Treta | Cênicas


Foto de Juh Almeida

sobre a conferência de Angela Davis e outros eventos menos badalados e igualmente relevantes

No dia 25 de julho do ano de 1992 foi criado o dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Essa data é um marco de resistência e de aproximação das mulheres negras do continente latino-americano, uma vez que nossas histórias e memórias são moldadas pela mesma estrutura que resiste em abandonar hábitos escravocratas. Entretanto, a data só foi inserida no calendário nacional no ano de 2014, durante o governo da Presidenta Dilma Rousseff.

Neste ano, no qual a data completa 25 anos, Salvador foi presenteada com uma conferência da militante e ativista Angela Davis, a pantera negra que se tornou mundialmente conhecida após a campanha pela sua libertação “Libertem Angela Davis” nos anos 70.

A iniciativa do Instituto Odara de trazê-la para a reitoria da UFBA rapidamente ganhou reverberação e era unânime: “Vai lotar”.

Às 15h o auditório foi liberado, pois a aglomeração em frente à reitoria já era tão grande que não encontrávamos mais abrigos da chuva. A partir daí, uma nova ética foi estabelecida na reitoria da UFBA. Aquela reitoria tornou-se, como nos diria Beatriz Nascimento, um grande Quilombo. Uma grande fuga.

Eu não tenho nem condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade (Davis, Angela)[1].

Eu estava entre a parcela que chegou cedo e conseguiu se acomodar numa cadeira. Mas, pouco tempo depois de nos acomodarmos, iniciou-se uma briga de quem estava dentro pela liberação da entrada dos que estavam fora, mesmo significando que teríamos menos conforto. Aos poucos as sacadas foram liberadas; em seguida, as laterais, o corredor, o chão do palco, os vãos entre as cadeiras e por aí vai.

Um dos momentos mais simbólicos, durante a distribuição dos lugares, foi quando os espaços reservados para as autoridades políticas foram tomados, reestruturando em ato a ideia da representação: não faz sentido a entrada em um espaço de poder se não vier acompanhada de iniciativas que insiram mais pessoas nesse mesmo espaço. Essa era a ética que regia aquelas relações.

A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva (Davis, Angela)[2].

Enquanto as pessoas se organizavam em seus espaços, em uma das sacadas uma mulher puxou um coro para que os homens brancos liberassem espaço das cadeiras. Aos poucos as mulheres brancas começaram a levantar também, constrangidas com a movimentação.

Esse momento pode ter soado para as pessoas brancas como um “revanchismo desnecessário, considerando que se estavam ali era porque se solidarizavam com a causa”, como li nas redes sociais. Exatamente por concordar com a última parte dessa afirmação que pacientemente explico: ter chegado cedo e dessa forma ter conseguido um bom lugar na fila não poderia ser o critério para que uma mulher negra não conseguisse entrar e você permanecesse em seu assento. Existem inúmeras circunstâncias estruturais que nos impedem de chegar mais cedo nos lugares. Não podíamos permitir, enquanto pudéssemos não permitir, que alguma mulher preta não escutasse uma pantera negra falar.

Queremos brancos aliados. Como disse Grada Kilomba[3] meses antes no Instituto Alemão, “o racismo é uma problemática branca”. Mas é preciso entender que ao longo da história fomos traídas por muitas de nossas companheiras brancas de luta apenas por resistirem em nos escutar, como conta a própria Angela Davis em Mulheres Raça e Classe, ao traçar um panorama norte-americano que passa pela luta abolicionista, sufrágio feminino, inserção da mulher no mercado de trabalho, planejamento familiar e direito à vida.

Se faz necessário repensar a atuação das pessoas brancas simpáticas à causa negra. Muitas vezes, agir como uma aliada na luta antirracista é dar um passo para trás, tornando mais equânime essa corrida tão desleal que é viver num mundo capitalista, racista, patriarcal e cis-normativo.

Mas também estamos conscientes que não focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos. […] As mulheres negras estão entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste planeta (Davis, Angela)[4].

Ainda aguardando Angela Davis, enquanto improvisávamos um fumódromo subversivo nas dependências da reitoria, duas mulheres discutiam: “Não é todo dia que Salvador recebe um evento como esse” , disse a primeira. “Não é todo dia que Salvador recebe Angela Davis, porque eu estou cansada de ir para eventos como esse vazios”, respondeu a segunda. Enquanto a treta entre elas se desenvolvia, passando pelos espaços escolhidos para os eventos até meios de divulgação e público-alvo, me vi concordando com a segunda mulher: temos uma produção intelectual e artística bastante intensa, mas sempre nos colocamos mais disponíveis ao que vêm de fora.

Lembrei-me de três eventos recentes na cidade: I Fórum Negro de Artes Cênicas, Fuxicos Futuros e Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras. Todos eles, apesar de terem sido realizados no centro e com um recorte acadêmico, alcançaram seus públicos. Mas não me lembro de nenhum desses eventos ter citado o outro, mesmo que todos se propusessem resistir ao modo colonial de pensamento. E, como alguém que assistiu aos três e participa da organização dos Fuxicos Futuros, me pergunto se não poderíamos ter triplicado o alcance de cada um desses eventos se tivéssemos agido em rede.

No auditório, antes da abertura da mesa, O Slam das Minas se apresentou. Intenso como tudo que acontecia na reitoria. A multidão se calou para ouvi-las. Nesse momento Regina Casé tenta e consegue tirar uma foto com Angela Davis. Mas as mina tinham a multidão.

 

É necessário propor outras estruturas que comportem novas narrativas, como aconteceu na reitoria no dia 25 de julho

Uma amiga me disse após a apresentação do Slam: “Será que Angela Davis vai conseguir falar alguma coisa que seja mais intensa do que isso?” O que me fez pensar sobre uma discussão que tenho elaborado ao lado de uma grande companheira de luta e de vida, Sanara Rocha[5], sobre a resistência da militância em reconhecer a produção artística cênica como produção de pensamento. Não que este tenha sido o caso das Minas.

“Apresenta tal pedaço de sua performance nesse evento x?” “No fim do evento teremos a performance de x…”. Essa é uma forma bastante desrespeitosa de lidar com uma obra que muitas vezes necessita de um espaço e éticas específicas para a sua realização. É como se a obra precisasse se valer de uma linguagem anterior para ser validada nesses espaços, ignorando sua autonomia nos modos de criar e gerir linguagens.

Por isso faço um apelo: assistam às produções de pessoas negras. Estamos vivendo uma época de intensas produções negras, seja no cenário conservador, contemporâneo ou underground. Assistam às produções de pessoas negras. Estamos resistindo num espaço bastante hostil e seguimos propondo a construção de outros imaginários e preenchimento para as lacunas históricas. Assistam às produções de pessoas negras.

Depois de muita espera, Angela Davis começou a falar. Usando de um discurso muito coerente, internacionalista e mobilizador, falou de nós. Trouxe inúmeras referências brasileiras e tocou nos inúmeros modos de resistência encontrados pelas mulheres brasileiras, além de traçar paralelos mundiais sobre a guinada conservadora.

Ao falar sobre a indústria do encarceramento, citou o trabalho da professora Denise Carrascosa ,“Mentes livres, corpos indóceis”, com o teatro e as mulheres encarceradas e sua recente interrupção, e nos chamou para a ação.

Em função da professora Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição[6] exigindo que esse projeto seja reincorporado (Davis, Angela)[7].

Ao finalizar sua fala, Angela Davis tocou num ponto muito importante a ser incorporado em toda discussão sobre representatividade que temos vivido na cidade. A apropriação do capitalismo das pautas minoritárias.

No Brasil, agora que o mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado. Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista […] (Davis, Angela)[8].

Trazendo para o campo da arte, esse foi um ponto de vista no qual exaustivamente insisti durante a minha interlocução no Fuxicos Futuros, no que se refere à assimilação das pautas minoritárias pelo capitalismo e sua subsequente transformação em produto. É necessário propor outras estruturas que comportem novas narrativas, como aconteceu na reitoria no dia 25 de julho. Que demandam consequentemente outros modos de relação e fruição. Por sua vez, em termos mercadológicos, é necessária a criação, afirmação e visibilização das redes para que seja possível escapar da lógica competitiva na qual estamos inseridas.

No final do evento, percebi que, apesar de ter sido indescritível a oportunidade de ouvi-la falar ao vivo, o que menos importava era Angela Davis em si, mas o espaço e as trocas de intensidades que sua presença agenciou. Eu queria sair e comer o mundo. Eu queria o contato de todas as mulheres negras que estavam ao meu lado. Eu queria sair e marchar.

Então, se formou uma fila para que ela pudesse autografar os livros e uma multidão avançou. Cheguei a pegar meu livro e olhar para a aglomeração. Mas não dava. Eu precisava sair e olhar o mundo usando o filtro da sensação de invencibilidade que me mobilizava naquele momento.

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[1] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na integra no link

[2] Idem.

[3] Escritora, poeta e filósofa negra.

[4] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na íintegra no link

[5] Pesquisadora, afrofuturista, musicista diretora teatral e performer.

[6] A petição foi criada e está disponível no link: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR100995 .

[7] Fala de Angela Davis na Conferência do dia 25 de julho de 2017 – Transcrição disponível na íntegra no link http://www.revistaforum.com.br/2017/07/28/leia-transcricao-na-integra-da-fala-de-angela-davis-na-universidade-federal-da-bahia/ .

[8] Idem.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.