Crítica | Cênicas


Foto de Andrea Magnoni

Antonio Fábio, faz uns anos, uma vez me disse que estava interessado na questão do envelhecimento para trazer para o palco. Ele cumpriu a promessa. Chamou Daniel Acardes e resolveu falar do envelhecimento, ou de um estado de senilidade, de uma pessoa e de uma nação. Todo o espetáculo fala dessa ambiguidade: Major Oliveira é o retrato desse Brasil profundo, para usar as palavras que Caetano Veloso tomou para referir-se ao Brasil da ditadura militar.

São poucos os elementos em cena: um ator, em um único figurino de militar de reserva que não abre mão de se vestir como se estivesse de uniforme, cinco pallets em forma de cruz, duas cadeiras (uma de visita e outra de hospital), um criado mudo como altar com a imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia, uma bola que faz as vezes de cabeça, um pedaço de fígado de boi, spots de luz, sobre e ao redor do palco e da plateia.

Entramos no Vila Velha pela parte debaixo e ouço uma pessoa perguntar: é aqui mesmo? Nunca entramos por aqui. Descemos os porões, do teatro, como se estivéssemos descendo os porões da ditadura, nos acomodamos nas cadeiras que estão no palco do teatro de arena, ao redor do cenário minúsculo e esperamos começar. Vem lá de cima, do caminho que nós, os da plateia, estamos acostumados a fazer, o ator, que primeiro alonga os músculos do pescoço, aquecendo para mais uma sessão de seu ofício, e desce em nossa direção. Já nas primeiras palavras que balbulcia, entendemos estar diante de um velho execrável, mais do que um defensor da ditadura, um ex-torturador, abandonado pelos filhos, em um asilo.

Sendo um único ator em cena, ele dialoga com dois personagens que não vemos, mas que estão ali: o enfermeiro de todos os dias, e a testemunha de Jeová das visitas dominicais. Trata-se de um motivo recorrente em alguns textos literários: o velho execrável, envolvido com alguma ditadura, que tem como confidente de suas práticas abomináveis a enfermeira. Lembro de  Leite Derramado, de Chico Buarque, Memoria de mis putas tristes,de Gabriel  Garcia Marques, um dos contos de A Eternidade da Maçã, de Marcus Vinicius Rodrigues. Certamente o leitor mais bem informado lembrará de outros tantos textos sobre o tema. Daniel Arcades mergulha nesse universo sombrio para falar do presente, já me explico.  Embora seja um monólogo, o personagem está sempre em diálogo com dois personagens que não vemos mas que ele vê, é essa característica dá uma agilidade ao texto, que resulta num olhar para além dos maniqueísmos, dando contornos complexos a essa personagem racista, misógina, homofóbica, mas que é, sobretudo, um ser amedrontado e fascinado por aquilo que odeia.

O texto aponta para o presente porque menciona o crescimento do evangelismo no Brasil, bem como o avanço dos negros favelados, das bichas e das feministas. Em outro momento, em con

versa com o enfermeiro, o Major se refere ao recente ataque terrorista dos Estados Unidos, provavelmente o atentado do WTC, e a ameaça da “invasão” muçulmana nos Estados Unidos. São muitos os sinais de que estes tempos são sombrios e que num rosto plácido, de olhos azuis, de um velhinho temente  aDeus e devoto de Nossa Senhora da Conceição da Praia saem as palavras e as práticas do terror fascista.

Há sinais ali que nos coloca entre um futuro ameaçador que já sabemos onde deu e um passado que já sabemos onde vai dar. É nesse tempo de suspensão, entre passado e futuro, que vemos os símbolos nacionais, uma bandeira do Brasil no alto do proscenio, as estrelas da farda do Major, a austeridade travestida de simplicidade presente nos cenários, e alguns momentos musicais, seja através de um hino que não identifico mas que deve ser do Exército e alguns acordes que nos lembram de uma ambientação nazista.

Antonio Fábio é daqueles atores rigorosos, que partem de um trabalho elaborado com o corpo para nos mostrar a degradação de um ser que envelhece. O Major Oliveira tem mal de Parkinson ou alguma outra morbidade na mão esquerda, uma limitação que quase nos desperta piedade, muito embora não seja um fator que o impeça de realizar, em cena, atos não muito convencionais aos bons velhinhos. Podem descansar, leitores, não serei um spoiler. O desenho coreográfico dos movimentos do ator em cena são cuidadosos, bem traçados, circulares de modo a contemplar a todos que estamos na plateia, com aquela sensação de que ele nos olha nos olhos sem se fixar em nenhum

de nós. A direção, dividida entre ator e dramaturgo, dá conta das nuances do personagem e da relação com o espaço do teatro e com a plateia, muito embora às vezes pareça que a voz e dicção do personagem é mais jovem e ágil do que o corpo em degeneração. Isso não é necessariamente um defeito, porque parece ser uma escolha.

Aquele homem podia ser avô, pai, nosso ou de um vizinho nosso, ex-patrão, pai do patrão, enfim, um personagem terrivelmente verossímil, cada vez mais possível de existir, não porque não existisse antes, mas porque personagens assim cada vez menos têm vergonha de dizer as barbaridades que pensam.

Há uma bengala e uma Bíblia sobre os quais o personagem se apoia. Esta serve para, em alguns momentos, ilustrar o sofrimento exemplar das vítimas, com a leitura do livro de Jó, aquela serve como sustentáculo de um corpo em degradação, mas também como instrumento de ameaça e de tortura. A maldade tem seus limites e ninguém é totalmente perverso. Aquele velhinho temente a Deus é abandonado pelos filhos.

A trilha sonora de Roney Jorge resulta de uma pesquisa de sonoridade em diálogo com a ambientação soturna que o espetáculo impõe.

 

 A ditadura já está, Bolsonaro não existe no vácuo e os militares nem precisam tomar o assento para que a “ordem” cale a maioria. Mas enquanto houver arte e artistas preocupados com o seu tempo, há possibilidade de refletir. E de agir.

 

No entanto, pelo caráter intimista e, talvez, por ter uma plateia reduzida no dia em que assisti, tive a sensação de que a imponência e o vlume de alguns momentos da trilha beiravem o limite de se impor um pouco acima do tom do espetáculo. Mas o risco é parte do processo. O nazifascismo precisa fazer barulho, preencher o espaço com sua austeridade e seus hinos de ostentação à glória.

O espetáculo nos faz pensar nos tempos que vivemos, e na velhice esclerosada de um personagem e de uma democracia que mal nasceu e já parece velha. A atmosfera sombria, provocando  nosso silêncio em resposta ao volume do som que encerra o espetáculo, nos deixa apequenados diante desse beco escuro em que estamos nos encurralando. A apresentação que assistifoi abrigada pela programação  intitulada “Ditadura Nunca Mais”, no velho Vila Velha, local da resistência à ditadura dos 60 aos 80 e também do golpe atual. O espetáculo, que não conta com apoio nem patrocínio nem passou por edital, é resultado de uma teimosia de um ator em pleno exercício de sua função social, de seu exercício político de pensar o mundo e o tempo em que vive, contando, claro, com a parceria da equipe, do teatro, e da plateia interessada em ser provocada a refletir e, quem sabe, agir para estancar a sangria.

Se alguma pessoa da plateia sair dali pensando que, cada vez que um colega postar uma piadinha preconceituosa, ou um meme escroto, ou um depoimento fake com o clichê neofascista ”direitos humanos para humanos direitos” e ele se calar estará sendo cúmplice de um um momento histórico assombroso, o espetáculo terá valido a pena de ter existido. É preciso intervir nessa realidade lamentável que estamos vivendo. A ditadura já está, Bolsonaro não existe no vácuo e os militares nem precisam tomar o assento para que a “ordem” cale a maioria. Mas enquanto houver arte e artistas preocupados com o seu tempo, há possibilidade de refletir. E de agir.

 

Rebate à crítica “Major Oliveira: nossos bons velhinhos e o tempo que vivemos” de Alex Simões

 Por Antônio Fábio e Daniel Arcades

Major Oliveira nasce há dois anos quando, em um café da Livraria Cultura nós nos apresentamos e nos parabenizamos um pelo trabalho do outro e falamos sobre um trabalho que pudéssemos realizar sem o compromisso de editais, sem a urgência dos projetos atuais e, principalmente, com nossos percursos juntos. Antonio Fábio tinha um tema que o tocava muito e Daniel Arcades propôs uma situação. A partir daí vieram as leituras e os almoços sobre temas e situações: A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, A obscena senhora D, de Hilda Hilst, os documentos da Comissão da Verdade, conversas sobre a transformação dos valores sociais atuais e muito, muito papo que, aparentemente, nada tinham a ver com o que faríamos.

Entre conversas e pausas para ganhar algum trocado com outros trabalhos, foram dois anos de conversas, pensamentos e discussão de concepção para irmos à sala de ensaio. Sabíamos de algo que jogava a nosso favor: a diferença de nossas gerações e a possibilidade de olhar para o ontem através do hoje. Apesar de muitos jornais terem identificado a peça como uma peça sobre a ditadura militar, esse foi um caminho encontrado para pensar numa situação extrema de controle das coisas, mas nossa peça deseja pensar na perda de controle. Seja a perda física, seja a perda dos comandos familiares ou dos comandos políticos.  É um peça sobre a perda de controle e a partir daí surgem todos os outros caminhos: velhice, política, religião, família…

A localização do tempo é justamente para sabermos que esse passado não está tão distante de nós e ainda tem interferências fortes na nossa vida. E eis que a sintonia do teatro nos faz estrear em um dos momentos mais oportunos para falarmos sobre isso; Não podíamos ter ido ao palco em momento mais oportuno, mas acreditamos também que fizemos uma peça para além do momento sombrio e difícil que vivemos hoje. Queremos que tenha vida, que não seja um espetáculo realizador de dez apresentações de um possível edital e pronto e, devido a isso, tudo foi concebido para viabilizar esse caminho.

O cenário é uma grande prova da nossa ideia de maturação. O conceito do mínimo sempre foi norteador para a concepção, mas a cada conversa íamos diminuindo as formas, tendo clareza das texturas, dos desenhos. A lógica artesanal foi aplicada no sentido do tempo, nada foi feito com “esquema fast-food”, não porque queríamos acertar, mas, principalmente, por uma consciência da necessidade de que este trabalho precisava ter o peso da experiência de vida de um cara como o Major. Vamos aos questionamentos implícitos da crítica (que estamos muito felizes em ler):

Sim, foi uma escolha da direção de tornar jovem e potente a voz e o corpo do Major em muitos momentos da peça. O trabalho de mesa feito durante os primeiros meses era justamente para discutirmos as nuances de voz e corpo nas relações da peça (a santa, o enfermeiro, a testemunha e os demais), optamos por desenvolver essa jovialidade vocal corporal nas situações em que ele acredita que pode ser poderoso, como uma lembrança materializada dos tempos de torturador. Para tanto, destacamos a forte contribuição de Edeise Gomes, diretora de movimento da peça, que cuidadosamente nos apontou soluções para as transformações desse velho frágil para a materialização do torturador vigoroso dentro do espaço. Tudo foi rigorosamente pensado: colocação de mãos, divisão de coluna, movimentação pela arena e Edeise fez um trabalho de muita valia nesta parte.

Ronei Jorge foi outro presente para a concepção do trabalho. Consciente de que era uma peça na qual o que estava na fala e no corpo do Major necessitava ter o tom da peça. A direção musical concebeu uma trilha sonora soturna com poucos instrumentos e poucas intervenções. São três momentos em que  o risco do volume e do tom da música e é exatamente isso, uma concepção que se arrisca em sair do silêncio somente nos momentos nos quais o Major se sente dono da situação ou, ao menos, finge ser dono de uma. A música é o Hino do Exército Nacional com propostas de variantes caminhos sobre o hino feitas por Ronei.

Ficamos muito felizes com a leitura da obra feita por Alex. Nosso caminho é exatamente este: tentar estampar a face, as falas e os possíveis comportamentos de um opressor que não admite dividir seu espaço com o outro. E essas pessoas têm cada vez menos receio de expor seu ódio, sua raiva diante de sua impotência, para tentar ganhar força e ficar potente novamente. Não deixemos que voltem, não deixemos!

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