Treta | Cênicas


ENTÃO FALEMOS DAS RAPOSAS REAIS

junho de 2017

Edição: 13


Sobre o espetáculo “As Pequenas Raposas”

 

O bom de ser honesto

é que a concorrência é pequena.

(Marcos Castelhano, “Love Songs”, A Tarde FM)

Nas vésperas do São João, os caminhos que levam ao Teatro Martim Gonçalves estão tomados por um tipo de burburinho que só floresce nessa cidade. Ao longo das ruas comerciais do centro, crianças e sacolas de compra disputam os braços de mães apressadas, enquanto feirantes disparam berros a quilômetros de distância, provocando insistentes revoadas de pombos. Robôs de brinquedo coabitam com bombinhas juninas e cachorros teimam em pedir a última parte do milho cozido ao cidadão saciado. Sinal fecha, sinal abre, e os corpos se arremessam de um lado a outro das ruas, passando tão perto dos carros que parece milagre não produzirmos diariamente dezenas de mutilados.

Em meio a essa geleia geral desponta a brancura fuliginosa da Escola de Teatro da UFBA. Guardado em seus muros está o Martim Gonçalves, teatro à italiana de proporções consideráveis. Sobre o palco impõe-se uma imensa sala de estar à moda antiga. Ali estão as paredes altas cobertas de cores pastéis, um janelão que dá para um jardim imaginário, uma lareira de onde arde um fogo cenográfico (brando), uma escadaria, umas cinco cadeiras acolchoadas em veludo, um tapete e um ou dois abajures de mesa. Enfiados em vestidos longos e paletós costurados sob medida, os atores de Harildo Déda sobrevivem graças à invenção do ar-condicionado.

Como em grande parte dos textos realistas, As Pequenas Raposas acompanha a decadência moral de uma família burguesa, neste caso os Hubbard’s, habitantes do sul estadunidense.

Montar uma peça realista, de maneira realista, sobre uma sociedade e uma época radicalmente distintas das nossas, jamais constituiu um problema fundamental. Se o fosse, não viveríamos tão intensamente o fulgor de certos romances fantásticos ou filmes sci-fi. Mas a capacidade de comunicação dessas histórias está justamente naquilo que ultrapassa sua condição alegórica, preservando ao mesmo tempo a distância tranquilizadora da representação. Isso explica o sucesso de The Little Foxes, tanto nas telas de cinema quanto nos teatros da Broadway.

O cinema tem o realismo por essência, como defendia o crítico francês André Bazin[1]. Tanto que se chega a ele por subtração: retira-se cenários construídos, elege-se uma locação real; retira-se a empostação na voz, assume-se a proximidade do close-up. Já no teatro, o realismo é alcançado por adição: no palco vazio um enorme cenário é erigido; o fogo na lareira vem de um refletor; a voz deve soar “natural”, mas empostada o bastante para que chegue às últimas fileiras. Curiosamente, o realismo teatral só é conquistado através de uma rigorosa artificialidade. Por isso, ao fazê-lo, deve-se ter em mente a supressão da distância entre a peça e o espectador, quero dizer, o caminho que este terá de percorrer entre a assimilação da informação exposta e a vivência pessoal da história fabulada. O realismo necessita, mais que qualquer outra forma estética, de uma poderosa relação de confiança e identidade, na qual a imagem refletida no espelho seja tão fiel que nos ponha assustados. Tal pacto é o que faz chegar em todos os cantos do mundo a Rússia de Tchekhov e o Alabama de Hellman, o Brasil de Plínio Marcos e a Noruega ibseniana.

A saga Star Wars, por exemplo, nos leva facilmente a galáxias distantes. Nela podemos sentir (e compreender) as paixões de um robozinho que só se comunica por apitos. O mesmo se dá em Borges, seja quando evoca uma Buenos Aires cósmica ou certos sonhos labirínticos que nunca imaginaríamos ter. É assim que os Hubbard’s do Alabama podem soar a nós, brasileiros, tão familiares quanto os Flinstones ou tão desconhecidos quanto os nossos vizinhos de porta, dependendo do tratamento que se dê ao traço alegórico intrínseco a qualquer fabulação.

Mas Harildo e sua equipe deslocam a peça do seu contexto original como quem desloca o tacape de um índio às galerias de um museu. Nesse movimento, tão cuidadoso quanto desastrado, sacrificam o brilho da vivência direta do realismo, e o que resta em nossas mãos é a mera alegoria esquelética, pretensamente desejosa de abordar temas que a mídia espontânea e o jornalismo contemporâneos exploram com muito mais rapidez e sagacidade. Aqui, a distância do processo de tradução, que deveria ajudar-nos na passagem da fábula para a vivência pessoal, é grande demais. É com muito esforço que o espectador deverá passar as duas horas e meia de espetáculo tentando capturar qualquer fagulha de identificação com aqueles personagens, interpretados por atores baianos fazendo de conta serem norte-americanos, quando no fundo são

assediados por pequenos e constantes espasmos de nordestinidade que, à revelia da formalidade empolada, explodem aqui e ali como espíritos malignos a tomar posse de um crente no meio do culto. Uma repressão que não resulta apenas dos vestidos longos, dos paletós e do pó no cabelo simulando o tom grisalho, mas da concepção geral, tomada em seus detalhes.

 

Mas essas ideias são apenas fantasmas, assim como todo o resto; já estão bem mortas, apesar de se quererem atuais. Elas só funcionariam dentro de uma estrutura vibrante, que fosse política em si.

Segundo o diretor, “é importante montar” a peça “neste ‘tempo de homens partidos’, para tratar sobre as raposinhas de nosso tempo: corruptas, racistas, misóginas”[2]. É certo que o texto traz referências diretas ao estado de coisas capitalista, escravocrata e patriarcal. Na verdade, são essas estruturas que provocam os seus famigerados sintomas: “corrupção”, “racismo” e “misoginia”. Mas nessa produção a incongruência entre o texto e a cena é flagrante, o que se torna ainda mais grave pelo uso injustificado de um recurso brechtiano que, sempre que surge, interrompe a peça de forma brutal. Então, o que serviria para aproximar termina afastando ainda mais: sempre que um personagem fale uma coisa que, aos olhos da encenação, “sirva de lição” à nossa sociedade atual, ele virá para a frente, olhará para a platéia, e, iluminado por um círculo branco, soltará aquela opinião que supostamente deveria nos afetar, nos fazer refletir, conscientizar ou revoltar. Mas essas ideias são apenas fantasmas, assim como todo o resto; já estão bem mortas, apesar de se quererem atuais. Elas só funcionariam dentro de uma estrutura vibrante, que fosse política em si. Por isso não podem ser destacadas e transformadas, sozinhas, em manifestos. Esses momentos só servem para evidenciar o desespero da direção em salvar uma estrutura caduca, que, ironicamente, termina revelando em seu próprio funcionamento a persistência dos mesmos problemas que deseja retratar.

Ver um espetáculo de Harildo Déda dentro do Teatro Martim Gonçalves — mesmo que desta vez se trate se de produção independente — gera uma irreprimível sensação de déjà-vu. Se no realismo o objetivo é fazer refletir o macrocosmo social no microcosmo familiar, aqui o efeito se  rebela contra o próprio espetáculo. Pois se não nos desloca satisfatoriamente aos problemas da sociedade norte-americana, se não nos faz encarar os nossos próprios seriamente, e se nem sequer diverte fazendo apelo à imaginação, só nos reenvia ao tédio mais imediato, enquanto lá na frente a peça se desenrola, solitária, como num aquário. Nos faz lembrar, por exemplo, que certas raposas bem conhecidas e próximas persistem no poder, seja dentro mesmo das estruturas e hierarquias cênicas, seja pairando pelos corredores da Escola de Teatro. Que essas pequenas raposas soteropolitanas continuam decidindo coisas importantes e silenciando discursos que, se bem estimulados, resultariam em coisas bem mais interessantes. É como se essa estética mofada da distância alegórica, presente em tantas montagens vistas no mesmo lugar, preservasse as pequenas raposas do ter de assumir as corrupções que acontecem no seu próprio território, silenciosamente, por anos a fio.

[1] O Realismo Impossível (2016). Autêntica. Tradução de Mário Alves Coutinho

[2] Texto de apresentação na página virtual da produção.

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