Crítica | Cênicas


Foto de Leto Carvalho

Certas coisinhas pequenas demais

abril de 2017

Edição: 11


Certas coisinhas pequenas demais

Sobre a Galeria ENTRE, de Alexandre Guimarães.

É uma casa antiga, branca com detalhes azuis, numa rua de passagem do bairro mais boêmio da cidade. Para entrar em cada cômodo passamos por cortinas de veludo negro, que os dividem e funcionam como umbrais. Estendendo os braços e alcançando o primeiro pano, passamos para o lado de dentro, deixando para trás esse mundo, que por sua consistência de merda pisada e repisada, chamamos, em uníssono, de realidade.

Damos de cara com uma escuridão absoluta. No acostumar-se das pupilas ao novo ambiente, vão se revelando focos fracos de luz distribuídos ao longo das paredes. Um deles aponta para uma mesa de jardim. Em cada foco percebe-se um quadro em sua moldura, cada um contendo a imagem de uma mulher fortemente maquiada, trajando um imenso vestido rosa-choque. Vemos os quadros se movimentarem.

Passamos por mais um umbral. Ali dentro é frio, e mais escuro ainda. Numa das paredes, uma projeção, fraca e sem foco, contém algo como um coração batendo, mas certamente não o é.

Então chegamos num banheiro de portas escancaradas, luz fria e azulejos brancos. Os olhos sofrem de novo, até se adaptarem. Pisamos num chão de grama molhada. No chuveiro há uma pequena árvore tomando banho. O arbusto, seco, recebe as gotas da ducha, e entre seus ramos, caem fios brancos de eletricidade.

Atravessando o corredor, sentimos de imediato um cheiro forte de mato. Olhando para o lado encontramos uma roupa pendurada, feita de um tecido fino, que, costurado em forma de bolsas, acolhe diferentes espécies de ervas aromáticas. No chão e nas paredes há muita palha; a luz é morna e amarelada.

Mais adiante pisamos num chão de folhas secas. À frente, abre-se a amplidão de uma sala de estar. As paredes são pintadas em faixas coloridas horizontais, e ao centro encontra-se pendurado, entre dois losangos flutuantes e brancos, uma capa de lona preta, contendo, em cada bolso, uma planta de flores pequenas. No chão, alguns conta-gotas sugerem que nos abaixemos e os enchamos da água colocada num prato branco, para regá-las.

Na Galeria ENTRE cada cômodo sugere uma presença. Cada presença pontua uma instância dramatúrgica. Mas dessa presença não poderíamos supor um corpo, e dessa dramaturgia, nada que se parecesse com uma história. Se tivéssemos que fazer uso da noção de corpo, bastaria tomar o nosso como exemplo, afinal é ele quem, atravessando toda a extensão da casa e descobrindo espaços, objetos e signos inusitados, vai traçando algo que se aproximaria a uma história. Somos um corpo atento: ao estalar dos passos, aos sussurros, às passagens fortuitas, aos toques ocasionais.

De fato, entre um quarto e um banheiro, uma cozinha e uma sala de estar, uma pessoa qualquer vai tendo de se adaptar, transformar suas maneiras corriqueiras de estar, mesmo que não se queira, mesmo que ausente em espírito, mesmo que em pequenas e imperceptíveis ações. É assim que o desenho de moda de Alexandre Guimarães passa do mero vestir modelos a um vestir ou desnudar de situações.

ENTRE sugere dois movimentos processuais. O primeiro está na origem. Pensando nos artistas que criarão junto a si, Alexandre produz vestimentas como se se tratasse de uma homenagem. Depois, os artistas convocados tomarão essas roupas e criarão outras composições, mas agora usando os espaços da casa, assimilando a eles a roupa-dispositivo original.

Cada roupa dessas é um dispositivo porque é uma ideia. O processo de feitura foi atribuindo à matéria camadas e camadas de vivência. Nesse sentido, cada uma delas é, também, uma escultura temporal. Foi assim que Paula Lice transformou-se, aos olhos de Alexandre, em puro rosa-choque, e, misturando-se ao psicodelismo de “Alice no País das Maravilhas” e ao universo em transe das drags, concebeu essa sala misteriosa, meio “Transformação da Monga”, meio “Sala dos Espelhos”. Orlando Pinho, que a tomar pelo primeiro nome já é um verbo, deveio flor, mas principalmente o ato de regar. Ebomi Regina de Iemanjá recebeu a roupa e a fez parte da cozinha, adicionando aos cheiros de erva o aroma do leite de coco e do dendê. Gilberto Monte transmuta-se em árvore perenemente regada. João Oliveira e Pablo Cordier reduzem a roupa como se reduz um alimento na culinária; retiram a ideia de vestido, retiram a ideia do vestir implícita num vestido; retiram e retiram, até que essa coisa vire um coração que late, um órgão qualquer, ou apenas uma luzinha de vida, um pequeno nada. Aqui se separa a noção de presença da ideia de corpo como substância, identidade.

Ao entrar nos cômodos da casa-labirinto, encontramos-nos com presenças já liberadas. Talvez possamos pensar em puras relações. Meu contato com um vestido pendurado gera uma terceira entidade. O ato daquele rapaz, ao sentar-se na cadeira de jardim, observando os objetos repousados na mesa e escutando o áudio gravado para a situação, tudo isso, junto ao meu próprio olhar mirando o conjunto, enche a sala de significâncias.

A singeleza dos objetos em exposição, a calmaria inanimada dos salões, o silêncio dos artefatos em seu simples estar; essas coisas não deveriam nos enganar. Talvez nossas miradas estejam calejadas de solicitar informação — e o pior: de sempre tê-las. A arrogância do sujeito é pensar que somos nós quem observamos os objetos. Mais um pouco e perceberíamos que são eles que nos olham. Eles têm vida própria — e tente descansar, com essa ideia na cabeça.

Ao negar o uso das roupas em corpos perfeitos para o mercado, ao distribuir suas criações entre artistas distintos de modo a fazê-las variar em textos e contextos, ao expor uma materialidade livre de discursos pré-fabricados, ENTRE nos apresenta uma política interior à sua própria efetividade. Opõe, à solicitação incessante de significados, a existência crua dos significantes materiais. Assenta um território de experimentação social. E se alguém questiona no que é que isso muda o mundo, ENTRE sussurra: “mas o que é isso, senão um pequeno mundo mudado?”.

REBATE

Rebate à crítica “Certas coisinhas pequenas demais” de Daniel Guerra

Por Alexandre Guimarães

Estar presente. Talvez essa seja minha grande obrigação nesse rebate. Não apenas pelo respeito às atentas palavras ditas na crítica em questão, como ao privilégio de ter somado, mais uma vez, nesse novo momento do ENTRE, mentes brilhantes que conseguiram devanear e concretizar processos criativos de diferentes linguagens e pontos de vista. Acredito que essa foi minha maior função como coordenador desse volume II. Conceber uma curadoria plural e potente que dialogou com as diferentes informações não verbais presentes nas indumentárias criadas para eles, assim como conceber uma equipe técnica tão criativa quanto os artistas convidados, que materializou todas as propostas sugeridas.

É importante reforçar que a partir do momento em que o objeto para vestir foi entregue ao artista convocado, eu, enquanto criador da indumentária, deixei de ter qualquer controle sobre a peça, inclusive se a mesma estaria fisicamente presente, mesmo que fragmentada, no ambiente proposto. Por isso, concordo, simplesmente concordo com a crítica. O que não é um processo simples. Requer escuta e abertura sobre outra visão a respeito do seu trabalho. Para minha sorte, o work in process de ENTRE me ajuda a exercitar isso.

Independente de ser bom ou ruim, foi angustiante e surpreendente a espera pelas concepções dos espaços, recheados de ressignificações que surgem no contato de Paula Lice, João Oliveira, Pablo Cordier, Gilberto Monte, Ebomi Regina de Yemanjá e Orlando Pinho com suas designadas peças em wearable art, somados aos ambientes propostos. ENTRE é um processo que requer diálogo e escuta, assim como a crítica da Revista Barril, que é mais uma voz que chega para o debate. Aceito e concordo.

Agrada-me o fato das palavras de Daniel Guerra focarem na experiência – sempre mutável – que a Galeria tenta provocar. A percepção do crítico sobre o universo cheio de possibilidades contido no “vazio” e a necessidade de entrega a todos os sentidos para se instigar possíveis “informações” contidas nas indumentárias e objetos

presentes nas instalações também são pontos com os quais sinto pensar da mesma maneira.

Sobre o último parágrafo, mais uma vez, concordo, simplesmente concordo. E volto a afirmar que todas as indumentárias construídas, tanto para o volume I quanto para o volume II do projeto, poderiam ser apresentadas dentro de um formato de desfile,

“em corpos perfeitos para o mercado”, mas, como o próprio crítico afirmou, perderíamos as variações de textos e contextos, assim como reunir e misturar pessoas de áreas tão diferentes pensando em processos criativos comuns.

Ou talvez esse seja meu desejo oculto de incluir a Moda, distante da Indústria, como elemento significante na construção de novos espaços em arte contemporânea, que já não mais sintam-se pertencentes a esta ou àquela linguagem. Esse lugar chama-se ENTRE. Um lugar de fronteira, um lugar permeável.

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