, a questão que se coloca é: quais os universos imaginários que geralmente são acionados por coreógrafos com origem nas Danças Urbanas da Cultura Hip Hop?

A partir dessa reflexão, apresento quatro núcleos de temas e universos imaginários que creio serem recorrentes quando esses artistas colocam seus trabalhos em cena, obviamente, não é possível fechar nesses quatro, mas considero estes um ponto de partida. São eles: o universo tecnológico; o trânsito com a Cultura Pop; a periferia das grandes cidades e o retorno constante à raiz; a busca por uma origem.

Universo Tecnológico

O período no qual as danças urbanas e a cultura hip hop começam a se delinear é marcado por alguns elementos do que se pode chamar de uma cultura tecnológica, que não começa nesse período ou tampouco acaba nele. Essa linha de raciocínio considera dois pilares que são importantes para o hip hop. No primeiro, o universo cinematográfico da época, com destaque para filmes como Star Trek (1966) que começa inicialmente como uma serie na TV, Star Wars (1977) que se segue com O exterminador do Futuro (1986), Robocop (1987) – dentre outros. Esses filmes com frequência mostravam robôs e formas pelas quais esses robôs se movimentavam, alguns mais duros e rígidos, como Robocop, e outros mais humanizados, como os das versões de Exterminador do Futuro.

O impacto dos filmes e das novas tecnologias estimulou a criação de um universo imaginário povoado por robôs e seus padrões mecânicos de movimentos, que primeiro se tornaram dança social, já que era comum ver dançarinos imitando robôs em festas. Posteriormente, a dinâmica social fez com que esses movimentos adquirissem codificação e se estruturassem em um conjunto de técnicas, resultando em uma Dança Urbana.

Num segundo pilar, outro fator tecnológico importante no desenvolvimento das danças urbanas é a popularização do videocassete. Esse mecanismo situa-se entre o cinema, a TV, o DVD e o início da difusão de vídeos pela internet.

O videocassete apresenta uma nova dinâmica de ação ao permitir outra relação com as imagens, na medida em que torna possível pausar, passar para frente, reproduzir em câmera lenta ou mesmo assistir pausando a imagem, vendo-a quadro a quadro. O videocassete interfere diretamente na maneira de se aprender movimentos, pois torna possível perceber com mais clareza como os movimentos acontecem tecnicamente, ou seja, quais são, por exemplo, os pontos de contato com o solo ou o caminho do movimento.

Urbanoides 2.0, coreografia de Frank Ejara da Cia Paulistana Discípulos do Ritmo, criada em 2010, é um exemplo da busca por essa estética andróide e que tenta criar um universo robotizado e tecnológico.

O trânsito com a Cultura Pop

Hoje é senso comum a ideia de que ninguém trouxe o Hip Hop ao Brasil, e de que a responsabilidade por apresentar as Danças Urbanas ao país ficou a encargo dos videoclipes de cantores americanos como Michael Jackson, dos comerciais que utilizavam os movimentos mais virtuosos para vender produtos e por filmes de Hollywood, como Breakdance 1 e 2 (1984), que demarcaran as primeiras apropriações da indústria cinematográfica americana do tema. Acredito que a difusão da Cultura Hip Hop e das Danças Urbanas em outros países, e mesmo em várias regiões estadunidenses, tenha ocorrido da mesma forma.

Interessa ainda destacar que quando essas danças começam a interagir com a TV, os Clipes e o Cinema, elas ainda estão em fase recente de elaboração. Dessa forma, a aproximação resulta em um trânsito de mão dupla, no qual essas danças interferem nos shows e no modo como os cantores e dançarinos se movimentam no palco, ao mesmo tempo  que as adaptações feitas nos movimentos para levar aos palcos interferem também na configuração desta cultura de corpo tão recente.

Não é raro perceber que coreógrafos tomam decisões de composição a partir da experiência de construção cênica realizada nos palcos e na TV, optando por elaborações cênicas que privilegiam a frontalidade, sendo,  portanto, bidimensionais e tentando imitar a lógica da tela, ou mesmo reproduzir gestos e movimentos de cantores.

As criações do videomaker, dançarino e coreógrafo americano Daniel Cloud Campos com frequência fazem referência a elementos da Cultura Pop, seja nos palcos , sejaem suas coreografias feitas para o vídeo. Dentre elas ressalto o vídeo Like Mike (2011), que parte das movimentações e do próprio personagem Michael Jackson, enquanto ícone da Cutura Pop e referência para o próprio Cloud.

A Periferia das Grandes Cidades

As metrópoles americanas passaram por um aumento da população de imigrantes centro americanos e caribenhos, bem como mexicanos e sulamericanos nos últimos 50 anos. Essas comunidades chegaram com sua cultura e com a esperança de viver o sonho americano; algumas fugindo de guerras civis, no caso de El Salvador, outras tantas de regimes totalitários comuns nas Américas. Essa população, somada a outros fluxos migratórios, inflou rapidamente cidades que não haviam sido projetadas para receber tal contingente de pessoas. Esses fluxos migratórios levaram à convivência de comunidades vindas de lugares distintos, compartilhando espaço em cidades desiguais, precárias e com pouca oferta de equipamentos de lazer. Um cenário que não raras vezes se igualava a um cenário de guerra.

Como consequência direta desse fluxo, muitas cidades americanas viram uma explosão da violência nesse período, ocupadas por gangues que delimitavam fronteiras e disputavam espaço e zonas de influência na cidade. Esses confrontos estão na estruturação das Danças Urbanas, presentes nos movimentos que acontecem em um posicionamento espacial circular de batalhas, com muitos movimentos imitando golpes, e que de algum modo, guardam uma energia de confronto, que, com frequência, emerge nas coreografias em forma de temas.

Trabalhos como Meio Fio, da Cia Membros de Macaé-RJ, lidam com essa característica ao discutirem violência urbana e o uso de drogas nas periferias dos grandes centros.

Retorno constante à raiz e a busca por uma origem

Não é raro encontrar discussões entre os praticantes de Danças Urbanas reivindicando um retorno às raízes, a busca por uma origem e a eleição de iniciadores das danças e da cultura, a busca por uma espécie de cosmologia e genealogia do movimento cultural e das práticas corporais que compõem as danças hip hop. Como as danças urbanas são um fenômeno recente, muitos dançarinos reconhecidos por terem iniciado as primeiras danças ainda estão vivos. As primeiras formulações datam das décadas de 1970 e, de lá para cá, elas passaram por algumas etapas que resultaram em novas danças, atualizações de outras e questionamento das atualizações realizadas.

Qualquer tipo de tentativa de explicar o fenômeno da busca da origem é incipiente e incompleto, mas o que nos interessa aqui é que essa busca é recorrente em coreógrafos que emergiram da Cultura Hip Hop.

Não são raras as  coreografias com títulos que buscam essa ligação, que almejam alcançar os movimentos originais e que seriam os verdadeiros movimentos do hip hop. Essa busca acaba por interferir não só nos movimentos, mas também nos figurinos, no cenário, na música e, por fim, nas ambientações presentes na obra.

Caso recente é da Cie Accrorap, com a coreografia The Roots, do coreógrafo Kader Attou. Nessa obra não há objetos, música ou figurinos que remetam a uma origem do hip hop, mas todo trabalho é composto por movimentos de Popping e B.boy, tidos como as danças originais das Danças Urbanas.

Pixel, em cartaz esse ano em várias cidades brasileiras, traz o histórico do seu criador com as Danças Urbanas, bem como suas outras vivências. Pixel talvez seja um trabalho no qual se possa verificar justamente a acumulação de experiências com universos culturais com os quais Merzouki teve contato. Apesar desse trabalho não expor nenhum dos universos imaginários mencionados, talvez apresente justamente um quinto desses universos, cujo tecido elementar seja a capacidade da Cultura Hip Hop de se ajustar, conviver e interagir com os demais.

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[1] Coreógrafo, Dançarino, Professor da Escola de Dança da UFBA, Bacharel em Ciências Sociais-UFU/MG, Mestre em Artes PPGArtes-UFU/MG, Doutorando em Artes Cênicas PPGAC-UFBA.

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