Selfie | Cênicas


Colagem de Diego Pinheiro

Egípcias e Outras Colagens

abril de 2017

Edição: 11


VII

Mas já dentro da performance de Malayka, sinto minhas contradições vulcanizarem. É ridículo estar num espaço e pensar que encontrou algo que esperava tanto – é necessário perder essa necessidade de conceitualização, tanto no agenciamento que nos leva à obra quanto no que nos leva ao depois da obra. Toda a produção crítica cairia naquelas redomas costumeiras e horizontalizadas pelos críticos de cinema, de Roger Ebert a Pablo Villaça. A crítica de cinema é uma coisa. Consegue, de um modo ou de outro, produzir um texto boleado. Fecha qualquer possibilidade numa máxima semiótica.

III

Claro que, em meus parcos estudos sobre a civilização egípcia, tinha um interesse agudo pela sua mitologia e o antropozoomorfismo – admito que é meio cruel resumir a mitologia às possibilidades de colagens entre homens e animais, negligenciando a sua realidade simbólica. Mas desde cedo tudo que é meio disparatado me chama a atenção; talvez seja a hora de levar isso a sério.

IX

Ser convidado para estar em Bastet, principalmente como uma espécie de abantesma, é lembrar que Diego Alcantara sempre expressou seu interesse pela mitologia, seja ela egípcia, yorùbá, grega ou romana. Lançava algumas dessas referências quando falava de cultura pop ou de alguma performance que estávamos criando juntos. Mesclava essas referências, inclusive, quando tecia alguns argumentos críticos das performances que via. O interessante é que ele não aludia a um imperativo intelectual metido a doutor, mas a uma necessidade, por vezes poética, de justaposição.

IV

Na verdade eu não sabia que existia essa profissão, a de egiptólogo. O que eu queria mesmo era ser pesquisador da civilização egípcia quando mais velho. Cheguei a investigar áreas que contemplassem essa minha necessidade e, durante um período curtíssimo, achei que futuramente optaria por me especializar na área de antropologia. Ser um Henry Jones Júnior, sem aquela característica hollywoodiana, obviamente. Por felicidade, desisti de ser um colonizador de profissão.

VIII

Essas realidades codificadas caem por terra na construção do fenômeno. Malayka não carregava um braço de manequim masculino por acaso. Em seu quarto – todos as performances ocorrem nos quartos dos artistas que residem na casa – lá estava uma divindade masculina,  carcaça de boi e corpo de homem, deitado a sua cama. Havia um velamento de um suposto antigo homem entre os silêncios e as músicas ritualísticas que saíam de seu computador. Vagarosamente, o mistério era concebido para morrer. Quando ela saiu do quarto, deixei de ser a egípcia de Malayka para me aproximar do morto. Ao mesmo tempo, um gato pula na cama – Bastet vigia minha expectação. Cabeça bovina. Corpo de homem. Short de surfista. Na camisa, pirâmides do Egito. Duplo possível.

II

Os livros foram condenados às traças e a camisa, de tão surrada pelo uso, se transformou em pano de chão – antigamente as camisas de algodão eram preferência para essa função, já que absorviam melhor a água; não eram como esses trapos de hoje, de trama apartada e que só ampliam a nojeira. Ótimo para os pais, péssimo para os filhos. Só hoje entendo essa astúcia[1].

VI

Depois de tanto perambular pela Casa Monxtra, espaço performático de Bastet – muitas das pessoas já tinham compartilhado de algumas das performances – eis que encontro a personificação da ethos egípcia: Malayka SN “se faz de desentendida, faz que não viu, mas viu tudo, sem nem sequer mexer o pescoço”, é essa a definição, no Dicionário inFormal, desse jargão que fomentou tantos memes. Definição das melhores, posto que tira a gíria de uma área melindrosa, nos apresentando a performatividade ali implícita. Malayka esquadrinha tudo, parece que não há pontos cegos em seu perímetro. A imagem da performer com um braço de manequim masculino de cor azul marinho substituindo o seu próprio braço, enquanto, com um olhar gélido, mapeia o corredor onde se ajuntava um número graúdo de pessoas; emana uma atmosfera de esfinge, seja pelo seu enigma, seja pela sua fome.

I

Lá para os anos iniciais de minha adolescência, sustentei uma curiosa vontade de ser egiptólogo. Isso se deu com a aquisição, em um sebo na saudosa rua 6 de Janeiro, na Cidade Baixa, de dois volumes intitulados O Mundo Egípcio, da coleção Grandes Impérios e Civilizações, da editora Del Prado. Essa obsessão durou até os 16 anos, se não me falha a memória, e era tanta (só tendo esses volumes como referência) que um amigo me presenteou com uma camisa azul marinho que tinha como estampas as pirâmides.

XI

Fiquei em frente à Casa quando me pareceu que a experimentação tinha dado por finda. Enrolava meu cigarro enquanto conversava com Malayka e outros tantos que estavam também inseridos na Per-Bast[2] temporária, quando fui tomado pela certeza de ter sido irresponsável. Não vi a performance de Shankar e estive, meio que às pressas, nas performances de Loren Taba e Frutífera lha.  Ora, me parecia que “se fazer de desentendido, fazer que não viu, mas viu tudo, sem nem sequer mexer o pescoço” era imprescindível para todos os fantasmas ali, sobrepostos. Sei que terá pessoas dizendo “mas você viu o que tinha ver”, “a obra é assim” etc, etc… essas patrulhas que sobrevoam as artes contemporâneas. Só diria para me deixar morrer com essa questão, se assim fosse do meu gosto: por que é condição dos contemporâneos não serem generosos?

V

É a partir desse meu antigo interesse que começa o meu envolvimento com a obra Bastet (direção geral de Diego Alcantara, que também está como performer). Ao ver a arte do experimento, um corpo humanoide e a cabeça de gato como um ciclope – uma figura aparece acomodada em sua contemplação preguiçosa de um olho só – comentei na postagem do facebook: fazendo a egípcia. É interessante pensar que neste momento começamos alguma relação com a obra. Essa relação já está fundamentada nas projeções possíveis. Através da imagem já estava eu organizando uma espécie de digrama: Bastet obra, Bastet divindade, Civilização Egípcia, Diego Alcantara e o Mito, Série da Del Prado, fazer a egípcia como ética crítica e performativa.

X

Muito embora as performances ali concebidas possuíssem a pujança de seus artistas, estar inserido naquele experimento foi como adentrar o espaço mitológico, vasculhar os mistérios que povoam o imaginário de Diego, entrando em contato com as suas possibilidades divinas. Seria como estar no Mundo de Tim Burton – outro artista por quem o ator e performer tem estima especial. Estando em seu minúsculo quarto, espaço de sua performance, comi pão e bebi água de jarra de barro ao som de Barbara Lewis. Foi uma interação estética pautada nos silêncios e na observação de alguns escritos. Acho que começo a entender o furacão do que Diego chama de mito pessoal – não há nada mais a ser dito sobre isso aqui.

Quando saí da performance de Diego, tive um breve pavor do futuro e, de dentro do quarto, saía um ilá de cágado. Ele abre novamente o quarto para uma nova interação.

Maiorzinho, it seems like a mighty long time.

_____________________________________________________________

[1] O jeans é o melhor de todos.

[2] Antiga cidade egípcia que cultuava a deusa Bastet. Significa, em livre tradução, Casa de Bastet.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.