Selfie | Cênicas


Fotografia e maquiagem: Nina Codorna / Drag: Leona do Pau

Ter a alma e o corpo nus

novembro de 2016

Edição: 9


Selfie de Saulo Moreira diante do Concurso Revelação Marujo

Ele entra no quarto, pega o computador e volta para sala. Nesse momento (escuto), ele mostra Têtê Espíndola e Björk para Marcela e Geor. Ontem, depois de ter falado saudade e cansaço, encontro Léo fazendo um fauno. Fazer um fauno leva dias, ele me diz. A etimologia da palavra fauno vem de destino ou profeta. Coisa curiosa – uma das histórias é: Fauno foi um marinheiro que se apaixonou pela poeta Safo. Esse texto é por causa da paixão por uma drag. Fauno sou eu (utopicamente marinheiro e escafandrista). Sou eu Safo (utopicamente poeta). Safo é Léo e será Fauno. Observo – esse texto é circular e aquático?

O Concurso Revelação Marujo, mediado pela DesiRée Beck, acontece há sete semanas no Bar Âncora do Marujo.

Há 15 anos o Âncora existe. Bar-espaço-de-resistência, o Âncora aglutina corpos desviantes impossíveis de serem rastreados. Na espessura de nossas narrativas de bichas ancoramos nosso cú-coração – afogamos mágoas, recombinamos jeitos, fazemos sarros, reencontramos o boy magia do porto, cantamos Betânia, Gal, Dalva, Madonna (porra, são muitas e maravilhosas). Cantar torna-se um gesto em paradoxo: cantamos para desistir da brutalidade de um mundo-moral que quer nos matar e cantamos para continuar. Quantos amores foram desfeitos? Quantos surgiram? E aquele dia que você levou x melhor amigx? Foi lá que Maricelma me prometeu nove noites. Os 15 anos do Âncora são 15 anos de puberdade, tesão, verões, camaradagem, amizade. Amizade menos no sentido cristão, sem a profundidade-posse, amizade quase como um happening, amizade que se faz no instante, no trânsito, amizadetransa. No Âncora aprendi a ter menos alma e mais corpo, a ter mais tesão, a ser menos essencial e mais singular. Estou na superfície do fundo do posso.

Estou com Foucault: vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferentes de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas[1].

Se o Âncora aglutina muitas narrativas, aglutina-se ali muitos espaços – espaços nem sempre compatíveis. O viver junto se dá em tensão. Parece balela essa coisa que nos ensinam sobre igualdade. Sistemas fascistas acontecem a partir do discurso do comum. A igreja, em nome do comum, derramou e derrama muito sangue. O Estado matou e mata em nome do comum. No Âncora eu posso estar incomum e monstruoso.

O Âncora, ao mesmo tempo, possui um funcionamento de abertura e de fechamento que o isola em relação ao espaço circundante. É gueto e lugar de passagem. Aliás, o Âncora é âncora e barco. Posamos ali para descolonizar nossos corpos tão cruelmente docilizados.

É na travessia desse espaço heterotópico, que o corpo utópico da drag acontece. O corpo da drag é um corpo utópico. Por que? Porque ele acontece na promessa de um não futuro. O futuro não precisará chegar. O corpo drag instala o agora do corpo em outro espaço – por causa do corpo drag entramos num lugar que não tem lugar diretamente no mundo. Por causa do corpo drag faço do meu corpo um raio que vai se comunicar com a constelação de outros corpos estelares.  Por causa do corpo-drag sou tomado pelos deuses ou seremos tomados pela pessoa que acabamos de seduzir. A drag arranca meu corpo do meu espaço próprio e me projeta para um espaço âncora / para um espaço barco.

Se considerarmos a máscara sagrada e profana do corpo drag, veremos que tudo que concerne ao corpo – desenho, cor, purpurina, excreção, vestimenta, esperma – tudo isso faz desabrochar nosso corpo selado.

Semana passado eu escutei todos os dias, mais de uma vez ao dia Se eu quiser falar com Deus – esse poema tão lindo de Gil na voz de Elis. Estar casado com uma drag é escutar incansavelmente a mesma música. Léo treinava as nuances da música a medida que fazia reflorescer Leona_do Pau___.  Léo é Leona_do Pau___ e o inverso também. Eu digo menos como um marcador de ontologia (para que precisamos de essência?) e mais como uma produção de desejos. Estar na produção cotidiana de uma drag gera em mim um corpo que quer ser utópico, um corpo que quer sentir menos saudade e menos cansaço.

No último domingo foi tão bonito. Petra Perón pediu para cada uma das participantes criar uma plataforma política. A fantasia era – cada drag iria montar um discurso/dublagem para se defender como a primeira presidenta drag do Brasil. Leona_do Pau___ ficou com a plataforma de intolerância religiosa. Leona_do Pau___ cantou aquilo que a semana inteira eu já sabia: se eu quiser falar com Deus tenho que me ver tristonho, tenho que me achar medonho e apesar de um mal tamanho alegrar meu coração. Rainha Loulou ficou emocionada. No final, picas e bucetas foram distribuídos. E eu escutei aquela música como se nunca antes tivesse escutado.

Eu gostaria muito de falar sobre os concursos – na ideia de concurso se acopla um mecanismo de cooptação de desejo e emolduramento de uma perspectiva eurocentrada, ou seja, perspectiva quase sempre branca, magra e clean. A diversidade de reality shows estão infinitos na nossa programação. Não sei se é bom ou ruim. Não sei se é um sintoma da nossa época – acho que não. O fato é que na paisagem competitiva e careta dos concursos podem aparecer desvios. Há sempre uma coisa que escapa, penso. Os concursos de drags escapam e geram outras velocidades na máquina do capital? Quando as drags do Concurso Revelação Marujo, na Carlos Gomes, são agenciadas pela fantasia em fazer existir uma presidenta drag não seria esse um gesto micropolítico de desvio e abertura? Desvio de que? Do nosso cotidiano? Isso é muito? Muito o que? É muito um grupo de pessoas na madrugada do domingo (o início do concurso acontece todo domingo a partir das 0 horas) aplaudir, cantar, rir e torcer por uma presidenta drag? Um país se faz possível naquele instante? Sim? Isso nos torna mais resilientes contra os golpes que, nós brasileiros, temos sofrido? Algum dia teremos coragem de jogar uma bomba no planalto central?

Aprendo ao Léo com Leona_do Pau___: gerar fissuras no cotidiano ter a alma e o corpo nus estar fauno.

Leona_do Pau___ tem cantado nessa semana   hjvashdfyufdyefyfdqwdcqytwfdy  (não vou dar spoiler! O concurso acabará no dia 4 de dezembro, depois da publicação desse texto). As finalistas do concurso são, além de Leona_do Pau___, Sasha Hells e Sophia Velvet.

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[1] Dois textos de Foucault estão aqui o tempo todo, ora parafraseado, ora plagiado: O corpo utópico e Heterotopias.

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