Ensaio | Cênicas


Revolução em Pixels, Rabih Mroué

Não é arte, ainda bem.

abril de 2017

Edição: 11


Não é arte, ainda bem.

As antipalestras de Rabih Mroué

Toda experiência conjuga dimensões éticas, noéticas, estéticas. Éticas, porque todo fenômeno pode ser lido de acordo com os valores e leis daqueles de que dele participam. Noéticas, porque toda experiência pode ser lida através da mente, da lógica, da abstração possibilitada pelo exercício do raciocínio. Estéticas, porque toda experiência pode ser lida através dos sentidos, da sua materialidade, plasticidade, visualidade, sonoridade, das suas texturas, do seu aspecto sensível.

Diferentemente da obra de Arte, cuja dimensão preponderante é estética, o tônus dos fenômenos Aula e Palestra não reside aí, pois o conhecimento construído nesse tipo de experiência não se dá prioritariamente através dos sentidos, mas através da razão. Houve um tempo e houve filósofos que quiseram hierarquizar ética, estética e noética, como se uma dessas dimensões fosse mais fundamental que a outra ou ainda como se houvesse fenômenos puros, exclusivamente estéticos ou noéticos. Resquícios dessa hierarquização e dessa setorização são encontrados até hoje tanto nos estudos acadêmicos, quanto nos artísticos. Eles resistem, por exemplo, naquela tentativa de fazer com que tudo e qualquer coisa seja Arte, como se “ser Arte” fizesse da coisa melhor do que se não fosse.

Pesquisas recentes, tanto das áreas das Artes quanto da Pedagogia nos informam da importância de se ler tanto a dimensão noética das Artes quanto a dimensão estética da Pedagogia, ainda que não sejam preponderantes, justamente porque tais experiências não são puras e a hibridação teórica e prática só vem a contribuir, numa perspectiva interdisciplinar, para avanços em cada uma delas. Assim, é possível pensar no Professor como Performer ou na performatividade do professar, do espaço escolar e do aluno, por exemplo.

Eis que, na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, somos apresentados à obra do libanês Rabih Mroué, numa mostra interna de 3 performances (Tão Pouco Tempo, Revolução em Pixels e Caminhando Nuvens) que se constituem de palestras em que o elemento audiovisual é não apenas uma ferramenta ilustrativa do palestrante, mas o próprio fundamento sobre o qual a experiência de leitura da obra se dá. Talvez a única coisa realmente teatral na obra de Mroué seja o fato de que estamos num edifício teatral, numa clássica caixa preta, e que os perfomers são iluminados por luzes teatrais, ainda que ambos elementos fossem dispensáveis nesses casos.

Sem dúvida, estamos diante de Performances, não no sentido estrito da performance art, tal como caracterizada por Roselee Goldberg [1], mas dentro do amplo espectro que Richard Schechner as compreende em seus Estudos da Performance [2]. Para Schechner, uma performance não necessariamente é artística, pois tal campo compreende desde jogos esportivos, rituais, até aulas. Ainda assim, as experiências artísticas performáticas, dentro da compreensão Schechneriana, constituem um campo privilegiado de estudos da Performance, incluindo o teatro, o circo, a dança, as apresentações musicais e até mesmo as performances art, ou seja, toda experiência em que a presença do artista aqui-e-agora seja parte da obra de Arte. Em Schechner, a Performance não é mais uma linguagem artística, mas um campo de hibridação de linguagens e práticas culturais que possuem traços em comum e podem ser estudados em suas dimensões éticas, estéticas e noéticas, a partir de olhares não só artísticos, como também antropológicos, filosóficos.

Nessa perspectiva, a radicalidade do gesto de Rabih Mroué está em dissolver a fronteira entre a Arte e a Pedagogia: se todo fenômeno têm uma dimensão estética, por si, e se todo pedagogo pode ser visto como um performer do conhecimento, então, por que não, numa Mostra de Teatro que visa à conjugação de linguagens, propor experiências em que determinado tipo de conhecimento seja performado sem que saibamos (nós, os espectadores) qual dimensão, noética ou estética, prepondera ali?

E essa confusão proposital se dá porque o Saber (elemento fundamental e constituinte do fato pedagógico) nas palestras dirigidas por Mroué não é um Saber constituído, acadêmico, que possa ser provado de forma científica. Trata-se, antes, de um Saber que se assume como transitório, como ponto de vista, indagação e provocação e que, ao assumir-se como tal, distorce a própria forma da palestra, já que estamos acostumados, em eventos como esses, a esperar por um conhecimento que nos venha pronto, lapidado, cristalino, provado por a + b. Ao contrário, em Mroué a forma-palestra se dissolve pelo próprio conteúdo destas, que são uma indagação sobre a validade da Verdade, da História e da Memória.

Em Tão Pouco Tempo, enquanto conta uma história que se assume como ficção, mas que é baseada em fatos reais, a performer-palestrante Lina Majdalanie joga fotos pessoais numa solução química que deteriora as imagens fotográficas, como se apagasse suas memórias. E a história contada é justamente sobre um homem que teve a sua própria vida ficcionalizada (foi tornado mártir, sem o ser) e cuja memória, portanto, foi alterada. Assim, o gesto de lançar fotos-memórias no líquido que as apaga, na mesma medida em que corrobora com a história real/ficcional que é contada, também duvida da forma-palestra em que todos nós, performer e espectadores, estamos imersos.

Na Revolução em Pixels, o próprio Mroué se coloca como palestrante-performer enquanto dá uma aula sobre cinema a partir dos filmes feitos por habitantes de zonas de conflito no Oriente Médio. Ao comparar esses filmes (feitos no calor do momento, pelo celular, cuja imagem é pixelada), com o cinema de arte de Lars von Trier e Vintenberg, e com as gravações do jornalismo oficial que mostram o mesmo conflito, Mroué desenvolve uma linha de pensamento sobre a relação entre a forma pixelada dos vídeos, dita de “má qualidade”, com o seu conteúdo profundamente humano, porque ligado às condições do próprio fazer dos vídeos.

Finalmente, em Caminhando Nuvens, Yasser Mroué palestra sobre a sua própria vida, numa espécie de documentário autobiográfico que lembra o cinema de Petra Costa ou o teatro de Marcelo Soler. Ao narrar a própria vida, vida banal e sem grandes acontecimentos, como o próprio palestrante-performer admite, ele se pergunta sobre que histórias valem a pena ser contadas e por que determinadas histórias são escolhidas e outras não. Afinal, o que valida uma História?

Ao duvidar da própria forma-palestra com conteúdos que questionam a validade da História, Mroué faz um exercício de dissolução das barreiras entre a Arte e a Pedagogia, pois as dimensões noéticas e estéticas de sua obra concorrem entre si, e saímos sem saber se o mais importante ali era racionalizar sobre o que aprendemos ou apenas deixar-nos fruir aquilo que vimos e ouvimos. De fato, não é Teatro, é Performance. Não performance artística, mas Performance. Não é Arte, é Pedagogia, pedagogia através da Arte sem ser pedagogia da arte, nem arte-educação. E no fim, verdadeiramente transformados e atravessados – feridos – pelo que vimos, ouvimos, sentimos e entendemos, a que(m) importa categorizar?

[1]                      GOLDEBERG, Roselee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[2]                      SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York: Routledge, 2013.

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