Treta | Cênicas


Sobre o espetáculo “Minha irmã”, direção de Marcos Oliveira 

Para quem se interessa pela estrutura do texto dramático clássico, fica evidente, no teatro, quando a encenação partiu de um texto que foi cuidadosamente construído por alguém que arquitetou seu escrito a partir de conceitos como ação dramática, peripécia, reconhecimento, caráter etc. Neste tipo de encenação, na qual o texto é dito tal qual foi grafado, prediz-se que um dos elementos que mais saltará aos olhos será o diálogo entre as personagens.

Sendo eu uma dessas pessoas com tal interesse, chamo atenção aqui para o deleite que pode ser acompanhar, a cada curva, o descortinar dessa paisagem verbal/sonora que parece nos chegar por itinerário semelhante ao da música.

Para Cleise Mendes, “A frase dramática é em si mesma um gesto. Ao lê-la, imaginamos simultaneamente a atitude da personagem que a profere. É o que Brecht nos lembra ao citar o famoso exemplo da Bíblia: ao invés de ‘Arranca teu olho esquerdo que te serve de escândalo’, lemos ‘Se teu olho esquerdo te serve de escândalo, arranca-o!’ Em vez de um período iniciado pela ação, amarrado pela lógica sintática, a frase gestual, proferiu uma condição, um aviso, um efeito de leve hesitação e, bruscamente, a ordem de agir.”[1] Se a escolha é trabalhar com esse tipo de texto e ao mesmo tempo se despreza suas estratégias próprias de relação, corre-se o risco de transformar o espaço cênico em um ringue onde os elementos da obra lutam entre si.

Os criadores do espetáculo Minha Irmã trazem, além do texto dramático como descrito anteriormente, outra escolha dramatúrgica que também irá reclamar especialmente pela atenção do espectador: a mímica corporal dramática ou dramaturgia do corpo, que se baseia nos movimentos ou gestos como principal forma de expressão. Já aí, somamos a convivência de duas escolhas gestuais.

O terceiro componente que chama atenção na obra citada é o tom de voz utilizado pelas duas atrizes para pronunciar suas réplicas do início ao final da peça, em cada fala. Um tom denso, grave, como imaginamos ter sido proferido o texto de Fedra em sua primeira montagem em 1677.

Quando perguntado em suas aulas sobre dramaturgia se “podia colocar” isso ou aquilo no texto, Marcos Barbosa (autor do drama Minha Irmã) respondia: “tudo pode naquilo que fortalece”, apontando para o quesito intuição quando a empreitada diz respeito ao ato de criar. O texto, o corpo, o tom de voz e, com vinte minutos de espetáculo, três já me pareciam ser demais. Isso tornou-se manifesto no instante em que um teatro aconchegante como o SESI – Rio Vermelho pareceu insuficiente; quando cinquenta e três minutos de peça soaram insustentáveis. Nenhuma duração e nenhum espaço seriam capazes de abarcar a exobitância daquela montagem.

Em busca de uma matemática possível, meditei sobre qual elemento poderia ser o resto na operação de subtrair que se impôs. A primeira tentativa consistiu em omitir o texto, restando apenas a mímica, já que, excluindo-o, retirou-se também o tom de voz. Atentei-me então às imagens produzidas a cada cena. Como a performance das atrizes partia de uma presença cênica e de uma expressividade que se mantiveram inalteradas realçando uma solidez primorosa, a experiência foi interessante, pois os quadros formados pela mímica corporal dramática atendiam à apreciação. Porém, se uma obra como Minha Irmã é escolhida para tecer a composição cênica, o enredo não é algo desprezível nessa montagem e, sem texto, ele desaparece.

 

O texto, o corpo, o tom de voz e, com vinte minutos de espetáculo, três já me pareciam ser demais. Isso tornou-se manifesto no instante em que um teatro aconchegante como o SESI – Rio Vermelho pareceu insuficiente; quando cinquenta e três minutos de peça soaram insustentáveis. Nenhuma duração e nenhum espaço seriam capazes de abarcar a exobitância daquela montagem

Na investida seguinte, fantasiei “o mesmo espetáculo” sem a mímica corporal, restando assim o texto de Marcos e o tom conferido pelas atrizes para pronunciá-lo. Fechei os olhos e a cena em si, os movimentos corporais/cênicos, ficaram por conta de minha imaginação. No entanto, alguns minutos adiante e o desejo de vedar os ouvidos se estabeleceu como urgente.

A essa altura, não se fazia mais necessária a investigação sobre o elemento excedente: o tom de voz impresso pelas atrizes começou a tomar todo o espaço, toda a minha atenção, nada mais existia e, por pouco, o texto e a mímica, que nada tinham com isso, não sucumbiram também.

A recomendação do professor Marcos Barbosa quanto ao que “pode e o que não pode” na criação resulta no indiscutível de que tudo pode e, nesse sentido, sabemos que hoje vemos de tudo. Que bom. Apesar disso, uma reflexão, que a mim mesma soa tacanha, mas que por enquanto encontra apenas uma saída, perturbou meus pensamentos desde que deixei o teatro na noite de Minha Irma: qual situação cênica, em 2017, seria “fortalecida” por esse tom de voz, senão uma situação de comédia na qual o objeto de riso seriam os velhos e conhecidos costumes, neles incluso esse tom de voz mesmo?

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[1] Cleise Mendes em As Estratégias do Drama, 1995.

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