Geral


Na noite de 18 de novembro, sexta feira, resolvi fazer uma escolha arriscada: ir ao teatro assistir uma comédia. Há algum tempo, não via um espetáculo dito desta espécie, apesar de ter verdadeiro apreço pelas personagens cômicas. Dentre elas, o tipo que mais me agrada é aquele que se mostra sempre mais livre que qualquer espectador por possuir a licença para o ridículo, tornando-se assim símbolo de negligência das pressões sociais. Essas figuras, comumente, ignoram os próprios “defeitos” ou melhor ignoram aquilo que exprimem e que se torna o motivo do riso e dessa forma o gozo do observador tem sempre algo de cruel, pois está relacionado com o fracasso do alguém-personagem. Esse jogo é algo que me instiga a atenção em peças cômicas ou na palhaçaria, por exemplo. É bem verdade que uma comédia não clichê pode muito bem angustiar sua plateia, tornando-a momentaneamente constrangida em relação a si mesma e a seus próprios valores. Seria muito bem vinda essa sorte de experiência, mas, como não é o que normalmente ocorre com as comédias soteropolitanas, não criei grandes expectativas nesse sentido.

Ao chegar ao Gamboa Nova, naquela noite de sexta, temi não conseguir ingresso para assistir ao espetáculo O Jogo dos Signos, já que a entrada do pequeno e aconchegante estabelecimento estava lotada, como não costuma acontecer em produções de menor porte. Logo descobri que a peça, com direção de João Figuer e Fernando Ishiruji, era fruto de um curso de teatro para iniciantes e que o numeroso público era composto principalmente por amigos e familiares dos atores – que estes voltem ao teatro!

O que mais me interessou na trama descrita, no release do espetáculo, foi o fato de assumirem a utilização de uma análise clichê, a partir da astrologia, para descobrir qual personagem cometeu o crime central do enredo, motor da ação dramática. Acredito mesmo que estamos precisando começar a rir do modo banal e frágil como temos nos servido socialmente dos signos do zodíaco para explicar a nós mesmos ou aos outros. Toda vez que alguém me informa se é regido por áries ou por libra, tenho vontade de questionar: e você tem sede de que? O mesmo incômodo se dá quando uma pessoa, também sem nenhum aprofundamento na prática do candomblé ou da umbanda, declara-se filho desse ou daquele orixá, presumindo que todos sabem o que isso quer dizer (e essa expectativa também fala sobre banalização) ou como se isso por si o definisse e tivéssemos espalhados por aí vários irmãos gêmeos. O Jogo dos Signos, a partir da personagem de uma cartomante, de fato, abusa dos estereótipos astrológicos para provocar o riso em seu público. O resultado talvez já fosse de se imaginar: cada vez que a personagem sacava uma carta e descrevia determinado signo, alguém da plateia regozijava como se escutasse do/a amante alguma revelação inconfessável sobre si mesmo/a.

No mesmo release, lê-se também que o espetáculo é uma comédia que flerta com o suspense. Minha experiência inverteria a ordem das palavras e falaria de um suspense com um tanto de comédia, pois foi marcada por uma tensão constante permeada por algum humor. O delegado, ao longo do espetáculo, ia interrogando os demais personagens, um a um, a fim de descobrir o que poderiam ter feito no passado que os tornassem suspeitos do crime investigado. O retorno ao pretérito era feito a partir de um blackout e, por serem muitos personagens, esse mecanismo de apagar e acender a luz, em algum momento, tornou-se cansativo. Apesar disso, o modo como os fatos passados individuais eram relacionados entre si ao longo da trama fez com que eu permanecesse atenta ao desenrolar das ações pelo tempo em que a peça durou.

A personagem mais curiosa é uma crítica de arte – a história se passa numa galeria onde há uma exposição. A performance do ator, confiante em cada gesto e precisa em toda intenção, mais do que o caráter do personagem em si, contribui bastante nesse sentido: é um corpo que convida o olhar da plateia até nos momentos em que não é o foco. É possível observá-lo sempre presente e preparado para a próxima peripécia. Essa figura, cada vez que um artista ou uma obra é citado/a, vai à frente do palco informar ao público de quem / o que se trata, como se, ao crítico, bastasse apenas possuir dados sobre a história da arte para criticá-la. A personagem não contextualiza, não argumenta, não pondera sobre nenhuma informação que traz, como se não coubesse ao crítico o exercício do pensamento. Dessa maneira, apresentou-se uma boa análise sobre a forma como comumente pratica-se a crítica pelo menos em Salvador: “a obra de fulano fala sobre isso e é ótima / péssima, fim. O mecanismo de “pausar” o espetáculo sempre que a crítica ia dar suas explicações se tornou enfadonho pelo mesmo motivo que o blackout como mecanismo de retorno ao passado: repetiu-se excessivamente.

 

 Não é o caso de deixar de mostrar o que existe, mas ao contrário de, revelando,  evidenciar a mazela que lhe é própria.

Uma escolha que parece ser compartilhada em produções com entusiastas do teatro (falo de atores) é o “como começar a se relacionar com esta arte”. A impressão que dá é que a Rede Globo e seu “naturalismo artificial” define a performance dos intérpretes – e daí se pode inferir que determina o próprio processo de criação e os ensaios. Notei isso também em O Jogo dos Signos: o rosto, como parte de um corpo rígido, torna-se o principal, senão único, instrumento de expressão. No espetáculo, os padrões comportamentais são exibidos, em harmonia com o discurso dominante, e em nenhuma esfera contrariados. Há o homem moreno, alto, bonito e sensual e várias mulheres querendo seduzi-lo; há a mulher que gosta de sexo, mas precisa provar que mudou para ser aceita; existe o homem irresistível que se vale de seu charme para roubar uma mulher apaixonada e, por isso, estúpida; há várias mulheres enamoradas desse homem mau caráter e há, no todo, a exposição de tais opressões pacificadas, como se refutar esta realidade não fosse necessário.

A comédia pode ser um excelente instrumento para avacalhação de algo inaceitável. Os personagens cômicos, desinteressados e ridículos, tem o aval para falar do que querem num tom de quase indiferença. Não é deste tipo de personalidade que se vale O Jogo dos Signos. Lá, há a exacerbação dos traços de indivíduos comuns sem problematizá-los e, desse modo, ao contrário da negligência das demandas sociais, apresenta-se uma conformação com o discurso dominante e opressor, além de sua reprodução para fazer rir. Não é o caso de deixar de mostrar o que existe, mas ao contrário de, revelando, evidenciar a mazela que lhe é própria.

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