Treta | Cênicas


Aquecimento

O que significa se vender? Diferentemente do movimento envolvido na troca de bens e valores cuja negociação outorga a uma das partes envolvidas a posse sobre um objeto, quando alguém se vende há algo mais que vai junto no ato. Nos usos cotidianos, a forma reflexiva do verbo está quase sempre ligada a transações desonrosas para os envolvidos: o político que se vende, a prostituta – a mulher que se vende, o juiz que se deixa comprar; o jogador de futebol que se vende para o clube rival. Nos exemplos listados percebe-se a arbitrariedade moral que coloca sob o mesmo pórtico autoridades corruptas, o desportista em seu livre arbítrio e a mulher que por decisão própria cobra determinada quantia pelo usufruto temporário de seu corpo – sendo esse último caso o mais cruel e exemplar de todos, pois é a ela que os valorosos sob pressão recorrem no drama da língua “não vou me vender, eu não sou puta”. A dimensão vil do metal escorre pelos desvãos das vidas porque ele toca os limites vacilantes do imponderável. Resta sempre um desconforto quando um valor é acertado. Em dólares americanos de hoje, quanto vale a decisão de um oficial de justiça, por quanto fica o pacote de aulas particulares de Aristóteles para Alexandre, quanto, afinal, custa uma noite com a mulher amada?

Nos nove círculos do inferno das artes, os demônios do dinheiro aparecem segundo seus próprios arcanos. Há aqueles que os veem por todos os lados, quem quase nunca os vê e ainda há outros que os negam. Nas artes de entretenimento de grande alcance o dinheiro é uma questão central e tem caráter especulativo em todas as áreas da produção. Um andar acima, observa-se grande volume de moeda circulando de modo evidente, são as altas artes consagradas pelos representantes da elite cultural e artística, como museus, galerias, marchands, críticos etc. Um outro grupo também lida de modo muito natural com o dinheiro: os artistas circenses e de rua que em suas apresentações requerem incisivamente sua paga.

Mas o grosso da fila dos condenados é formado por artistas que mantém uma relação muito mais nebulosa com o dinheiro. Estamos agora vendo a agonia da classe média cultural que não é reconhecida nem pela elite, nem pelo povo. Em seu afã de dignidade, o artista médio é indiferente à arte de massa, observa com admiração distanciada as altas artes, e aprecia com superioridade a arte de rua. Quanto ao valor da arte produzida por esse grupo, o que dizer? Como se estipula o preço real de uma peça de teatro que foi ensaiada durante 3 meses para ser apresentada em dois finais de semana com ingressos a vinte reais? E o violinista de província que depois de anos de estudo finalmente se sente pronto para interpretar a partita em ré menor de Bach num teatrinho da cidade, quanto se deve pagar? Travado neste nó górdio, o assunto é quase um tabu entre aqueles que reconhecem essa realidade de coisas. Eles partilham uma crença estética que envolve uma fidelidade quase macabra. É por isso que quando um artista da vanguarda sai dos breus dos pequenos teatros para os brios das telas de TV seus pares comentam: “pena que tá fazendo novela”, “se queimou”, “traiu o movimento”, “se vendeu”. Enquanto isso, o artista médio dá continuidade a seus trabalhos de incomensurável valor porque há uma aposta implícita em sua bela errância de esperança e prazer.

Segundos Fora

Vejamos o caso das “Frases de Mainha”, canal do YouTube que surge como desdobramento audiovisual do projeto de cards idealizado por Caio Cézar Oliveira e Erik Paz. O roteiros dos vídeos trazem cenas do cotidiano de Mainha – um tipo de mãe baiana de classe média-baixa bastante presente no imaginário soteropolitano – e Júnio, seu filho pós-adolescente meio preguiçoso meio vacilão que enche a paciência curta de Mainha, fazendo-a explodir em surtos de fúria. A personagem de Mainha é representada por Sulivã Bispo, um ator virtuose cujo talento beira a indecência, sendo ele talvez o principal responsável pelos milhões de visualizações contabilizadas pelo canal. Embora a iniciativa visionária dos produtores e a atuação de Thiago Almasy (Júnio) também pesem na balança do sucesso, nesse gênero de humor – centrado no personagem-título – a eficiência do protagonista é o fator determinante.

O primeiro vídeo do canal foi ao ar em junho de 2016 e em poucos meses os views já eram contados em sete dígitos. Com os bordões e achaques de Mainha aliados à malandragem de Junio, a equipe conseguiu produzir roteiros criativos e engraçados utilizando poucos recursos. Um dos destaques é “Paredão no carro de Mainha”, quando Júnio enrola a mãe dizendo que iria para o curso, mas ao invés disso vai farrear com os amigos no Santo Antônio além do Carmo. Mainha ouve dizer da trairagem e pega um moto-táxi para alcançar o filho. Chegando lá, passa um sabão memorável em Júnio diante dos amigos dele. Como ela mesma diz: “Filho só puxa a mãe, quando a mãe dá pra o que não presta”.

Estamos agora vendo a agonia da classe média cultural que não é reconhecida nem pela elite, nem pelo povo. Em seu afã de dignidade, o artista médio é indiferente à arte de massa, observa com admiração distanciada as altas artes, e aprecia com superioridade a arte de rua. Quanto ao valor da arte produzida por esse grupo, o que dizer?

 

Eis que no primeiro vídeo do ano de 2017 um novo personagem entra em cena, o Governo do Estado. O Governo trouxe câmeras, lentes, trocou as vinhetas, incluiu trilhas e efeitos sonoros, reformou o cenário; em suma, financiou o projeto. Em troca, a página teve que ceder uma pequena parte do negócio: o conteúdo, a estrutura e a linguagem. A partir de então, todos os vídeos da página seriam propaganda. As primeiras produções em parceria com o Estado mostram Mainha apreciando as belezas da “Terra mãe do Brasil” em destinos como Ilhéus, Porto Seguro e Morro de São Paulo. Júnio de repente virou um idiota completo; ele não sabe, por exemplo, o que é Morro de São Paulo e aparece num barco ao lado de Mainha trajando uma camisa social: “A senhora falou que a gente ia para São Paulo, Mainha, eu perguntei a todo mundo e diz que fazia frio”. É, eles tiveram coragem de fazer essa piada; a mesma equipe que meses atrás criou a gag incrível de Mainha jogando uma cueca “breada” de Junio no meio do game como o amigo porque ele tinha colocado as calcinhas dela para lavar junto com as roupas dele. #sddsmainha

O governo pagou doze vídeos até agora – o último foi uma propaganda do metrô –, e a equipe não produziu mais nenhum material que relembre a velha safra. #sddsmainha [2]

Round 1

Mainha se vendeu. E a venda em questão não é aquela típica transação em que o ator empresta seu rosto para a propaganda do governo, porque aqui os compradores se inseriram no interior de uma narrativa independente, usurparam a própria ideia do humor em nome de propósitos outros. Mainha vendeu a alma, a criatividade, traiu suas centenas de milhares de seguidores que confiaram em seu trabalho e esperavam ansiosos por suas piadas sagazes. Por debaixo dos panos, tramaram um “ié, ié, glu, glu, pegadinha do malandro”. Essa é a hipótese número um.

Mainha se vendeu. Mas ora, em algum momento o projeto tinha que se tornar economicamente viável. Quem ou o quê pagaria à equipe pelas horas de ensaio, criação de roteiro, pessoal, equipamento? Adicione-se aí o tempo gasto diante do computador para manter de pé uma empresa online de grandes proporções. É uma pena desvirtuar um projeto assim, mas já era hora de bancar o sonho de produzir humor original de qualidade. Hipótese número dois.

Ainda bem que Mainha se vendeu. Um ator do calibre de Sulivã Bispo devia se dedicar à grande arte ao invés de se render à sedução do riso fácil, ao humor histriônico. A brincadeira acabou. Agora é aproveitar os rendimentos do contrato firmado com o Governo e seguir caminho, experimentar outras estéticas, crescer como artista. Hipótese número três.

Tudo bem, Mainha uma hora tinha que se vender. Mas será que eles não se venderam rápido demais? Será que não poderiam investir mais um pouco e apostar num projeto a longo prazo que fosse viável na economia da Internet? Faltou coragem e paciência. Hipótese número quatro.

Knockout

Hipótese número cinco. Mainha ressurge em esplendor mostrando que a fase de Governo passou e que ainda tem muito pra dar. Roteiros originais hilariantes, broncas em Júnio, bordões pescados da boca do povo e o velho pinscher se tremendo em primeiro plano. Melhor que o Porta dos Fundos

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