Ensaio | Cênicas


O contexto da presença

novembro de 2016

Edição: 9


Desde o primeiro contato com as Escolas de Arte ocidentais nos deparamos com o conceito de presença. Presença cênica, presença de palco, presença. Presença enquanto capacidade de atração. Presença enquanto aprimoramento técnico. Presença enquanto ato de estar concentrado e atento ao presente. Presença enquanto talento. Nas mais variadas interpretações e escolas, lá está a presença enquanto conceito chave de atuação.

Confesso que desde o primeiro instante fui fisgada por este aspecto do fazer. Para mim, estar presente, em qualquer contexto, inclusive na obra de arte, sempre foi entendido como plenitude. Esta noção sempre foi empírica, e obviamente, vem carregada da minha bagagem pessoal de uma praticante de uma religião afro brasileira que entende a presença em um espaço sagrado como plenitude. Aí foi onde encontrei o primeiro nó. Como estar pleno em um universo epistemológico tão cindido? Corpo-voz, corpo-mente, público-atriz, discurso-forma, produção-criação, criação- apresentação.

Os primeiros escritos sobre as artes cênicas, datados de 3000 A.C, que são encontrados no tratado hindu Natya Shastra[1][2], definem o ator, ofício de grande prestígio, como “os habilidosos, instruídos e trabalhadores que não se intimidam pelo palco” cuja função esbarrava na nutrição espiritual do coletivo. Como o teatro deveria ser acessível a todas as castas, o caminho encontrado por eles foi uma codificação semiológica absurda. Nada que não fosse esperado de uma sociedade extremamente estratificada cuja mobilidade entre as castas era impossível. Manter a saúde daquela sociedade esbarrava na manutenção de estratos.

Por que essa digressão me interessa? Por quatro aspectos: 1 – O sagrado; 2 – o contexto sócio-político; 3 – a técnica e 4 – a noção de presença atrelada a coletividade. Quatro aspectos que por mim são vistos sem hierarquia entre si, e cujas linhas que os separam são meramente ilusórias.

Por que é tão difícil questionar as estruturas que estão postas? E por que parece menos relevante pensar na presença não como uma definição universal e sim como um elemento contextualizado? Neste caso o que me levou a responder tais questões são os pensamentos desenvolvidos e compartilhados na minha escolha em ser militante/ativista do feminismo negro, e que os trago para esta discussão. A dificuldade consiste no fato de não dispormos de linguagens, idiomas, epistemes que não sejam coloniais. Que não tenham sido construídas em cima de pressupostos que tendem a universalizar as questões, objetificar o outro e a colocar o sagrado no transcendente.

Aspecto 2 – O contexto sócio-político.

Também é uma máxima comumente repetida nas escolas de formação, que o artista deve ser alguém antenado. Alguém que está ciente do que acontece ao seu redor, quiçá no mundo. Entretanto o vício de relacionar-se com o mundo a partir da atribuição de significado nos condiciona de maneira geral a capturar as mudanças nas relações, nos paradigmas políticos, na geopolítica, na configuração social de maneira geral como temas a serem explorados em nossas obras, e quase nunca como fatores que podem nos confrontar com as bases do nosso fazer, em sua ética.

Não quero dizer com isso, que a atribuição de significados deveria vir abaixo em uma hierarquia do pensamento. O mundo não é dual e o pensamento muito menos. Não necessariamente é isto OU aquilo.

O que venho repetindo, inclusive aqui na Barril no texto intitulado “Entre o político e o estético”, desde a criação do meu solo Obsessiva Dantesca, é que ousemos em nossas estruturas, sem ficarmos presos as classificações que já estão postas. Principalmente quando se trata de obras de arte politicamente engajadas, como é o caso da obra em questão. Afinal, outra característica do pensamento colonial é a de ter as coisas em seu “devido” lugar. Mesmo sabendo que nunca nos deram, a nós artistas negras o direito ao erro quando se trata de experimentalismos. A relação com o que fazemos também é sob a perspectiva colonial. A arte de modo geral sempre foi um espaço do colonizador.

Mas o que a presença tem a ver com isso? Tudo.

Vivemos um período de repetição. De discursos, de verdades, de comportamentos. Como uma espécie de anestesia generalizada. O que pode ser capaz de afetar? De gerar alegria a todas as envolvidas no ato? Alegria aqui entendida no sentido espinosano de aumento de potência.

Em Obsessiva arrisquei a capacidade de geração de vínculos a partir da exposição. Se observarmos o modo de nos relacionarmos com o advento das redes sociais, a exposição de nossas vidas gera a sensação de intimidade com a outra. Mas isso não necessariamente implica na construção de vínculos, uma vez que estamos protegidos do afeto. Dispomos de ferramentas que usamos para delimitar a capacidade de afeto da outra sobre nós. Em Obsessiva é apenas exposição e proximidade. Em momentos de descuidos, que vão se tornando cada vez mais frequentes no desenvolvimento do solo, nos afetamos.

Aspecto 4 – A noção de presença atrelada a coletividade.

Não foi a minha presença que atraiu a atenção e emocionou o público,

O contexto da presença

Por Laís Machado

em sua maioria não artistas, mas a nossa presença naquele espaço, naquele contexto, materializou a nossa relação e nos afetou. Linhas de afeto em uma ou mais vias. Ao mesmo tempo em que as pessoas eram afetadas por mim, se perceberem enquanto agentes do afeto sobre mim e sobre as outras pessoas presentes no ato, as mobilizava.

Embora as relações entre atuação e público sempre tenham me interessado, foi a partir dessa experiência como atriz/performer e da leitura de um texto de Renato Ferracini intitulado “A presença não é um atributo do ator”, que eu coloquei a presença nessa equação.

Voltando ao contexto sócio-político. Em tempos de ascendência dos posicionamentos fascistas em nossa sociedade, temos nos questionado em relação à política, educação, etc, sobre estas figuras que são detentoras do conhecimento e da verdade, e nos questionado também sobre manutenção dessa comunicação de apenas uma via. Essa discussão deve também abranger os posicionamentos éticos do nosso fazer enquanto artistas. Acredito que está na hora de mudar a perspectiva sobre as bases que sustentam o nosso fazer e a relação com os fruidores em potencial daquilo que fazemos. A partir dessa mudança de perspectiva, passamos a enxergar o público como também agentes da cena. Dessa maneira podemos pensar a presença também como “ uma presença-acontecimento-espetáculo que mobiliza os agentes da cena (público e atores) para outros planos poéticos e de experiência” (FERRACINI, e PUCETTI).

Aspecto 3 – A técnica.

Então, sendo a presença cênica uma “construção e composição na relação com o outro” (FERRACINI), de que técnica de atuação estamos falando? Eu arriscaria dizer qualquer coisa que nos conecte com nós mesmas e com a outra e que aos poucos seja possível eliminar qualquer linha divisória entre qualquer coisa e outra.

Durante os dois anos de manutenção do Teatro Base, grupo do qual faço parte e que encerra suas atividades este ano, comecei a desenvolver uma pesquisa que venho chamando de Àjóràn ou Ojúran, palavras que em yorubá significam contágio e transe, respectivamente. A pesquisa, em termos práticos se configura como a criação de uma série de exercícios que venho criando e modificando que acredito serem capazes de me colocar em um estado mais sensível e ativo para a relação. Obsessiva Dantesca foi a primeira tentativa de aliar este procedimento à militância feminista. Aliando techné e Ethos, em busca de uma nova construção poética.

O que quero dizer com isso é que a partir do momento que revisitamos a noção de presença torna-se necessário revisitar o labor do atuante. Senão, nada disso faz sentido algum.

Aspecto 1 – O sagrado.

Gumbrecht define “experiência estética” como o que “nos dá sempre certas sensações de intensidade que não encontramos nos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos”(2010 apud MELO, 2014). E retirando da equação a visão hegemônica acerca do sagrado, que o coloca em diálogo imediato com o transcendente, defendo a teoria de que a relação com o sagrado se configura como uma experiência estética. Nada mais perigoso para qualquer discurso hegemônico do que um indivíduo que se coloca à espreita de novas experiências.

O ritual no sentido arcaico da palavra, é o espaço de encontro com o sagrado, portanto, se seguirmos a lógica que proponho, naturalmente um espaço de comunhão, coletividade e experiência. É neste espaço de intensidades que venho trabalhando minha poética. Não significa ser uma regra, mas acredito que esta noção de ritual pode nos trazer excelentes pistas sobre esta presença que se compõe em contato.

Retornando à noção de um ofício sagrado, já tão explorado por grandes estudiosos do fazer, entendendo o atuante como um agenciador de novas experiências estéticas para os que compõem aquele espaço de troca de intensidades e afetos, não apenas como um acumulador de ferramentas potencialmente inúteis se não atendem a nenhum propósito.

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[1] A tradução do sânscrito poderia ser “escritura sagrada” (Shastra) sobre “as artes cênicas” (Natya).

[2] Segundo a tradução de Sérgio Melo do livro Sanskrit Drama in Performance de Raghavan e se encontra no seus artigo para a Sala preta intitulado Por uma ontologia da presença cênica.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERRACINI, RENATO. A presença não é um atributo do ator. Linguagem, sociedade, políticas /Organizado por Eni P. Orlandi, Campinas: RG, p.227, 2014.

FERRACINI, RENATO e PUCETTI, RICARDO. Presença em Acontecimentos. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v.1, n.2, p. 360-369, 2011.

GUMBRECHT, HANS U. Produção de presença- o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.

MELO, SÉRGIO N. Por uma ontologia da presença cênica. Sala preta, São Paulo, V. 14, n.2, 2014 .

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