Ensaio | Cênicas


Rumores da Terra
Wifredo Lam

ENTRE CAVALOS E SUICIDAS

novembro de 2017

Edição: 18


“Um dia esse menino voa”, proclamava minha vó enquanto me via balançar os braços debaixo da mesa. Uma criança pode agitar os braços como quiser, mas eu agitava diferente. Eram movimentos sem início ou fim, espasmódicos, como se a velocidade do corpo não alcançasse a da imaginação. No banheiro fantasiava heróis voadores, superpoderes e histórias entre as tramas do azulejo, animais mutantes nadando na pia, furacões e outras formas transcendentais, enquanto as mãos se contraíam e se expandiam pelo espaço. Quando me dava conta, elas paravam. Minha imaginação, como a de muitas crianças, suponho, era projetiva e concreta, dava-se entre mim e as coisas do mundo. Esse é o tipo de comportamento que abandonamos progressivamente, e é justo ele que define a nossa infância. Não poderia ser de outra forma. Todo o restante da criança é projeção adulta. Minha imaginação ainda não estava dissociada do gesto – tendia para o Todo, tocava o corpo do cosmos.

Em toda a minha vida, só encontrei um companheiro de balança-braços. Ainda no jardim de infância, percebi que F. tinha o mesmo trejeito. Durante nossas conversas e brincadeiras, as quatro mãos agiam sozinhas no ar feito aranhas em convulsão, enquanto as bocas tagarelavam sobre jogos de computador. Aos poucos, os olhares alheios foram cerceando nosso espaço. Tivemos que retroceder, perdemos território. Do parquinho aos corredores, dos corredores aos quartos fechados.

Como esse balançar extravagante foi sumindo aos olhos do mundo, eu nunca pude saber exatamente do que se tratava, ou nunca me contaram. Uma parte foi diminuindo até o tique, outra se transformou em obsessões e linguagem. Na Internet, o mais fisicamente parecido que encontrei foram casos de autismo e certas manifestações da dança contemporânea. Aferrando-me apaixonadamente à última, preferi classificar meus gestos como sintomas de uma “Síndrome de Fukushima”. Hoje, a partir do pouco que pude encontrar, tendo a achar que realmente nasci com um pequeno grau de autismo ou “estereotipia comportamental”. O que aconteceu é que de certa forma fui aprendendo a falar a língua dos homens como quem aprende as regras de um jogo imenso.

Mais tarde, essas regras foram me chegando de maneira cada vez mais cínica. Era como se as emoções entrassem poucas vezes na jogada, nesse mundo constituído apenas de fluxos incontroláveis do corpo versus peças idiotas da linguagem. O negócio é que os outros jogadores conseguiam ser tão canalhas quanto eu. Mesmo sem qualquer dia na vida terem tremido um só dos seus quatro dedos mindinhos, eles sempre conseguiam me superar. Porque existe mesmo um cinismo ensinado. Na verdade, em todos esses anos de lida com o mecanismo cru da linguagem, aprendi e decidi que todo ensino, pedagogia ou educação formam algo como uma teia de propagação do cinismo social.

É claro que se isso fosse uma tese eu não poderia sair por aí disparando assertivas sem antes recorrer a uma série de explicações maçantes. Ensino, pedagogia e educação não são conceitos iguais, não podem ser confundidos. Mas qual o problema, se Henry Miller, um dos meus autores prediletos, acavalou em suas linhas cachorros, bocas-de-lobo, garrafas, astrofísica, filosofia oriental, armas, chapéus, croissants, batons, abajures, insetos, abacates, cobras, cortes, supernovas, salamandras, paus, bocetas e escovas-de-dentes? O que lhe interessava nas palavras era o grau de intensidade que suportariam ou não veicular.

Certos espíritos esclarecidos poderiam me contestar tranquilamente, explicando que Miller é um artista e uma tese é uma tese. Concordo em parte. No campo da crítica, suspeito que a cobrança constante de “profundidade” ou “mais fôlego” sirva somente para esconder a profunda falta de humor e o sufocante carisma de uns tantos pensadores cansados. Em seus conselhos ressoa a restrição: “Daqui você não passa”. Mas vou além. Penso nos lugares em que o conhecimento se reproduz, as celas onde ganham legitimação. Especialmente, não suporto a resistência do academicismo contemporâneo à Descartes – já bastante caquética, diga-se de passagem. Se ponho lado a lado o velho francês e Foucault – um dos superstars da contemporaneidade esclarecida – comparando neles os quesitos prazer, interesse e intensidade, o tom ensaístico do primeiro abre-se como uma caixa de Reich emanando partículas de amor, enquanto os labirintos do segundo remetem aos olhos baços dos paranóicos de Facebook. Foucault terminou sua breve vida tomando LSD e assistindo aos irmãos Marx, mas parece ter legado aos nossos artistas-pesquisadores o quinhão de se sentirem incessantemente punidos e vigiados. A pesquisa acadêmica, seja qual for, tende a arremessá-los justo na malha do poder que pretendiam desentranhar. Agora devidamente engajados num processo infinito de leitura, escrita e referenciação ao Primeiro Livro invisível, se perdem ali onde o próprio Foucault toma uns traguinhos com Kafka. À revelia do seu conteúdo, a voz dos livros foucaultianos vibra na mesma frequência que a dos saberes institucionais, e isso não é uma questão de entendimento, mas de escuta; não de assimilação, mas de toque. Todo estilo, seja bom ou mau, nos chega como atmosfera concreta; nele o saber é uma entidade que vive entre nós – supera, atravessa e contraria biografias, análises, plataformas políticas e grandes interpretações.

Enquanto isso, abrindo o Discurso do Método ainda poderemos surpreender Descartes dando passos lentos e solitários num quarto de acampamento militar. Ele nos impõe uma atmosfera noturna, silenciosa, invernal, e o faz na melhor prosa. Pergunta-se como se se questionasse, pela primeira vez, “o que seriam essas coisas estranhas, corpo, eu, deus, espírito, objetos, espaço?”. Haveria, aliás, como filosofar prescindindo desse momento arejado e desmedidamente ignorante? Por que aos deleuzianos da PUC interessa mais dizer “a cidade de São Paulo é um rizoma”, quando poderiam falar como Roberto Piva: “Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci/ onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo seus olhos com/ lágrimas invulneráveis/ onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes/ que saem escondidos das tocas/ onde adolescentes maravilhosos fecham

seus cérebros para os telhados/ estéreis e incendeiam internatos/ onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam/ a descarga sobre o mundo”? Hoje, o deus de Espinoza, mesmo incrustado no latim austero da lógica clássica, revela-se mais brilhante que uma só molécula de singularidade deleuze-guattarineana.

Mas na academia contemporânea a criação e repetição de conceitos dá lugar a uma verdadeira corrida do ouro. Quando observo a penca de pesquisadores repetindo formulações que sequer brotaram do corpo, sou forçado a pensar que naqueles corredores a canalhice reina sozinha, não pela má ou boa fé dos indivíduos, mas por mera inércia ou medo profundo. Trata-se, de fato, de uma obtusidade a la Foucault: a-subjetiva, amoral e sistemática. É claro que os pesquisadores não têm controle algum sobre a própria ignorância, e nem poderiam ter, pois “ninguém se crê desprovido de bom senso”. Em certos momentos, chego até a vislumbrar a luz de uma estranho amor brotando em seus corações, e se os deixamos alguns meses a sós na labuta de suas dissertações, logo surpreenderemos a aurora de uma paixão nascida do lodo, do costume e da inércia, do mofo e da escuridão, como o mokshafermentando no estômago vazio de um sadhu, contraída como se contraem as contaminações por Rádio ou a fé na Santa Cruz. Eis um companheiro à altura da Síndrome de Estocolmo: o Complexo do Ens Investigator.

A brutalidade acadêmica é uma enfermidade crônica; não aparece na primeira auscultação. Late por muito tempo dentro dos órgãos, silenciosa e confortável sob as máscaras da impostura, impropriedade, esquecimento, oportunismo, repetição, covardia e mediocridade. Isso não se prova apenas pelas médias de avaliação, mas pelo funcionamento burocrático dos colegiados. É esse minúsculo buraco o portal pelo qual a complexidade será obrigada a se agachar sempre que venha a mendigar qualquer pedaço de pão. Bastam, como santinhos retirados do próprio Relicário do Saber Desconstruidão, as vidas de Nietzsche e Benjamin, ambos duramente rejeitados pelo poder universitário. O primeiro quase não conseguiu publicar em vida, o segundo pelejava como freelancer intelectual. Nietzsche enlouqueceu abraçado a um cavalo. Benjamin, suicidado.

Um pouco menos trágicos são os perigos de hoje, apesar de numerosos e possivelmente mais graves, justamente porque mais imiscuídos no cotidiano, mais amenos e adocicados: a subserviência da arte ao jargão científico, a cristalização das instituições acadêmicas enquanto lugares exclusivos de propagação do conhecimento, a tendência do pensamento contemporâneo em afirmar, revelar, esquadrinhar e explicar toda e qualquer dissidência subversiva – como se estas não vivessem justo além de todo mainstream.

O preço que a universidade paga por ter se agarrado ao conceito ligado à própria palavra foi o de ter se transformado num monstro totalitário, mas a culpa não é só dela. Suas intenções foram sempre as melhores – as mais morais e as mais edificantes, como as que se espera de um pedagogo genérico. Mas se a voracidade mercadológica – especialmente ambígua nos países pós-coloniais – não perdoa nem grandes editoras como a Cosac Naify, a universidade acaba se tornando o último refúgio do saber; e ainda assim, extremamente contaminado. Vemos agirem nela as mesmas regras do capital: a velocidade na produção de artigos, a exploração do trabalho dos orientandos, os lucros na pontuação do Lattes, o carreirismo, o corporativismo, o ritual do lambe-botas e o alpinismo institucional. Nada em seu estilo configura novidade: esse permanece duro como sempre foi a partir do período moderno; mas suas ideias, a despeito da chuva intermitente de novos conceitos e epistemologias, tornam-se mais e mais repetitivas. Ironicamente, a pasteurização das teorias desconstrucionistas têm funcionado, na boca de distintos doutores, como placebos a camuflar uma total falta de invenção. Sejamos francos. Há muito pouco de corpo no corpo tratado pelos artigos de dança, não há nada de som nas palavras produzidas pelos pesquisadores musicais. É o uso repetitivo de certos jargões que acaba criando sua própria utilidade. Tudo acontece como se a mera blablação mântrica de palavras como eucorpo, corpoeu, motocorpo, corpomídia, corpomundo, mundocorpo, corposemcorpo, corpocomcorpo, artistacorpo, artistanocorpo, corpoemvida, corpoárvore, corponaárvore, corponocorpo, corponocôco, vovôviuocorpo, corpoproc, corponoproc, corpodeporco, corpopoporco, porconocorpo, corpoacorpo, corpocomcorpo, corpococorpo, pudesse fazer com que o fantasma e a máquina de Descartes se reconciliassem milagrosamente, quando esses conceitos não são mais que a própria cisão incorporada.

Da primeira vez que passei meses produzindo um trabalho acadêmico a única coisa que ganhei de verdade foi um refluxo gástrico. Naquela época tirei o café, mas só melhorei mesmo quando pude novamente sair para respirar um pouco de ar. Me sentia como um Sócrates bukowskiano em que o daimon era um blue bird afogado por intermináveis tragos de referências e citações. Mas ao menos uma coisa ficou clara: o estilo, as normas e o ritmo da produção acadêmica são absolutamente insalubres. Uma vez dentro da academia, qualquer pensador minimamente honesto será obrigado a não ser mais que um bom malandro a driblar as constrições assimiladas. É uma luta invertida pela sobrevivência, na qual mentes brilhantes definham e opacas sobem degraus. A tônica geral é a de um terror muito bem dissimulado. Num país em que um encenador octagenário como Zé Celso precisa fazer campanha de crowdfunding para pagar uma cirurgia cardíaca, o pesadelo e o sonho de todo artista é conquistar uma vaga na pós-graduação. O que os impulsiona é menos o prazer da investigação que a perspectiva de uma velhice com dentes podres.

Dessa paisagem pós-apocalíptica e suas dantescas visões, até agora a crítica tem me salvado por vias inescrutáveis, algumas dolorosas, outras nem tanto, e a cada vez que tentei esquecer, sublimar, reprimir, afogar, castrar, domesticar, organizar, ensinar, conscientizar, civilizar, educar, capacitar, endireitar ou humanizar o tremor subterrâneo dos meus braços, ela me ressuscitou com um soco certeiro na boca do estômago

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