Crítica da Crítica | Cênicas


O Caso Wagner

março de 2017

Edição: 10


A partir da coluna Martin Gonçalves, do site Feminino e Além (http://femininoealem.com.br/category/noticias/cultura/martim-goncalves/).

As coisas do mundo estão uma loucura e é quase um problema, frente à urgência geral, ainda ter de escrever sobre Henrique Wagner. Mas fazer o quê. O autodenominado “crítico impressionista” é tão persistente que, entra ano, sai ano, vai se transformando num pequeno calo em meio à vulnerabilidade teatral. Termina cagando regras e confirmando aquela velha imagem da crítica personalista, despropositada e judiciosa.

A despeito da ingenuidade de suas argumentações, cada novo texto do resenhista de boteco dispara fuxicos e silêncios suspeitos, isso sem falar na implacável ala dos ressentidos, consumidores principais do seu estilo.

Frente aos ataques alguns se calam, supondo uma superioridade genérica, que é, honestamente, difícil de comprovar. Esses optam pela máxima “o silêncio é a melhor resposta”, entoada com com a nobreza de um Dom Quixote em seus melhores momentos de delírio. Outra boa parte — inexplicavelmente intimidada, dada a envergadura da ameaça — simplesmente se retrai.

Quanto ao seu trabalho sobre as artes cênicas, imagino que a exposição do corpo dos artistas em tempo real, particularidade ausente no mundo das letras, deva ter lhe dado a coragem e o conforto suficientes para a prática da covardia intelectual. Mas não é difícil perceber a fragilidade dos textos. Se pegamos pela raiz, procurando tutano, tudo vira pó. E se diz “Márcio Meirelles não é um homem de teatro”[1], podemos retrucar: “Henrique Wagner não é um crítico”. Silogismo básico, mesmo que a primeira assertiva esteja longe da verdade. Aliás, que tipo de mentalidade se aferraria a essa mitologia batida do “homem de teatro” ? Seria o mesmo que adorar monstros sagrados.

Grande parte da covardia wagneriana começa na apresentação do site onde escreve atualmente[2]. Assim está inscrito no umbral da nova Wagnerlândia: “A coluna Martim Gonçalves pretende publicar textos deliberadamente impressionistas sobre peças de teatro baianas”. Ora. É lugar comum entre escritores de críticas reais, encarar “críticos impressionistas” como pequenos parasitas. Esconder-se sob as próprias impressões sem expor suas pulsões é o equivalente exato ao tiro dado pelas costas ou ao golpe no saco durante uma luta com regras claras. É certo que qualquer pessoa está apta a escrever suas próprias impressões. Mas sensações todos possuem de bom grado e, como diria o injustiçado Descartes nas palavras iniciais do Discurso do Método, gosto é que nem cu, cada um tem o seu. Nada disso justificaria o tempo doado à execução de uma crítica.

Ou seja, se Wagner quisesse ser levado a sério, teria de começar a desenvolver qualquer pensamento que fosse, em vez de viver na base da polêmica fácil. De modo que quando o leio, procurando qualquer traço de inteligência a serviço de outra que coisa que não a tiração de onda, não encontro absolutamente nada, a não ser fraseologias espirituosas, todas voltadas ao louvor da própria capacidade intelectual, como por exemplo: “Barulhento e visivelmente sujo, com excesso de movimentos (quase todos gratuitos) por parte dos atores, o Romeu e Julieta de M.M. acaba por legitimar a hipótese de que Shakespeare ‘não existiu’ ”. Aqui vemos até que ponto a vontade infantil de ser afagado e chamado de sabidinho pode chegar. A maioria dos seus períodos são construídos assim. Começam num tartamudeio adjetivesco violento, para depois investir toda a energia numa piadinha espirituosa. Não tem mistério: o núcleo de seu estilo é a derrisão engraçadinha — o que o escrevinhador faz muito bem — e só.

Sequer sobra tempo para sopesar a potência de qualquer coisa que seja estranha a ele mesmo. A prática da alteridade é um dos grandes trabalhos do crítico; possivelmente, o principal. Não há como abrir espaços para a análise se não se deixa que certas estranhezas, como no seu caso, o “barulho” ou a “sujeira” emitam suas próprias potencialidades, ou que não testemunhem contra suas acepções negativas, na maior parte das vezes, projeções de quem escreve. Deve-se deixar a obra viver por si mesma durante um tempo, de modo que a subjetividade do autor se modifique ao contato, mesmo que não substancialmente. Pressionar obras contra a parede, inquiri-las e julgá-las são práticas totalmente alheias ao campo da arte, sendo muito mais afeitas à prática policial ou militar.

 

Esconder-se sob as próprias impressões sem expor suas pulsões é o equivalente exato ao tiro dado pelas costas ou ao golpe no saco durante uma luta com regras claras

Como em toda crítica mal embasada, ficam mais evidentes os problemas do crítico que os da obra. Seu corpo fica exposto. É como se o texto virasse seu próprio diagnóstico. Por isso fica fácil entender o que para Wagner significa uma obra saudável. Se entendemos o que para ele significa a saúde e a doença, entendemos de que matéria é feita sua crítica. Portanto, diagnostiquemos o rapaz em apenas duas frases, justamente quando ele consegue “gostar” de um espetáculo: “Com essa estrutura, com esses tipos, Egotrip nos leva a gargalhadas intermináveis – a casa, cheia, não parava de rir nem para ir ao banheiro verter o resultado de algo tão saudável, diurético”. Ou: “(…) sai-se da peça de João Sanches com o fígado desopilado”[3]. Todos sabemos que classe de espíritos precisam o tempo inteiro de diuréticos e desopilações. Algo preso insiste ali dentro; algo que precise ser lavado, expurgado.

A ideia de encarar a estética e o pensamento como questões de saúde pública não é nova. Nietzsche, por exemplo, recomendava que só se manipulasse a Bíblia usando luvas. Também sugeria ao leitor caminhar enquanto pensa, e a preferir ambientes abertos, por onde passassem brisas frescas, em lugar de alcovas fechadas. Quando falava de Schopenhauer, diagnosticava-o como vítima do tédio que o próprio filósofo tematizava. E, finalmente, defendia que os gregos antigos adoravam tragédias porque esbanjavam demasiada alegria, enquanto seus contemporâneos, bichos neuróticos e entediados até a morte, preferiam contar com a comédia mais idiota como uma de suas salvações. A redenção dessa espécie de gente, como vemos, é de natureza basicamente diurética. E se intestinal, nada que não se resolvesse fazendo uso de um bom laxante.

Por essas e outras é que Henrique Wagner não carrega sozinho a culpa do azedume que expele a cada comentário. Ele é apenas um dos sintomas dessa enfermidade geral. Lendo seus textos, consigo até sentir um misto de pena e esperança, como se seu estilo me levasse a pressentir algo mais que queixumes, ataques gratuitos e lamentações. Em outras circunstâncias, escritores de frases ágeis, diretas e claras geralmente produziram obras plenas de vida. Por isso consigo vislumbrar aqui e ali, pelas frestas, uma certa quantidade de raios solares. E como seria bom se um escritor como Wagner, que claramente possui uma intimidade com as palavras, conseguisse expor outra coisa que não uma vida repleta de ressentimento. E principalmente, que não empurrasse suas próprias neuroses goela abaixo daqueles que observa, como se o problema estivesse sempre no outro, e não na pena de quem escreve.

__________________________________________________________________

[1] “O Romeu e Julieta de Márcio Meirelles”, crítica de 23 de janeiro de 2017, no site “Feminino e Além”.

[2] Entre as curiosidades do site “Feminino e Além”, há uma coluna de nome “Príncipe Sapo”, na qual um sombrio e “romântico” historiador, comentador de relacionamentos, declara: “O casamento faz bem, a família é a base de uma sociedade complexa e próspera.”

[3] “Egotrip”, crítica de 15 de fevereiro de 2017, no site “Feminino e Além”.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.