Crítica | Cênicas


Foto de Mariana David

Entre os dedos

março de 2017

Edição: 10


Crítica a partir das Loucas do Riacho

Loucas do Riacho, coordenada criativamente por Raiça Bonfim, não se caracteriza como uma obra de fácil acesso, e acredito ser difícil formar uma opinião estando lá apenas uma vez. É preciso se despir de muita coisa, inclusive da necessidade de manter-se na zona do entendimento. A obra propõe uma experiência estética a partir de uma imersão sonora e imagética. Preciso deixar claro antes de seguir que é impossível falar das Loucas sem mergulhar na minha própria experiência ali dentro, uma vez que tentar me distanciar para atender a determinados parâmetros da crítica da cena seria criticar uma impressão da obra e não a coisa em si. Estive lá duas vezes. Sinto por não ter estado a terceira antes de escrever este texto, pois, de minha parte, foram percepções e sensações muito distintas. Em uma mergulhei num lago morno e acolhedor e em outra num poço frio que ora me relaxava, ora me fazia ranger os dentes. Queria ter ido tirar a prova dos nove. Tirar a média. Se é que isso seria possível.

Dentro de um casarão do no bairro de Santo Antônio Além do Carmo, encontramos seis corpos nus espalhados pelo espaço com seus rostos cobertos por uma enorme cabeça de algas. O mais relaxado que se pode estar ao receber alguém. Podemos nos colocar em qualquer espaço da casa (esta é a instrução), mas automaticamente se formaram (nos dois dias em que estive) uma espécie de arena. E se inicia a expectativa. A espera de que alguma coisa acontecesse. Durante muito tempo nada acontecia, e dava para sentir, como se fosse possível tocar, a atmosfera de expectativa crescer e começar a gerar um incômodo.  Então a vista viciada procura qualquer tipo de movimentação nesses corpos. Como se uma troca de peso indicasse que alguma coisa iria começar, e nada acontecia. Nesse jogo de expectativa e frustração, a escuta se amplia. Reflexo de seres tão desesperados por relações e sentidos, como somos. Ouço, então, pela primeira vez, a goteira na bacia de metal.

Aos poucos essas criaturas aquáticas despertam e caminham pela casa. Trocam entre elas, usando de códigos desconhecidos por nós. Códigos que só haviam sido estabelecidos entre elas. Códigos a que fui atribuindo significado na medida em que se repetiam, e que só foram estabelecidos de mim para elas.

Na medida em que se diminui o tempo necessário para se formarem as conexões entre nós, o espaço e as Loucas, uma atmosfera sonora começa a ser composta com a interferência de André Oliveira nas programações. Além dos sons, resmungos, cantos, havia ali uma programação que parecia jogar na hora com o que era produzido por elas. Esse é um elemento muito importante em toda a composição. As atmosferas sonoras estimulavam e interferiam na percepção das imagens escolhidas para serem contempladas, recorte que era feito a partir do lugar de onde se escolhia ver. Era um dos bisturis mais afiados para a imersão.

Saí do primeiro dia refletindo sobre a importância desse elemento e, coincidentemente, na segunda vez em que fui assistir, André não foi, e a mudança das texturas sonoras programadas ficaram a cargo de Raiça Bonfim, que também estava em performance, mas que, para atuar nesse espaço, precisava romper o próprio fluxo. E mesmo eu tendo reconhecido os sons, dessa vez, soavam apenas mecânicos.

Um de meus primeiros pensamentos ao encontrar as Loucas foi: Nossa! Que bonito. A imagem inicial, o espaço, a vista, os corpos, suas explorações do espaço. Com isso, senti-me impelida a explorar os meus modos de contemplar. Quais eram os meus limites naquele espaço? Isso não ficou claro para mim. Por outro lado, descobrir, investigar, testar, explorar, ir e entender os limites da minha interferência no espaço pode ser uma experiência muito agradável e reveladora. E esse caminho era guiado, facilitado ao compartilhar a exploração delas. Quando elas descobriam, investigavam, testavam, iam, entendiam os limites da própria interferência no espaço.

Nesse ponto, todos os elos criados eram frágeis, finos, tênues. E aí é que está a dificuldade de acesso. Porque demanda uma escolha: ou você cuida desses elos, vela-os, nutre-os, ou eles se rompem com o mínimo de esforço.

Entretanto, algumas intervenções e atitudes tornaram por vezes essa experiência constrangedora: a presença do registro fotográfico e do produtor

…descobrir, investigar, testar, explorar, ir e entender os limites da minha interferência no espaço pode ser uma experiência muito agradável e reveladora. E esse caminho era guiado, facilitado ao compartilhar a exploração delas. Quando elas descobriam, investigavam, testavam, iam, entendiam os limites da própria interferência no espaço.

Rebate à crítica “Entre os dedos” de Laís Machado

 Por Raiça Bonfim

É engraçado que a crítica comece falando de Loucas do Riacho pelo o que ela não é (uma obra de fácil acesso). Penso também no que seria essa ideia de acesso. Trata-se de uma obra em que não é fácil entrar, em que não é fácil estar, em que não é fácil entender? Adoraria que Loucas fosse sentida como um território em que as portas estão abertas para entradas múltiplas, estados variados, convivência, vislumbres, sem a urgência de entendimento.

Ao ler que foi difícil formar uma opinião, me pergunto pra que serve uma opinião formada? A fruição de uma obra artística não prescinde de opiniões? E a crítica, precisa mesmo trazer opiniões formadas? Lembrei de uma passagem de Jorge Larrosa, em suas “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, em que ele diz que “a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça.” É interessante essa fala de Larrosa porque ela se conecta justamente com o que você diz em seguida, do que você sente que Loucas de Riacho é: “uma experiência estética, uma imersão sonora e imagética”. Acho que as experiências se traduzem em algo como relatos, não como opiniões.

Tampouco acredito na possibilidade de tirar uma prova dos 9, como se conhecer fosse apreender com clareza numa perspectiva final que desmascara o que a coisa é realmente, para além do que ela é em cada ato, em cada momento, na conexão com cada jeito de corpo-espírito que encarnamos a cada dia. Ou como se a verdadeira percepção fosse resultado quantitativo das vezes que sentimos mais assim ou mais assado. A frequência das sensações que temos é muito reveladora de nossos apetites e necessidades, mas acredito que a experiência não seja equacionável.

Loucas do Riacho surge da possibilidade de criar a partir da vulnerabilidade, da perda, da fragilidade, do encontro. O principal objetivo é diluir os contornos que pessoalizam cada corpo, que demarcam cada identidade e que objetivam a linguagem (essa linguagem que é ordem, poder e que é bem macho), para deixar emergirem, ainda que por um instante fugaz, novos modos de ser, novas gramáticas. Aqui a Ofélia louca e afogada se faz presente enquanto mote: um corpo de mulher (e o que é um corpo de mulher? quais os borrões possíveis nele?) cuja linguagem transborda em loucura e cuja matéria se dilui nas águas.

Na construção do trabalho, não pensamos no que causar ao público – quebra de expectativas, incômodo etc. -, mas em como estar disponíveis para encontrá-lo, permitindo-nos silenciar, esvaziar e articular sucessivas aberturas. E em como criar uma estrutura que o convidasse para despir-se dos temperamentos cotidianos e mergulhar conosco no riacho das loucas. O roteiro é: aceitar o vazio, estar; deixar que as águas do corpo ressumem; buscar afluências; invocar o rio; ser rio; alagar. Esse roteiro nasce depois que, em cada etapa do processo, a possibilidade de ditar, de acertar, de conduzir, de dominar era arrastada pra mais longe. O que restou como procedimento central, arriscado e sincero foi trabalhar para que o rio corra entre nós, entre os corpos que habitam a casa a cada dia, e que, a partir das afluências sutis entre desejos, olhares, silêncios, movimentos, as ações despontem.

Quais são os limites dentro de um espaço de abertura? O que pode alguém frente a outro alguém que não lhe diz o que fazer, mas tampouco lhe diz que não. Quando os pactos de respeitabilidade e boa convivência não estão claros somos requisitados a olhar atentamente para o outro, para entender nossos limites e possibilidades na relação dinâmica com ele. Essa desorientação que acontece nas Loucas talvez represente uma grande demanda para o público, mas acredito que é uma demanda necessária e que pode ser transformadora realmente, ainda mais em tempos de re-conhecer quem somos e quais são nossos aliados.

Acho triste pensar que “durante muito tempo, nada acontecia”. Se estamos falando de acontecimento, acontecer nada é um fracasso. No entanto, pensando no nada de modo substantivo – “durante muito tempo, O nada acontecia” – e isso corresponde exatamente às buscas das Loucas. A invocação do nada como possibilidade de despojar-se dos cansaços, expectativas, ansiedades, do excesso de discursos. Livrar-se da exigência de produzir gestos cênicos para dar vazão ao que se cria naturalmente enquanto cena: o pôr do sol na baía de todos os santos, as cigarras que começam a cantar em coro, as paredes brancas e descascadas da Casa de Castro Alves, o teto alto, um vestido azul brilhante pendurado, um matinho que cresce lentamente de uma trama de tecido que pende no centro da sala, o lustre antigo de lâmpadas quentes, corpos nus sem rosto, que sentam, deitam, levantam, ficam, ficam, ficam… E tantas outras coisas, cuja voz precária não precisamos traduzir, mas apenas abrir passagem pra ressoar.

A pactuação de códigos, enquanto gatilhos pré-acordados cuja compreensão é partilhada por todos, foi dispensada. Trabalhamos com exercícios de escuta sutil, a partir da qual o que uma produz, antes de ser “decodificado” pela outra, provoca-a e gera reverberações imediatas.

Para criar o riacho, muita gente se misturou (você, inclusive). Entre essa gente, Fábio Pinheiro, com os detalhes preciosos de uma cenografia/figurino que aderem ao espaço e ao mesmo tempo transfiguram-no. Márcio Nonato, trazendo na iluminação uma linha tênue entre a casa e um espaço fundo, abissal. E André Oliveira, com uma sonoplastia que forma essa rampa pela qual o público vai sendo lançado para dentro das águas.

Sobre a sensação diante da ação de Mariana (fotógrafa), de fato, é um desafio entender como esse olhar fotográfico que enfoca e que emoldura o instante pode conviver num espaço que é de pulverização e turbidez, onde não há uma direção focalizada. Mari integrou o processo das Loucas de modo muito fluido e o seu corpo também esteve imerso no trabalho. Mas percebo que há um paradoxo da coisa em si, na incidência da fotografia que captura imagens num acontecimento que é de diluição. E compreendo a decorrente imposição de olhar que o gesto de fotografar pode gerar no público. É um tema que ainda vai render boas confabulações com Mariana. Em um dos dias de apresentação, cheguei a brincar que seria lindo se ela também estivesse nua, com a cabeça de sargaços, fotografando, tal qual fazem os cegos, a partir dos sons e sensações. Mas esse percurso, o de desnudar-se e assumir-se enquanto performer, precisaria ser construído aos poucos e em conjunto, se fosse o caso.

Já sobre o olhar de Júnior (produtor), leio como uma percepção muito individual. Mas entendo que Júnior, como integrante da equipe e anfitrião, é um dos faróis do público para pescar permissões e impedimentos nos modos de colocar-se e agir. Durante a temporada é que fomos percebendo essa dimensão e compreendendo as nuances dessa comunicação quase que involuntária.

Sobre a presença material da água, quando montei o solo “OFÉLIA: sete saltos para se afogar” conversei com Erick, responsável pela cenografia, que não queria em absoluto usar a água propriamente, uma vez que toda a composição do espetáculo metaforizava esse elemento. Ali, usar a água seria uma grande redundância. Em Loucas do Riacho, sinto o contrário. Não estamos lidando com metáforas, mas com variações da possibilidade de emergir e com o sentido expansivo da loucura. E nisso, a sensação de umidade, o banho de cheiro, a temperatura da água são muito importantes.

Pensei numa frase bonita para terminar esse rebate e me ocorreu um poema de Jorge Luís Borges que Felipe (Benevides) levou para as apresentações. Pra mim, esse poema responde a tudo:

“O segundo crepúsculo.
A noite que mergulha no sono.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo.
A manhã que foi a aurora.
O dia que foi a manhã.
O dia numeroso que será a tarde desgastada.
O segundo crepúsculo.
Esse outro hábito do tempo, a noite.
A purificação e o esquecimento.
O primeiro crepúsculo…
A aurora sigilosa e na aurora
a inquietude do grego.
Que trama é esta
do será, do é e do foi.
Que rio é este
pelo qual flui o Ganges?
Que rio é este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é este
que arrasta mitologias e espadas?
É inútil que durma.
Corre no sonho, no deserto, num porão.
O rio me arrebata e sou esse rio.
De matéria perecível fui feito, de misterioso tempo.
Talvez o manancial esteja em mim.
Talvez de minha sombra,
fatais e ilusórios, surjam os dias.”

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