Ensaio | Cênicas


"Art Fair, Booth no.4"
Eric Fischl

Fantasias revolucionárias

maio de 2017

Edição:


Em “Memórias do Subsolo” Dostoiévski narra a fábula de um sujeito que resolveu mijar numa das pilastras do Palácio de Cristal. A imagem deve ter proporcionado boas risadas ao autor; imaginar esse personagem sacana e insensato, que simplesmente “porque sim” sai disparando seu jato em cima do sonho da humanidade, partindo depois como se nada tivesse acontecido e assobiando uma melodia qualquer pelas estradas.

Nessa história, a graça vem do choque entre a utopia e o nonsense. O hipotético Palácio de Cristal levou séculos para ser erigido. Custou trabalho, educação e cuidados de gerações. Muita fé e tempo. Aprenderam a liberdade, o amor e a igualdade. Eles devem ter se organizado como Marx pensou: “cada qual conforme sua capacidade”. Tudo isso pra vir um merdinha qualquer e se aliviar justo em cima do grande símbolo da paz! Ele não deve ter pensado muito sobre o que significava o enorme cristal à sua frente, além de um prédio pontiagudo que se interpunha entre o caminho restante e a bexiga inchada. É evidente que não incluíram na utopia a construção de banheiros públicos. No mais, Freud que venha justificar esses sonhos onde não nos fornecem sequer uma privada.

Vira e mexe essa anedota retorna à minha memória. Ela aparece ainda mais repetidamente nos momentos turbulentos, porque é neles que começam a pulular todo tipo de desejos utópicos — e esses são os mais perigosos.

Nos últimos anos, a hashtag “utopia” veio com tudo. Deu as caras em festivais, mesas de debate, palestras, workshops e espetáculos, isso só pra falar do campo humilde das artes cênicas. Enquanto isso, o mercado cultural brasileiro já girava em torno da ideia há pelo menos quatro anos, contando com a adesão de marcas de cerveja e telenovelas, isso sem falar na ala dos gringos, com suas séries milionárias da Netflix e as mais recentes produções hollywoodianas. Ou seja, se dependesse da boa vontade publicitária, já estaríamos vivendo um mundo bem melhor.

Ao menos na terra tupiniquim, logo após as explosões das primeiras manifestações de 2013 — onde já não se sabia se tudo aquilo terminaria sendo “de esquerda” ou “de direita” — precisou-se apenas de um curto respiro para que pudessem reformatar o sentido do jogo e finalmente, começar a jogá-lo.

O capitalismo não age somente por metodologias de repressão. Por sua própria complexidade, ele é bem mais sutil: estimula oposições oportunas ao seu próprio funcionamento, encena conflitos espetaculares inspirados em antagonismos reais, e todos os dias põe mais lenha no teatro da rebeldia versus a “reação necessária”. Mas se o faz, é sempre criando um movimento correspondente de banalização. Os efeitos já tinham sido diagnosticados por Debord meio século atrás: “Assim como [a sociedade do espetáculo] apresenta os pseudobens a desejar, também oferece aos revolucionários os falsos modelos de revolução”[1].

É curioso constatar que paralelamente à ideia bastante propalada de uma “morte da representação” — ou seu simples cansaço —, esteja acontecendo uma intensificação comercial das narrativas engajadas. Quando a política passa a ser o tema e não a estrutura, ou quando há cisões de forma e conteúdo que privilegiem este último, deve-se levantar as duas orelhas, e ativando as narinas, começar a farejar.

Uma das frases que mais tenho escutado no metiê artístico-revolucionário é o tal do “urgente e necessário”. O jargão sai fácil da boca de artistas e críticos, e aparentemente contempla um círculo ilimitado de atribuições. O “urgente e necessário” substitui, no plano das adjetivações, tanto o “belo”, herança trazida de tempos clássicos, quanto o “potente”, idílio sussurrado pelo bloquinho dos filósofos pós-estruturalistas e comentadores da PUC.

Digamos que alguém não saiba muito bem como avaliar uma obra, ou porque ela apresente reais dificuldades de enfrentamento, ou porque ela é frágil. Às vezes pode se dar, num sujeito, uma real falta de talento para a avaliação das coisas que se passam ao seu redor, ou então uma recusa ideológica, terrorista e sentimental — similar à de alguns ecologistas — em “julgar qualquer coisa que respire sobre a Terra”. Então não demora muito e lá vem o “urgente e necessário”, rápido como uma bala, firme como uma muleta. Ele serve pra tudo. Principalmente para a adesão massiva, já que possui as mesmas características do meme.

Imagino que a expressão deseje estabelecer um pertencimento mútuo da obra ao seu tempo, se bem que um tanto forçado. Nenhum juízo é só uma avaliação; um juízo também legisla, determina a essência do objeto, o transfigura sob as lentes populares. E com o apoio massivo e anônimo do mundo virtual, fica muito mais fácil criar uma relação de necessidade ou impertinência ali onde um niilista dostoievskiano veria nada vezes nada.

Eu concordo facilmente com Nietzsche, cada forma de decadência tem seu bordão predileto. “Estou cheio de desconfiança e de malícia do que chamam “ideal”: esse é o meu pessimismo em ter reconhecido o quanto os “sentimentos superiores” são uma fonte de infelicidade, quero dizer, de amolecimento e depressão do homem”[2]. Por exemplo, se começamos uma busca a partir do principal ideal da contemporaneidade, a ansiedade de pertencimento ao próprio tempo, e seguimos procurando até a raiz, provavelmente surpreenderemos coisas “urgentes” substituindo o que na verdade é inútil, e “necessário” ocultando aquilo que à luz do dia figuraria ingênuo ou supérfluo.

 

Tampouco há salvação (“Graças a Deus”, diria Buñuel). Pensar ou agir em termos de mau, imoral ou monstro não significa superar o bom, o moral ou o santo, assim como pensar ou cometer sacrilégios nunca fizeram o teto de uma igreja desabar sobre a cabeça do papa.

Cada utopia reproduz não só uma fraseologia, mas também um corpo que as alimenta e delas deriva. Uma passada de olho nas obras engajadas revela recorrências fantásticas. Eu poderia chamar de clichês essas repetições formais, sejam elas estruturais (dramaturgia, texto, movimento), ou “espirituais” (a maioria tem uma moral da história, uma mensagem ou um tipo de presença bastante específico), mas pelo próprio caminhar dos jargões contemporâneos, substituo “clichê” por “sintoma”. “Sintoma” é ele mesmo uma patologia do uso verbal, e se o emprego é porque vejo na palavra uma pertinência que não encontro mais, por exemplo, na palavra “luta”. Me causa estranheza que, nas redes sociais, uma artista negra que afirme lutar “contra o racismo diário” coexista na mesma dimensão que uma dona de casa branca “lutando contra a corrupção” ou com um adolescente de classe média que, ao fotografar o amanhecer no seu Instagram, com um café na mão e um livro de Hilda Hilst na mesa, declara: “A luta continua, e ela é de todxs nós”. Hoje se luta e se fica de luto com a mesma rapidez que se tem ao escrever essas palavras. Isso é o que eu chamo de indiferença engajada. Então vejo artistas — com toda a razão — se perguntarem confusos, cabisbaixos: qual é o meu lugar?

Na maioria das revoluções históricas, ao artista foi reservado o papel de publicitário. É como se os soldados e burocratas dissessem: “Você pode vir até aqui. A partir dessa linha de segurança, você pode fazer o que quiser, só que do lado de lá. Por exemplo, você pode confeccionar cartazes. Ou escrever slogans”. Também, imagine que desastre seria ter Maiakovski no meio de um conflito fronteiriço. Se fosse um filme, Woody Allen poderia incorporá-lo. Já Sartre foi precavido; antecipou o pedido de distância ao negar uma conversa pessoal com o Che em meio à guerrilha. Devia estar se borrando todo, mas foi com dignidade heroica e com aqueles olhos desesperados apontando pra todos os lados que avisou: “Lá eu não vou não. Neste conflito honrarei meu papel de intelectual”.

Por ser essencialmente publicitária, a arte que serve a um período revolucionário não necessariamente valerá para o próximo. As mudanças formais do agitprop leninista ao realismo socialista stalinista são sintomáticas. Como toda estética utópica, as duas trabalham na afirmação panfletária, seja a de um futuro distante, seja a de um presente que se quer vangloriar. Mas a afirmação maiakovskiana era bem distinta da afirmação stalinista. Perceba-se o quanto chamar o Sol para um chá (“Ouça, topete de ouro/e se em lugar/desse ocaso/de paxá/você baixar em casa/para um chá?”[3]) é distinto de retratar realisticamente a ascensão do camponês trabalhador ao lado do Pai dos Povos. Uma diferença estética que valeu uma vida. Hoje sabemos que Maiakovski não foi o único suicidado.

Quanto a nós, a utopia específica do século XXI é a do empoderamento pessoal (porque as utopias de redes coletivas, essas sobrevivem ao tempo). Não por acaso, os produtos culturais reproduzem estruturas similares. Reservadas suas diferenças de grau e forma, a grande parte conta a história de um auto-entronamento do personagem principal. Nelas, mesmo após o crepúsculo dos ídolos na era moderna, a figura do herói volta a fazer sentido, mas as peripécias passam do mundo exterior para o mundo interno, para a subjetividade, e o caminho de superação individual evolui rumo à descoberta de um poder oculto até então.

O problema das utopias é que elas criam zonas de endurecimento. A porosidade da existência, que deixaria atravessar todo traço de vida, termina soterrada por sentidos inequívocos e afirmações unilaterais. O que se solicita é sempre uma clareza incontestável, o que invariavelmente descamba no didatismo. O caminho do herói deve, portanto, estar pautado em uma série de acertos consigo, do contrário voltará ao ponto de partida e estará condenado para sempre à derrisão social.

O que acontece num processo de enrijecimento formal é a exclusão progressiva das quebras de sentido, do absurdo, do gratuito, do acaso, da galhofa, da fraqueza. A mobilidade básica da vida encontra-se ameaçada pela assertividade moral, e é por isso que a defesa de uma utopia já aloja em si o germe da distopia vindoura. Talvez fosse preciso escutar aquilo que os mestres das artes marciais ditavam: face ao risco da quebra, conservar a elasticidade dos bambus e a fluidez das águas. Eis o antídoto do mijo contra a obstinação da areia no cristal, de onde ressoa o grito político de Macunaíma: “Ai, que preguiça!”.

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[1] Guy Debord, “A sociedade do espetáculo”, 2016, pg. 38.

[2] Friedrich Nietzsche, “Vontade de potência”, 2017, pg. 208.

[3] Vladimir Maiakovski, “A Extraordinária Aventura vivida por Vladimir Maiakovski no Verão na Datcha”.

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