Selfie | Cênicas


Encontro um amigo que me dá carona até o centro da cidade. Em pouco tempo estou na praça Ruy Barbosa. Dou uma volta, converso com alguns conhecidos e depois sento numa mesa para comer pastel e beber Coca-Cola. Depois de conseguir me livrar do excesso de óleo nos dedos, levanto e caminho até um ponto mais distante onde noto certa aglomeração. Uma jovem andrógina faz beatbox com o auxílio de um pequeno aparato eletrônico. Começo a assistir.

Estou na praça porque quero. Ver as pessoas de Jequié e as atrações do 13º Festival Internacional de Artistas de Rua da Bahia me dá um prazer que não teria em Salvador, cidade onde nasci e cresci. A cada vez que assisto alguma atividade artístico-cultural na cidade onde hoje resido e trabalho, entendo melhor os motivos do meu desinteresse para com o “meio” teatral soteropolitano. Mas também estou na praça porque tenho que fazer este texto e os pensamentos sobre o que escrever estão, inevitavelmente, junto com a jovem russa que faz seus jogos vocais ao microfone.

Assim sigo nos primeiros momentos: corpo numa desconfortável rigidez, esforço para compenetrar-me, para estar ali. Há também certo desconforto por não saber o que virá a seguir. Não posso perder nada, a praça é grande, são muitas atrações, preciso escrever sobre isso, o que vou escrever?, “a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo”, ela é homem ou mulher?, será que estão percebendo meu desconforto?… Droga! É óbvio que eu deveria ter tomado umas cervejas ao invés da Coca-Cola.

Mas ela está nervosa também. Talvez mais do que eu. Acho que ela percebe que o público não parece responder como o esperado. Ela canta músicas em inglês que não parecem fazer parte do repertório de quem a ouve. Ela sente isso e enfim encontro alguém. No nervosismo dela, nos pequenos sinais de fracasso, eu encontro uma amiga, um alívio. Eu me encontro.

Assim como me encontro na placa colocada num poste próximo e que demoro para enxergar: Ponto 1. Parece que há um itinerário marcado, não irei me perder, provavelmente conseguirei assistir tudo. Tenho aquela sensação de sentido que possivelmente os religiosos devem ter ao acreditar em deus.

Abandono a minha amiga russa, não sem antes postar algo no Instagram, e sigo. Há uma estátua viva ali perto. As crianças se divertem colocando moedas e recebendo bilhetinhos em troca. Definitivamente, a melhor coisa da arte de rua não é a arte de rua em si, mas a rua. Tenho certeza de que foi algum artista egocêntrico que, cansado de ver crianças, bêbados e loucos roubarem sua cena, criou as plateias mudas das salas fechadas. Aliás, sinto falta de um louco ou bêbado nesse festival. Não que as atrações não sejam interessantes, mas acho que a produção, para uma próxima edição, deveria investir num borracho.

Voltando, é claro que num dado momento deus revelou sua verdadeira face e atrações começaram a acontecer simultaneamente, me deixando aflito com relação ao que assistir. Havia um ponto com bastante gente ao redor. Óbvio, estamos no Brasil e há um humorista (argentino) fazendo brincadeiras com o futebol. Num momento de palmas, grito um estúpido “Maradona!”, que, ainda bem, quase ninguém escuta, e logo saio pra ver outra atração.

Não sei se foi esse grito libertador, mais conhecidos chegando ou a descoberta do livre-arbítrio. Mas o fato é que já não pensava mais sobre o que escrever ou me sentia desconfortável ali. Passei a transitar tranquilamente entre o casal que fazia música e recitava poesias, as estudantes fazendo performance, uma musicista alemã, outro do Reino Unido. Aliás, este último, que estava lá no mesmo ponto 1 em que topei com a minha amiga russa, encontrei quando já estava um tanto cansado de circular e ver tantas atrações (somado ao fato de que acordei cedo no dia e fui a Vitória da Conquista, que fica a cerca de 150 km de Jequié). Peguei sua apresentação já do meio para o final. Poucos o assistiam, mas sentei num banco e estava no meu melhor momento da noite: voz, violão, gaita e descanso.

Dali, voltei ao esquema anterior. Ao sabor dos ventos. A musicista alemã ainda estava lá e depois me deparei com uma mulher mexendo com fogo. Ainda haveria um “homem banda”, um show de tango, uma acrobata e mais música. Mas já não me sentia mais na obrigação de ver tudo. Ainda vi uma argentina que misturava humor com contorcionismo. Ri das maiores bobagens e percebi que já não podia mais ser o amigo da russa. O que tínhamos em comum se perdeu e eu nem gostava muito das músicas que ela tocou, na verdade. O que eu estava adorando era aquela argentina. Acho até que gritei novamente “Maradona!” antes de sair.

Não queria deixá-la, no entanto precisava ir para a despedida de uma colega. Antes, olhei de volta a praça e vi que ainda havia um bom público. Sorri. Juro por deus. Depois, no bar, entre uma conversa e outra, aparece um garçom. Peço um suco de limão. Já tomei Coca-Cola e no dia seguinte dou aula cedo. Nada de cerveja.

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