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Sobre a peça Condenados, da Companhia SouDessa

Uma peça fundamentada numa tese: a homofobia é uma construção dos heterossexuais para subjugar e eliminar os homossexuais e transexuais e só nos resta, aos LGBTQI, reagir com violência à violência. Em cena, dois atores, (suponho que sejam) gays, um branco (Taric Marins) e um negro (Bruno Roma); várias cadeiras espalhadas e jogadas pelo chão, uma mesa de bar com duas cadeiras, outra mesa de sala de aula, luz, projeção de cenas na parede ao fundo. As cenas projetadas remetem a um caso de homofobia fictício que vai sendo construído ao longo da encenação, e a outros eventos viralizados na Internet, como o caso emblemático de uma bicha preta que reage escandalosamente a uma prática homofóbica em uma estação de trem e mais uma ou duas cenas que não consigo identificar. Nós, os da plateia, somos 60 pessoas espalhadas sobre o palco, entre o proscênio e as laterais, além dos da plateia extra, cerca de 20 pessoas, que toparam assistir de longe, na plateia “tradicional” do Xisto.

Era a terceira vez que eu ia ao Xisto ver Condenados, sendo duas bem sucedidas. Sempre lotando, na segunda vez não tinha mais ingressos uma hora antes de iniciar. Um espetáculo que estreou em 2011, com uma temática aparentemente não muito popular, tem um público que me chama atenção por ser em parte familiar em ambientes LGBTQI, mas em sua maioria caras que não costumo encontrar nos equipamentos culturais do Centro de Salvador. Nem todos são gays e lésbicas, desconfio que os héteros sejam metade ou maioria. Duas das vezes em que fui ao Xisto identifiquei pelo menos uma pessoa trans, e sempre a plateia era em sua maioria negra. Há um frisson de chegar cedo, pegar um bom lugar, por conta da limitação do espaço, o que dá aquela sensação de que a peça começa antes, nos preparando para uma situação em que nossos corpos precisam estar dispostos, preparados.

Entramos, nos acomodamos. Um ou outro parece perdido porque, sabe como é, precisamos de companhia no teatro. Raramente as pessoas vão sozinhas, e nesse caso em especial são muitas as duplas de homens e de mulheres que querem sentar juntos. O diretor vai buscar uma cadeira extra na coxia e é dado o último sinal. Blecaute. Estou acomodado na lateral direita alta, porque quero ver as reações do público e porque sei que atrás de mim estão os atores concentrados antes de começar.

E começam. O tom é alto, gritado, nervoso. A tensão se instala entre nós. Dois irmãos que brigam porque um deles é gay. Temos em menos de cinco minutos de peça um confronto físico em nossa frente. Eles lutam e caem no chão. Dizem coisas horríveis um pro outro. Descobrimos que um dos personagens, o vivido pelo ator negro, é um filho bastardo, da empregada, que foi criado pela mãe-madrasta, e assim começamos com o filho-gay-negro-problema. A homofobia só não basta. Temos de entendê-la em suas intersecções.

Dessa primeira cena, segue a projeção já mencionada de uma sequência em stop motion do que será um caso bárbaro de homofobia que vai sendo construído ao longo da peça. Na ânsia de dar conta da complexidade do tema, o diretor-autor recorre a uma sequência de narrativas, representações, flashes que são muito pertinentes quase todos, e que são apresentados sem subestimar a plateia, pedindo que nós façamos as concatenações, que, a partir de nossos horizontes, recortemos o que nos interessa recortar. Nesse sentido, a escolha é acertada, porque se propõe a narrar não uma história, mas muitas: são quase 25 personagens vividos por 2 atores em pouco mais de uma hora. Dois atores que se esforçam dignamente em dar conta de tantas possibilidades de existências e conflitos.

Quanto a nós que assistimos, cada um que cate seus caquinhos de percepção, cole com sua experiência individual com o tema e vá refletir sobre o assunto depois que acabar a peça. Contudo, o problema é o tempo, que não temos, para concatenar. São raríssimas as pausas, os blecautes são um piscar de olhos, e a sequência frenética de histórias que são costuradas em cena compromete as transições, as nuances para que os atores nos sinalizem para além do tom da voz e de um casaco ou óculos que estão mudando de personagem e de cena. As marcações ajudam, claro; há uma preocupação quase didática em distribuir as cenas em diferentes espaços do palco, mas o fluxo das narrativas é intenso demais para a complexidade do que se quer apresentar ali.

 

Não é o tipo de peça que a gente vá para se sentir confortável, ou não deveria ser. Homofobia não é abstração para um gay. Para mim, por exemplo, homofobia é uma cadeira que, depois de atirada em minha cabeça, ficou caída no chão, como estavam as cadeiras de Condenados. Homofobia para mim são alguns nomes próprios que sofreram muito antes de morrer. Talvez por isso tenha ficado uma ou outra vez constrangido de ouvir alguns risos da plateia. Talvez Marcelo Ricardo tenha razão em destacar que se trata de risos nervosos. Mas o fato é que na segunda vez que assisti a plateia era muito mais atenta e sensível ao que se passava em cena.

As referências locais são tantas e fico também pensando nelas. Sim, seria outra peça, se eu quiser que seja outra peça, eu que vá escrever. Mas pensei em como as balizas das fanfarras do Dois de Julho enfrentam dignamente qualquer churria, por exemplo. Pensei que Marcus Vinícius Rodrigues[1] e Jean Wyllys[2], dois escritores baianos, contemporâneos, escreveram contos em que homens homossexuais se vingam de homofóbicos. Tantos casos recentes e próximos que não aparecem para a gente. Mas depois fui dar uma olhada no blog da Cia SouDessa e percebi que mexeram no texto e que algumas referências locais foram retiradas, talvez para não ficarem datadas e incompreensíveis para o público não especializado e com menos de 30 anos.

No entanto, ainda que reconhecendo esse esforço pela interlocução com o público geral, não fica claro para quem se dirige esse “você” do texto. Aparentemente para os não LGBTQI, mas fico com  a sensação de que eles, os outros, não entenderam para quem é o recado. Talvez pela diluição provocada por tantas histórias e a escolha pelo ritmo intenso para apresentá-las.

Nos agradecimentos, Filipe Harpo reforça a colaboração de Gilmaro Nogueira, pesquisador ativista do campo LGBTQ, interessado em masculinidades, e mencionado não só no programa como numa personagem aludida em um dos momentos do texto. Menciona, com toda a razão, o sucesso de público e de repercussão nas redes sociais. Um desses textos foi assinado por Marcelo Ricardo, outra referência literária local e contemporânea de enfrentamento da homofobia, já mencionado aqui. O diretor encerra falando que a peça é panfletária, sim, porque é preciso falar dos “nossos”. E aí continuo em dúvida sobre para quem se está falando.

Um dos muitos dramas do encenador é lidar com as muitas convenções do teatro. Trazer-nos para o palco, mas tendo o cuidado de nos colocar em assuntos confortáveis faz parte do menu das convenções. Não deve mesmo ser fácil para qualquer um de nós escolher falar de um tema tão concreto para quem sofre, tão abstrato para quem pratica.

Talvez por isso, nós, em nossos assentos confortáveis, no inverno glacial do ar condicionado do Xisto, precisemos ver as cadeiras paulatinamente sendo arrumadas, enquanto desfilam diante assombros, tragédias, e algumas pistas para pensar não só sobre o fascismo, mas também em como acertá-lo na nuca.

Saí cheio de dúvidas e fui beber no bar de Espanha. Um amigo, negro e gay, perguntou o que eu tinha achado da peça. Respondi que ia escrever sobre e sempre que isso acontece fico sem saber o que dizer imediatamente depois da peça, porque penso enquanto escrevo. E ele disse que chorou algumas vezes e que achou o texto respeitoso apesar de tratar de temas tão delicadamente brutais. Lembrei da cadeirada de 89, da cadeira no chão. Peguei a cadeira e a pus de volta e o papo derivou para exemplos fictícios e reais de enfrentamento da homofobia. Nossos e alheios. A peça não acabou.

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[1] A paz que chega no depois. In: RODRIGUES, Marcus Vinícus. Eros Resoluto. Salvador: P55, 2010.

[2] Caça e caçador. In: WYLLYS, Jean. Aflitos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 2001.

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