Cênicas


#noite1 Cobertura Crítica do JUNTA FESTIVAL DANÇA E CONTEMPORANEIDADE (PI) - 10ª edição  
Victor Martins @martinsvictor_ 15/10/2024

Sobre o espetáculo “Dança Monstro” da Cia dos Pés (AL) 

Duas pessoas já estavam dançando quando a plateia entrou, ou seja, era o começo e, ao mesmo tempo, já havia começado. Penso: sempre que outra pessoa chega já tem coisa acontecendo. Vou me dando conta ao longo do trabalho alagoano Dança Monstro, dirigido por Telma César, que, considerando o chão de brasa sobre o qual estamos todos, frequentemente não há marco zero ou ponto inaugural.

Sem coxias, sem rotunda, sem ciclorama, sem teatro, a caixa cênica está despida ao máximo, assim como a dançarina e o dançarino. O mínimo irredutível? Chão e iluminação tingem tudo em diferentes intensidades de vermelho. O público se aloca nas bordas do espaço cênico delimitado pela cobertura. Olho para o piso vermelho e a palavra “Brasil” me vem à cabeça: lugar que contém brasa, braseiro. O chão do retângulo de 8m x 6m será provocado em expansões e recuos da dupla ao longo dos aproximadamente 55 min de peça. 

O dentro-fora é um dos tecidos dinâmicos da performance. O espaço é tratado menos como um lugar onde a ação acontece e mais como um fenômeno de volumes variáveis. Enquanto dançam, Joelma Ferreira e Reginaldo Oliveira não param de produzir espaços, de reconfigurá-los e de serem afetados pelas reconfigurações. Em termos de relação, alternam  dançar entre si, dançar sozinhos, dançar para fora, chamar o fora para dentro e implodir com tudo, nessa ordem. Acontece que todo fora presume um eles em oposição ao nós, até que só haja o nós que cai em entropia junto, ao final. Coreograficamente, a dupla exercita diferentes jeitos de estar junto. Na dança, a dupla se afeta de modo recíproco e convida a afetação de um fora (a plateia) pra cada vez mais junto. Mesmo separados, além de simultâneos há alguma cola ali – contrariando a proposição do dançarino-autor Wagner Schwartz em Nunca juntos mas ao mesmo tempo (2018), cuja hipótese é de que não existe o junto, apenas o simultâneo.

A produção de espaço comum nesse trabalho me leva a pensar, enquanto questão central, no Brasil – palavra inventada para algo que não nasce com esse nome e que pode portanto ser substituída aqui por “Monstro”. o Brasil é o monstro. Ou ainda: o nós é o monstro. Ele é o tecido metamórfico que está em brasa.    

A categoria “monstro” tem interessado a um certo recorte cênico da dança contemporânea brasileira. Para citar um exemplo recente, em agosto deste ano, o também longevo Festival IC – Interação e Conectividade, produzido pela Dimenti em Salvador (BA), orientou sua curadoria para o tópico monstruosidades em cinco diferentes fabulações na cena contemporânea. Na noite de abertura deste 10º Junta,  Dança Monstro leva o mote no nome, mas realiza o desejo pelo monstruoso e anormal de maneira distante dos efeitos aterrorizantes esperados. O monstruoso aqui está mais próximo do disforme, uma ruptura não com as formas dos corpos mas dos limites entre as coisas. Todo o espetáculo se apresenta num fluxo de estruturas sem contorno: basta que os dois performers submetam o ato de pisar no chão a algumas repetições, agitando ou ralentando um pouco e a coisa já se corrompe, já se torna outra. Uma dramaturgia do pisar e do arrastar que, combinadas de variadas formas, derivam muito mais que uma série de danças brasileiras, mas o Brasil como um ente polimórfico. Nesse “código binário BR”, pisar-arrastar se transforma em correr, que se transforma em toré, que se transforma em arrasta-pé, tambor de crioula, samba…  que depois se comprime ao limite e dirige o pulso dos pés a um soco de quadris numa imagem especialmente original e macunaímica do re-quebrar e das associações diretas entre bolar, re-bolar. Desses variados graus de aproximações e distâncias, o primeiro contato tátil entre os dois surge como esbarrões e trombadas propositais, depois de terem metralhado o espaço com os genitais e com os ombros. Eis a elegância da sequência: requebrar como gesto de violência e de nascimento através da curiosidade pelo próprio sexo, essa máquina de atirar e de botar pra fora até vibrar em máxima potência. Assim, a coreografia desliza por uma miríade de danças, pouco importa quais sejam. O que importa é a qualidade metamórfica do processo.  

 A relação tecida entre pulso e espaço  também evoca certo binarismo – no sentido dos zeros e uns da informática. Em forte lembrete à política de chão do André Lepecki, o acento rítmico no pisar aparece como a base infinita de todas as coisas, mas não o começo. Então, nessa erótica dramatúrgica na qual a forma é somente uma manifestação do aparente, “monstro” – eu diria – é justo o morfologicamente instável e heterodoxo, aquilo que se forma por partes diferentes que continuam a diferenciar-se ad infinitum. De outro jeito, lembro da célebre frase do crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes sobre a  nossa “incompetência criativa em copiar”,  que aplico a este espetáculo sob a ótica da impossibilidade de se manter copiando a si mesmo por muito tempo. Sob essa mesmidade impossível, numa análise combinatória endógena, mesmo versus mesmo será sempre produtor de uma coisa nova. As partículas se aquecem, a coisa se corrompe e já se torna outra. 

É digna de nota a paridade que o par de intérpretes estabelece entre si durante toda peça: a estrutura desliza de tal modo que não estamos nunca diante de uma alegoria de casal. Pelo contrário, há um senso de comunidade e de expectativa de multiplicação (de gesto e de gente) que ao final se desdobra nos convites a um grande círculo. Olhando em retrospecto, o convite está sugerido desde o começo pelos olhares coreografados da dupla. Essa igualdade de presença e de agência entre os intérpretes negra e branco é tal que o dado é quase apenas um elemento de leitura e não “o” elemento central orientador da recepção crítica do trabalho como um todo – sendo assim,  gênero e raça são neste caso, elementos que compõem o material mas não o definem em primeiro plano.

Considerações sobre o fim ou considerações sobre o futuro: o desejo de pôr toda a plateia junto de mãos dadas é a utopia do Brasil pós-pandêmico politicamente fraturado . O dispositivo do convite de mão estendida e olho-no-olho até formar uma grande ciranda que serpenteia sob os auspícios do toré indígena, eis nosso idílio de esquerda festiva. A essa altura da coreografia, não temos mais nenhum grau de vermelho alarmante sobre os corpos, sinalizando perigo. Contudo, a ciranda também logo se transforma em outra coisa, porque a paz por si, sem nenhum tecido estriado, não poderia ser o ponto final: a serpente humana se comprime num bolo de gente e isso vibra até o grito, até o latido, até a berração, até virar outra coisa. A sensação é a de que acaba, mas continua.

***

Esse texto faz parte da cobertura crítica do Junta X Festival – Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. Para esta cobertura, as críticas de arte Heloísa Sousa (Farofa Crítica, RN) e Alana Falcão (Revista Barril, BA) fazem uma primeira conversa pelo whatsapp, após cada espetáculo, e a partir daí escrevem seus textos individualmente, que são postados tanto no site do Farofa Crítica quanto no site da Revista Barril. 

Texto de Heloísa Sousa no portal do Farofa Crítica: http://www.farofacritica.com.br/criticas/conteudo/231/vibrar-a-carne

 

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.