Ensaio | Literatura


Ilustração de Milton Mastabi

(Esta é uma versão digital do texto publicado na revista Barril Impressa #1 e não inclui as notas nem as ilustrações do artista Milton Mastabi. Para adquirir a Revista clique aqui e peça pelo ZAP da P55 Edição)

 

«O amor natural move o amante a, principalmente, três coisas: uma é magnificar o amado; outra, zelar por ele; e outra, defendê-lo, como todos podem ver acontecer continuamente. Essas três coisas me fizeram escolher o nosso vulgar, que amo e amei por natureza e por acidente.» Assim escreve Dante no Convívio (I, X), falando sobre sua decisão de escrever em língua vernácula — o assim chamado volgare — e não em latim. “O amor natural à própria língua” é uma das três razões que o moveram a essa escolha — voltando alguns capítulos, o autor explica que as outras são a “cautela contra uma inconveniente conduta” e a prontezza di liberalitade, ou seja aquela “generosidade” que permitiria alcançar um público maior  (I, V)—, e é nesse amor e na investigação da palavra poética que nasce a Comédia.

Traduzir a Comédia não significa apenas verter para outra língua um «clássico», texto considerado coluna firme da cultura de um país ou de uma civilização; significa, antes de tudo, mergulhar em um universo perceptivo que desafia continuamente os limites da linguagem verbal, levando em conta, ao mesmo tempo, as inúmeras dificuldades técnicas (métrica, rima, precisão imagética, léxico variado e específico, sintaxe que se modela segundo estilo e conteúdo) e a singularidade dos temas tratados.

No ano passado, a Companhia das Letras publicou uma nova tradução do Inferno, em edição bilíngue, fruto do trabalho de três tradutores: Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise, que são também professores, pesquisadores e ensaístas, referências importantes no Brasil para a obra de Dante, a literatura italiana e os estudos sobre tradução; o livro inclui também as gravuras de Evandro Carlos Jardim, que inauguram os cantos. Esse volume propõe aos leitores e às leitoras do Brasil um mergulho na realidade múltipla do poeta florentino, apresentando, além da tradução dos trinta e quatro cantos, um texto introdutório redigido pelos tradutores, e ensaios de poetas brasileiros e italianos (Dante Milano, Eugenio Montale e Pier Paolo Pasolini). 

Traduzir poesia, como se sabe, é muito diferente de traduzir qualquer outro texto: forma e sentido coincidem, não existindo hierarquia entre os dois aspectos, entre o entendimento do intelecto e aquele que simultaneamente intui; em poesia, o sentido vem junto com a linguagem e, em alguns casos, se produz a partir dela. Um poema que mobiliza por sua invenção, mas que não mostra vigor e solidez de linguagem, jamais será um bom poema; do mesmo modo, versos bem escritos que se desmancham na medida em que são lidos nunca se tornarão poesia. A tradução poética tem, então, o objetivo de recriar em outra língua uma experiência que funcione como obra de arte que fala à nossa mente e ao nosso corpo: um poema há sempre de transformar. 

E na combinação desses elementos Dante excele, confirmando a cada verso seu gênio perceptivo e a qualidade extraordinária de sua escrita. Na Comédia, o autor alcança o nível mais alto de sua obra e da poesia de língua italiana: sua linguagem poética muda conforme as exigências de estilo, passando do trágico ao cômico-grotesco, do plástico ao inefável, e se mantém sólida do primeiro até o último canto. 

Traduzir a Comédia significa se deparar com um espectro de linguagem vastíssimo que vem se construindo ao longo da vida do autor: nele confluem as experiências poéticas da juventude e a investigação da língua em suas inúmeras possibilidades — esse é o caso dos poemas stilnovistas, caracterizados por um estilo elevado e um vocabulário que remete à figura da mulher angelical, e das rimas pedrosas, que, como sugere o nome, constituem aqueles poemas ásperos na boca e nos ouvidos — , mas também as reflexões de caráter filosófico, científico e teológico espalhadas em seus tratados, alguns escritos em vulgar, e outros, em latim. 

A linguagem vívida e elaborada é de significado sólido, que, para ser entendido em toda sua capilaridade, precisa ser investigado em suas fontes e referências. O repertório ao qual Dante atinge, de modo direto ou indireto, é amplo: fontes antigas (Virgílio, Homero, Horácio, Ovídio, entre outros); texto bíblico (Antigo e Novo Testamento); a filosofia grega dos grandes mestres (Aristóteles, em primeiro lugar); ensinamentos filosófico-teológicos da doutrina cristã (Severino Boécio, Bernardo de Claraval e Tomás de Aquino são os mais importantes); influências orientais (o Livro da Escada e a tradição do miraj; a mística judaica) e referências a tradições literárias anteriores ou coevas (poesia siciliana; trovadores da língua d’oc; matéria do ciclo arturiano). 

Traduzir o poema de Dante significa, então, abarcar ao mesmo tempo sua forma linguística, acompanhando-a em todas suas variações, e a consistência de seu sentido: impossível restituir as palavras de Dante sem conhecer filosofia, teologia, o mito e a História, como também as expressões literárias que outras línguas produziram. 

“A Comédia: visões e sons de Dante”, título escolhido para o texto de apresentação, resume em poucas palavras a força de um universo que se alimenta de imersões visionárias e linguísticas, guias luminosos do poema. Depois de abordar aspectos como data de composição, origem do título, modelos e estrutura, França de Brito, Santana Dias e Falleiros Heise apresentam uma importante “Nota da tradução”, falando da língua de Dante e de suas peculiaridades — ressaltam a liberdade que o poeta florentino tinha em relação a sintaxe, léxico, fonologia e morfologia por escrever numa época mais livre de prescrições gramaticais; mostram de modo detalhado como funciona o verso em seu aspecto métrico e rímico —, do processo tradutório a seis mãos e de suas características. 

Todo poema traduzido deve ter a potência de um original e a sensação de quem lê há de ser a de um texto originalmente composto naquela língua. Exemplos dessa “originalidade” da tradução se encontram ao longo do Inferno todo, e o Canto V é certamente um dos mais belos: nele se colhe o extremo cuidado com o léxico, a sintaxe e a sonoridade. 

O canto se abre com a figura infernal de Minos e a descrição de como são distribuídos os pecados:

Assim desci do círculo primeiro

ao segundo, onde o sítio menor era,

e a dor maior, que punge qual vespeiro.

Lá estava Minos feio, e vocifera,

a examinar as culpas bem na entrada:

julga e manda segundo se apodera. 

Digo que quando a alma malfadada 

lhe vem à frente toda se confessa;

e o tal conhecedor de coisa errada 

vê qual lugar do inferno cabe a essa; 

tantas vezes coa cauda ele se enlaça, 

quantos graus para baixo ele mereça.

Sempre diante dele estão em massa:

vão uma a uma em coro ao precipício

após ouvir o que o juízo traça.

 Così discesi del cerchio primaio

giù nel secondo, che men loco cinghia

e tanto più dolor, che punge a guaio

Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia:

essamina le colpe ne l’intrata;

giudica e manda secondo ch’avvinghia.

Dico che quando l’anima mal nata

li vien ‘ dinanzi, tutta si confessa;

e quel conoscitor de le peccata

vede qual loco d’inferno è da essa;

cignesi con la coda tante volte

quantunque gradi vuol che giù sia messa.

Sempre dinanzi a lui ne stanno molte:

vanno a vicenda ciascuna al giudizio,

dicono e odono e poi son giù volte.

 

Nesse fragmento se aproveitam relações de grafemas e fonemas que o italiano desconhece, mas que caberiam no leque linguístico de Dante. Os tradutores se relacionam com a poesia e a língua do autor e, ao mesmo tempo, com o repertório literário e linguístico do português, entendendo qual a margem de manobra que têm para restituir, alterar e reformular. O grupo de palavras “confessa”, “essa”, “mereça” contém na rima o mesmo fonema /s/, mas a grafia é diferente; o mesmo acontece no caso dos termos “enlaça”, “massa”, “traça”, que, relacionando-se com o outro grupo, acrescentam mais uma camada ao jogo linguístico. 

“Dante usa a língua como um barro mole, moldável”, escrevem os tradutores em sua nota inicial, e é desse barro que se alimenta também a tradução. No mesmo canto, lemos os seguintes versos:

 

Disso que ouvir e que falar apraz,

vamos ouvir, vamos falar a vós

enquanto em vento a voz não se desfaz. 

 

Di quel che udire e che parlar vi piace,

noi udiremo e parleremo a voi,

mentre che ‘l vento, come fa, ci tace.

A tradução desse terceto se destaca por ritmo e sonoridade: as palavras “apraz”, “vamos”, “ouvir”, “vós”, “vento”, “voz” e “desfaz” com seus fonemas fricativos /s/ e /v/ constróem nos versos o sopro da tempestade, bufera infernale que leva para um lado e para outro as almas dos luxuriosos.  Nesses mesmos versos percebemos que a tradução insere uma homofonia ausente no original — “vós” e “voz”—, mas que se alinha perfeitamente com o estilo do autor. 

Um exemplo análogo aparece em italiano, no Canto I (vv. 34-36), quando é repetida a palavra “volto”, na primeira ocorrência com o sentido de “rosto” e “o” fechado, na segunda, como particípio do verbo “voltar” e vogal aberta: e non mi si partia dinanzi al volto,/ anzi ‘mpediva tanto il mio cammino,/ ch’i’ fui per ritornar più volte vòlto. Esses termos se pronunciam de modo diferente, mas se escrevem da mesma maneira, e, além do jogo da repetição, estabelecem uma aproximação com a palavra volte (“vezes”). Dinâmicas desse tipo são frequentes em Dante, integrando um repertório de aproximações linguísticas (grafia e som) e polissemia que caracteriza a sutileza de sua linguagem. Os tradutores entendem as regras do jogo e se movem dentro delas: os vv. 95-96 do Canto V traduzidos para o português restituem a aproximação gráfico-sonora usada por Dante, não no mesmo ponto — às vezes a contingência das palavras não o permite —, mas numa outra situação. 

O Canto V é exemplo complexo e variado, nele se abordam personagens e situações diferentes, em que a linguagem se molda segundo as necessidades do sentido. Iniciando-se com uma plasticidade que remete ao teatro — a descrição de Minos e de seu ofício —, segue num estilo elevado que tem o objetivo de introduzir o tema amoroso e a triste história de dois amantes, dialogando também com o Stil novo e as literaturas d’oc e d’oil.  O episódio de Paolo e Francesca é um dos mais célebres da Comédia, retomado em diferentes vestes pela posteridade: Francesca da Polenta e Paolo Malatesta são cunhados que, não conseguindo opor-se às forças de Amor, se tornam amantes. Gianciotto os descobre e mata o irmão e a esposa: a Caína o espera.

Quem ouvimos conversar com Dante e Virgílio é Francesca — Paolo não fala, apenas chora —, que, a respeito da natureza invencível de Amor, diz:

 

Amor que ao cor gentil logo se prende,

Este prendeu pela bela pessoa

De mim tolhida; e o modo inda me ofende.

Amor, que a amado algum amar perdoa,

Pegou-me pelo encanto seu tão forte,

que, como vês, ainda me afeiçoa. 

Amor nos conduziu à mesma morte.

 

Amor, ch’al cor gentil ratto s’apprende,

prese costui de la bella persona

che mi fu tolta; e ‘l modo ancor m’offende.

Amor, ch’a nullo amato amar perdona,

mi prese del costui piacer sì forte,

che, come vedi, ancor non m’abbandona.

Amor condusse noi ad una morte.

O estilo elevado e o léxico stilnovista são a melhor maneira de falar sobre o amor: como ensinam os poetas do Stil novo — Guido Guinizelli, Guido Cavalcanti e Cino da Pistoia, em primeiro lugar — o amor não há de ser buscado na nobreza de sangue, mas no “cor gentil”: al cor gentil rempaira sempre amore é um dos versos mais famosos de Guinizelli. Esses tercetos que em algumas partes se parecem com os de outras traduções, se destacam pela exatidão das palavras e pela naturalidade da música: rimas stilnovistas de língua portuguesa. 

Mais adiante, o poeta florentino pergunta a Francesca em que maneira ela e Paolo se deixaram levar pelo amor; ela responde que “nenhuma dor [è] maior que recordar-se do tempo feliz na miséria”,  e segue no relato: 

 

Nós líamos um dia por prazer

como o amor Lancelote constringiu;

estávamos a sós e sem temer. 

Várias vezes o ler nos impeliu

a olhar-nos, desbotando nosso viso;

mas um só ponto foi o que nos feriu.

E quando lemos que o almejado riso 

fora beijado por tão caro amante, 

este, que não será de mim diviso, 

a boca me beijou todo ofegante.

Galeotto foi  o livro e quem compôs:

no dia, ali, não lemos mais adiante”.

 

Noi leggiavamo un giorno per diletto

di Lancialotto come amor lo strinse;

soli eravamo e sanza alcun sospetto.

Per più fïate li occhi ci sospinse

quella lettura, e scolorocci il viso;

ma solo un punto fu quel che ci vinse.

Quando leggemmo il disiato riso

esser basciato da cotanto amante,

questi, che mai da me non fia diviso,

la bocca mi basciò tutto tremante.

Galeotto fu ’l libro e chi lo scrisse:

quel giorno più non vi leggemmo avante”.

 

O texto original e também a tradução nos falam da magia e da terribilidade do Amor, de sua força violenta e ambígua, feitiço que ao libertar amarra. Se não conhecêssemos sua origem, diríamos que esses fragmentos, como muitos outros, poderiam ter sido compostos originalmente em português: há neles a naturalidade e a elaboração da poesia que brota da própria língua. A elaboração sintática constitui um dos aspectos mais importantes da linguagem poética de Dante, e perder esse artesanato na tradução significaria abrir mão de um aspecto estrutural de sua obra; as melhores soluções são sempre aquelas que não buscam o artifício para suprir a falta. 

A esse respeito, destacaria um fragmento do Canto VI (vv. 40-42), onde Ciacco, florentino destinado ao círculo dos gulosos, se dirige a Dante, dizendo: «O tu che se’ per questo ’nferno tratto»,/ mi disse, «riconoscimi, se sai:/ tu fosti, prima ch’io disfatto, fatto». Os tradutores propõem uma solução simples e elegante (“Ó tu que pelo inferno vens eleito,/ me reconhece se tu és capaz:/tu foste, antes que eu desfeito, feito.”), em que se mantêm a exatidão sintática do original — no último verso, de fato, não é possível abandonar a frase entre vírgulas, nem a sequência “desfeito, feito” — e a imediatez da fala do personagem.

 Artesanato minucioso na sintaxe se encontra também no Canto XIII, dedicado à selva dos suicidas, onde as almas dos danados são transformadas em arbustos. “Acreditei que acreditou que eu cresse” (Cred’io ch’ei credette ch’io credesse, v. 25 ) é um verso  pronunciado por Dante em relação a Virgílio, em que se preanuncia, por meio da linguagem poética, a articulação psicológica de quem habita a selva, em especial Pier della Vigna, secretário do imperador Frederico II, também jurista e poeta da tradição siciliana, acusado injustamente de traição e morto suicida. 

O estilo desse canto é trágico, como também o de Paolo e Francesca, mas as diferenças entre um e outro são substanciais: aqui não se destacam a musicalidade das palavras de amor, nem a doçura do léxico e das imagens, mas as sonoridades ásperas das rimas pedrosas, imagens de morte e devastação:  

 

Acreditei que acreditou que eu cresse

ouvir naquela galharia gemidos 

de gente que de nós lá se escondesse.

Por isso disse o mestre: “Se rompidos

por ti forem gravetos destas plantas,

teus pensamentos ficarão partidos”.

Destarte pus a mão entre umas tantas

E um raminho colhi de um abrunheiro;

Gritou seu tronco: “Por que me quebrantas?”.

Depois que o sangue seu o fez trigueiro,

Recomeçou: “Por que tu me laceras?

Fugiu-te a piedade por inteiro?

Nós fomos homens, ora sarças veras:

Bem deverias ter a mão mais pia, 

Se almas nós fôssemos de serpes feras”.

 

Cred’io ch’ei credette ch’io credesse

che tante voci uscisser, tra quei bronchi,

da gente che per noi si nascondesse.

Però disse ’l maestro: “Se tu tronchi

qualche fraschetta d’una d’este piante,

li pensier c’ hai si faran tutti monchi”.

Allor porsi la mano un poco avante

e colsi un ramicel da un gran pruno;

e ’l tronco suo gridò: “Perché mi schiante?”.

Da che fatto fu poi di sangue bruno,

ricominciò a dir: “Perché mi scerpi?

non hai tu spirto di pietade alcuno?

Uomini fummo, e or siam fatti sterpi:

ben dovrebb’esser la tua man più pia,

se state fossimo anime di serpi”.

A brutalidade da cena se expressa, antes de tudo, a partir da linguagem: isso torna extremamente difícil o trabalho de tradução, ainda mais se formos pensar nas características da língua portuguesa nesta sua variante brasileira.

O português brasileiro, por sua doçura intrínseca, se diferencia de outras línguas irmãs, por exemplo o italiano, o espanhol e o catalão, que são mais assertivas e bruscas em sua musicalidade: seu sistema fonológico não teria, então, naturalmente a mesma propensão à asperidade que o italiano. Mesmo assim, a escolha lexical dos tradutores restitui uma sonoridade agra e dura, combinando os fonemas /g/, /r/, /t/ e /s/ nas palavras “galharia”, “gravetos”, “partidos”, “destarte”, “quebrantas”, “laceras”, “sarças veras” e “serpes feras”, prenunciando a terribilidade da selva e do destino de quem a habita.

Ao falar do suicídio, Pier della Vigna admite seu pecado: buscar a morte por mão própria o tornou injusto, ele que sempre havia se comportado justamente. Mais adiante, lemos: 

 

O ânimo meu, por desdenhoso custo, 

Crendo com o morrer tolher desdenho,

Injusto fez a mim contra mim justo.

 

L’animo mio, per disdegnoso gusto,

credendo col morir fuggir disdegno,

ingiusto fece me contra me giusto.

Os adjetivos “injusto” e “justo”, que caracterizam respectivamente a ação suicida e a natureza do personagem, hão de ser mantidos nas extremidades do verso: qualquer outra solução que não respeite a posição oposta tornaria o verso menos potente, porque também na articulação da sintaxe — como foi dito no caso do verso “Acreditei que acreditou que eu cresse” —  se espelham o engenho e a psicologia intrincada do personagem. 

Outro desafio da tradução que aparece ao longo do Inferno é o de traduzir um léxico técnico em seus detalhes, conservando ao mesmo tempo a poesia. No Canto XXI, Dante e Virgílio estão chegando à quinta bolsa de Malebolge, parte do inferno reservada aos corruptos, que são imersos em piche fervente. Diante desse cenário Dante se lembra do Arsenal de Veneza e de seus barcos em reparo:

 

Como nos arsenais venezianos

ferve no inverno o pegajoso pez

a reparar os lenhos de seus danos,

pois navegar não podem — dessa vez

um faz seu lenho novo e outro estopa

os bordos do que mais viagens fez;

há quem bate na proa e quem na popa;

outro faz remo e outro tece trama; 

outro o traquete e o artimão encopa —:

assim, por divina arte e não por chama,

borbulha desde o fundo a pasta espessa, 

que espirra e pelas bordas se esparrama.

 

Quale ne l’arzanà de’ Viniziani

bolle l’inverno la tenace pece

a rimpalmare i legni lor non sani,

ché navicar non ponno — in quella vece

chi fa suo legno novo e chi ristoppa

le coste a quel che più viaggi fece;

chi ribatte da proda e chi da poppa;

altri fa remi e altri volge sarte;

chi terzeruolo e artimon rintoppa —:

tal, non per foco ma per divin’arte,

bollia là giuso una pegola spessa,

che ’nviscava la ripa d’ogne parte.

 

Nesse fragmento percebemos como tudo pode se tornar material poético: peças de um barco simples e gasto, que mostra na madeira suas muitas viagens, ou ações corriqueiras desempenhadas dentro do Arsenal. A poesia depende exclusivamente da capacidade perceptiva de quem escreve e da linguagem que escolhe usar, não existindo palavras que sejam mais ou menos aptas para esse propósito: todas têm em si o mesmo potencial — e também aquelas que ainda não inventamos. E, falando sobre a ausência de termos mais ou menos adequados na escrita da poesia, é impossível não citar o célebre verso (no mesmo canto XXI) que sugere certo riso: “e este ali mesmo fez do cu trombeta” (ed elli avea del cul fatto trombetta, v. 138), em que o poeta descreve o sinal que Barbacrespa dá ao grupo para partir. 

Lembrando-me desse diabo e de seu apelido curioso, considero agora a tradução de nomes próprios de cunho dantesco. 

Permanecemos no canto XXI, e os poetas, ao adentrar a quinta bolsa de Malebolge, veem desfilar uma galeria de personagens cômicos: Desgrenhado (Scarmiglione); Barbacrespa (Barbariccia), Aliquim (Alichino), Pisanévoa (Calcabrina), Cãozaço (Cagnazzo), Lambecoco (Libicocco), Dragonaço (Draghignazzo), Chafurdado, (Ciriatto) — caracterizado também pelo adjetivo “dentuço” (sannuto) —, Cãorrasgante (Graffiacane), Capetinha (Farfarello) e Raivozaço (Rubicante). Todos eles compõem uma patrulha de diabos — os Malagarras (Malebranche) — comandada por Malacoda. 

O texto no original propõe uma rápida associação linguística entre os diabos e suas características — os nomes constituem por si só a descrição dos personagens —; do mesmo modo, a tradução se encarrega de transportar do italiano para o português imagens e palavras que permitam ao público brasileiro visualizar a tropa demoníaca com a mesma plasticidade. O tom do canto é obviamente cômico, e é nessa diversão e nessa proximidade do público que deve operar também o texto traduzido: citar as palavras em sua versão italiana ou usar termos que não têm um apelo tão direto significaria abrir mão do frescor e do engenho que Dante oferece. 

Existem personagens, nomes, palavras e versos da Comédia que, à distância de séculos, encontram o próprio espaço dentro de outras narrativas: o amor entre Paolo e Francesca se torna pintura em várias telas; Pier della Vigna é retratado em sua veste nodosa de troncos e galhos por Doré; Ugolino é esculpido por Rodin. Considerate la vostra semenza:/ fatti non foste a viver come bruti,/ ma per seguir virtute e canoscenza (vv. 118-120) são os versos que brotam em Auschwitz, quando Primo Levi está indo buscar a sopa com outro prisioneiro: é nesse caminho que Primo aceita ensinar a língua italiana a Jean, e, para iniciar, escolhe os versos de Dante. 

Primo Levi saca das profundezas da linguagem e da memória versos que Dante usa para falar da hybris de quem se utiliza do próprio intelecto para desafiar o divino (“nem ternura de filho, nem a reta/ adoração ao pai, nem mesmo o amor/ por alegrar Penélope dileta/ puderam superar em mim o ardor/ que tive em ser conhecedor do mundo/ e dos vícios humanos e o valor”), mas que para ele representam o poder da palavra e o desejo de conhecimento: o que separa o humano do animal. 

E é com o relato de Ulisses que, por um momento, o prisioneiro de Auschwitz se esquece do Lager, restituído à humanidade por meio da poesia. 

 

Ora considerai vossa ascendência:

não fostes feitos pra viver qual brutos,

mas para perseguir virtude e ciência.

 

A escolha de “ciência” para traduzir canoscenza é precisa: antes de indicar as disciplinas exatas, remete ao latim scio, “saber”. 

Precisão e variação são características estruturais da poética de Dante, e, falando sobre isso, ressalto outro exemplo. 

Continuando sua jornada nas bolsas de Malebolge, os poetas se deparam com os semeadores de discórdia, a quem é dedicado o Canto XXVIII. Do mesmo modo que causaram cismas e guerras quando vivos, após a morte têm o corpo partido e mutilado; a primeira figura que se apresenta aos dois poetas é Maomé:

Uma pipa, sem tampa ou já rachada, 

como um eu vi, assim não se arreganha, 

Roto do queixo ao furo da bufada.

Entre as pernas pendia sua entranha;

A fressura se via e o podre saco

Que merda faz daquilo que abocanha.

Già veggia, per mezzul perdere o lulla,

com’ io vidi un, così non si pertugia,

rotto dal mento infin dove si trulla.

Tra le gambe pendevan le minugia;

la corata pareva e ‘l tristo sacco

che merda fa di quel che si trangugia.

 

A violência da linguagem de Dante se mantém na tradução, deixando-nos horrorizados e comovidos ao mesmo tempo. Um corpo arreganhado, que já perdeu seu semblante de homem, aparece partido do queixo ao ânus — “furo da bufada” é uma engenhosa solução que transmite, do mesmo modo que o verbo trullare,  o sentido de “peidar” —, com suas vísceras expostas. As rimas “arreganha”, “entranha” e “abocanha” expressam a dureza da imagem, que se torna ainda mais cruel com as palavras “fressura”, “podre saco” e “merda”.

O texto em português é impiedoso como seu original: perder as marcas dessa brutalidade significaria polir uma das imagens mais extraordinárias do Inferno. Sons ásperos, expressões incômodas e palavrões são elementos linguísticos que têm a mesma importância que outros: no último verso, optar por qualquer tradução que não seja “merda” retiraria do fragmento toda sua beleza.

A boca levantou do fero pasto

o pecador, limpando-a no cabelo

do crânio que ele havia por trás gasto.

 

Mas se minhas palavras de traidor 

Que eu roo dão infâmia com fruto, 

Fala e pranto verás num só ardor.

 

La bocca sollevò dal fiero pasto

quel peccator, forbendola a’ capelli

del capo ch’elli avea di retro guasto. 

 

Ma se le mie parole esser dien seme

che frutti infamia al traditor ch’i’ rodo,

parlare e lagrimar vedrai insieme.

 

Assim começa o Canto XXXIII, trágico e macabro, em que se narra a história do conde Ugolino. Nesse início, o leitor e a leitora assistem à violência com que o conde morde a cabeça de Ruggieri: as palavras “pasto” e “gasto”, pela vogal “a” que dá certa sensação de abertura, sugerem a ideia do devorar, contribuindo, desse modo, para a narrativa do episódio — fiero pasto se tornaria uma das expressões mais memoráveis do Inferno

Nesse canto, os versos em tradução refletem o original multifacetado: elegantes, trágicos, crus e corpóreos. Detalhes que parecem irrelevantes e pequenos na verdade podem ser determinantes para o tecido narrativo; existem palavras que em sua brevidade contam longas histórias, marcando de modo indelével o texto: esses termos precisam ser transmitidos na tradução, ajustando os outros elementos em consequência. 

Nesse mesmo episódio, lemos “o lobo e seus lobinhos”, tradução literal de il lupo e’ lupicini (v. 29), quando Ugolino conta a Dante e a Virgílio como ele, junto com os filhos e os netos, foi aprisionado na Torre da Fome. A tradução dessas palavras é imediata, em geral não se pensaria muito sobre, mas é importante entender o papel estrutural desse brevíssimo fragmento dentro da construção narrativa e da linguagem poética: essa locução não poderia ser traduzida de outro modo, a não ser no termo repetido e na alteração do diminutivo. Esse fragmento representa certamente um dos momentos de maior ternura dentro dos círculos infernais, antecipando o relato de como o conde viu morrer um a um os próprios filhos e netos, e os dias que precederam a morte:

Em breve tempo pareciam mancos 

pai e filhos, os quais o acre aguilhão 

das feras os fendiam pelos flancos.

Ao despertar no alvor e pelo chão,

ouvi chorar no sono meus menores

ali comigo, a implorar por pão. 

És bem cruel, se já não sentes dores

supondo as que em meu cor se anunciavam;

se não choras, por nada creio chores.

 

e ouvi a porta sendo cravejada 

Ao pé da horrível torre, quando olhei

Meus filhos incapaz de fazer nada.

Eu não chorava e dentro me empedrei:

Choravam eles; e meu Anselminho 

disse: ‘Que tanto olhas, pai? Não sei!’.

O dia todo e a noite em chão mesquinho 

eu não chorei, permaneci quieto, 

até que novo sol seguiu caminho.

Assim que poucos raios foram reto 

ao doloroso cárcere, e eu vi

nos quatro rostos todo meu aspeto,

ambas as mãos na dor me remordi;

e eles, pensando que isso era por fome,

se ergueram repentinamente ali

dizendo: ‘Pai, o sofrimento some

se comeres de nós: tu nos vestiste

destas míseras carnes, tu as consome’. 

In picciol corso mi parieno stanchi

lo padre e ’ figli, e con l’agute scane

mi parea lor veder fender li fianchi.

Quando fui desto innanzi la dimane,

pianger senti’ fra ’l sonno i miei figliuoli

ch’eran con meco, e dimandar del pane.

Ben se’ crudel, se tu già non ti duoli

pensando ciò che ’l mio cor s’annunziava;

e se non piangi, di che pianger suoli? 

 

e io senti’ chiavar l’uscio di sotto

a l’orribile torre; ond’io guardai

nel viso a’ mie’ figliuoi sanza far motto.

Io non piangea, sì dentro impetrai:

piangevan elli; e Anselmuccio mio

disse: “Tu guardi sì, padre! che hai?”.

Perciò non lagrimai né rispuos’io

tutto quel giorno né la notte appresso,

infin che l’altro sol nel mondo uscìo.

Come un poco di raggio si fu messo

nel doloroso carcere, e io scorsi

per quattro visi il mio aspetto stesso,

ambo le man per lo dolor mi morsi;

ed ei, pensando ch’io ’l fessi per voglia

di manicar, di sùbito levorsi

e disser: “Padre, assai ci fia men doglia

se tu mangi di noi: tu ne vestisti

queste misere carni, e tu le spoglia”.

 

Como já foi dito acima, essa tradução para o português é também um original. O canto inteiro mostra maestria de linguagem e cuidado em perceber os diversos matizes que compõem o texto. Nos últimos versos, vemos como o testemunho de um destino cruel e trágico se mescla às palavras amorosas de um pai que, impotente, assiste à morte de suas crias, prontas a se sacrificar por ele.

E, voltando ao início, o amor pela própria loquela é o sentimento de quem escreve, mas também de quem traduz, e é um verdadeiro presente esse volume que França de Brito, Santana Dias e Falleiros Heise entregaram ao Brasil, exatamente setecentos anos após a morte do grande poeta: a vida do Inferno se renova na língua portuguesa.


Valentina Cantori é pesquisadora e tradutora. Em 2020 a editora Ayiné publicou a sua tradução do livro Ancestral, de Goliarda Sapienza.

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