Ensaio | Música


foto de alex oliveira (detalhe)

O Brasil é um barril de pólvora ao lado de uma fogueira. Há disputa política e ideológica – o ovo da serpente que foi chocado oficialmente em 2018 –, milhões de pessoas na miséria e uma classe cultural que se debate. Na música não é diferente, ainda que nesse campo as batalhas reproduzam problemas que se arrastam pelo menos desde o começo do século XX. 

No final do mês de abril, ainda no calor do fim do programa Big Brother Brasil 22, que, assim como na edição passada, teve como participantes uma cantora independente e outra sertaneja, a baiana Luedji Luna, artista independente, postou em seu Twitter: “Mano, me perguntando como a gente saiu da tropicália, pra essa cafonice sem fim que virou o Brasil.”

Como era de se esperar, por não deixar claro o contexto ao qual exatamente se referia, o tuíte gerou uma série de reações. As respostas vinham tanto de pessoas que concordavam quanto de quem estranhava que uma artista como Luedji Luna, que luta pela diversidade e pela valorização dos artistas negros, estivesse expressando ali um tipo de preconceito. Ela tratou de se explicar: referia-se ao fato de o sertanejo (com seus artistas quase sempre brancos) ocupar os principais espaços de divulgação da música e da grande mídia. E pondera em um de seus comentários: “É preciso saber debater, e é preciso abrir o debate, antigo inclusive, sobre o mercado. Pq eu não entendi pq uma cantora de sertanejo canta sozinha num reality, e a uma outra cantora trans tenha de dividir o palco.” 

Na ocasião da final do programa televisivo, a cantora e ex-participante Naiara Azevedo se apresentou solo, enquanto que a também ex participante Lina Pereira (Linn da Quebrada) dividiu o palco com Romero Ferro. No decorrer do programa o mesmo havia acontecido com a cantora Liniker, convidada para participar do show de Luísa Sonza. Luedji Luna tem razão quando diz que o debate sobre como o mercado se estrutura é antigo. Mas o debate também é tão antigo quanto complexo quando as produções são referidas nos termos da “cafonice”. Tendo origem no termo italiano cafone, utilizado para designar o indivíduo que é grosseiro, caipira, a ideia sobre o que é cafona ou brega é usada, na maioria das vezes, em um sentido relacional e de diferenciação. É o oposto do elegante, refinado, rebuscado, discreto, erudito, original e até civilizado, às vezes. 

Nas décadas de 1960/70, com a explosão da MPB e seus festivais televisivos, com especialistas no júri e uma elite intelectualizada na plateia, em plena ditadura militar, a relação entre o que se considerava a música ou a cultura popular autêntica e o popular rasteiro ganhou novos contornos. A música engajada das elites, releitura do samba, da bossa nova e de ritmos regionais, foi consagrada: Chico Buarque, Edu Lobo, Elis Regina, Nana Caymmi, Clube da Esquina, dentre muitos outros. Enquanto que a música de caráter romântico, periférica ou rural, foi taxada de brega: Milionário e José Rico, Odair José, Waldick Soriano, Dom & Ravel, para citar alguns. Já o tropicalismo musical, que nasce com membros que já gozavam, à época (1968), de prestígio no meio, propõe uma outra estética. Em forma mesmo de movimento, trazia em seu âmago os pressupostos da antropofagia e do “Produssumo”. Ou seja, incorporar referências de todos os tipos em suas produções musicais, mas tornando o resultado um produto próprio da indústria cultural, vendável. Assim, buscaram unir o cafona das décadas anteriores (Vicente Celestino), a cultura popular (o hino ao Senhor do Bonfim, a banda de pífanos de Caruaru), a industrialização do país e da cultura (“Parque Industrial”), o debate com o contexto político (“É proibido proibir”), o rock inglês e as guitarras elétricas.

Apesar de sua existência relativamente curta, cessada pelo exílio político de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a Tropicália é um dos movimentos culturais brasileiros que mais reverberam ao longo das décadas. Tem seus aniversários comemorados, ganhou um segundo disco em 1993, é amplamente abordado pela crítica musical, é matéria de documentários e pesquisas acadêmicas, bem como é amplamente citado como referência pelas gerações de músicos que se sucedem. O crítico americano Christopher Dunn utiliza o termo “revivescência” para falar de tal fenômeno. Então, como que da Tropicália caímos, segundo Luedji, nessa “cafonice sem fim”? 

O debate entre MPB x música brega não é exclusividade da década de 1970. Inclusive porque muitos anos se passaram até que dados que mostram os números das vendas de discos de música brega viessem à tona ao grande público através de estudos como os que realizaram Eduardo Vicente e Paulo César Araújo, revelando que foram esses artistas que, de fato, sustentaram a indústria fonográfica no período. Já no fim da década seguinte, a música sertaneja, uma variação modernizada da música caipira, aliada ao romantismo exacerbado do brega, incorporou referências do country americano, a estrutura de espetáculo do showbizz e deu sobrevida à crise pela qual as gravadoras passavam, ganhando investimento para tocar nas rádios à exaustão e para suas produções. Resultado: deixou de ser uma música nichada para ganhar o mercado nacional. Mas não foi só isso. Vindos do interior para o centro socioeconômico do país (SP-RJ), os sertanejos passaram a expressar também preferências políticas e ideológicas: apareceram diversas vezes ao lado de Fernando Collor, inclusive quando o presidente estava afundado em denúncias de corrupção e na falta de popularidade, dando mostras de um conservadorismo um tanto às cegas. 

Em sua análise no Twitter, Luedji continua: “Só [com um] mínimo de sensibilidade, e de análise de contexto, pra entender de qual Brasil cafona eu tava me referindo. A tropicália não é citada num lugar de saudosismo, mas sim como um referencial de movimento estético e político fundamentada em ideais de liberdades, no plural msm. Hj descobri a tropicália é cafona, foi cafona, e paz. Mas pra época não. Esse mesmo Brasil da tropicália, continua criativo, chique, rico, ainda mais plural HOJE, porém minha gente é a cafonice que impera”. 

Essa nova réplica da cantora à polêmica iniciada por ela em seu perfil responde aos seguidores que apontaram que dentro do caldeirão antropofágico tropicalista não havia distinção de valores quanto ao que era produzido no âmbito da cultura popular, tanto em termos de referências musicais quanto ao visual. Afinal, Rita Lee subiu vestida de noiva no palco do 3º Festival Internacional da Canção, o mesmo em que Caetano Veloso usava uma roupa verde de plástico e colares ao tentar cantar “É proibido proibir”. Sabemos quem considerava tais gestos cafonas ou vanguardistas, já chique é outro papo. 

Vai ficando claro ao longo das postagens do Twitter como a ideia de cafonice acaba tomando o sentido de definir o “outro”, se referindo ao sertanejo de hoje dominado por cantores em sua maioria homens (mas não só), de origem não humilde (como os de antes – daí, aliás, vem a denominação do “sertanejo universitário”), ligados a grandes empreendimentos do agronegócio, cristãos quase sempre conservadores, defensores da moral e bons costumes (ainda que cantem sobre traições e boemia, mas abertamente são contra pautas progressistas como a legalização do aborto e contra a reforma agrária) e, principalmente, apoiadores da extrema direita. Se essa postura já foi considerada cafona hoje ela marca cumplicidade com um governo criminoso. E é o que acontece com tais artistas, além disso, são eles os principais beneficiados com políticas de desmatamento, de liberação de agrotóxicos e com uma economia que se baseia na exportação de commodities – sem contar os contratos milionários que fazem com prefeituras Brasil afora, é claro. 

A disputa que hoje se reproduz dentro da música através de seus diferentes estilos, como no começo dos anos 90, apresenta inúmeras simetrias: a relação entre cultura e política, a qualificação estética da música tendo como parâmetros o lugar que ocupa nas mídias tradicionais e um determinado referencial de bom gosto. Essa disputa sobre o gosto, como apontava Pierre Bourdieu, é moral e demarca a posição que indivíduo e seu grupo ocupam dentro da sociedade, acumulando poder – cultural e simbólico, sobretudo. 

Outra questão que se soma é a perpetuação de práticas excludentes, como a composição das programações de rádio no Brasil. Apesar do sucesso dos streamings, o meio radiofônico ainda conta com enorme audiência. E o que mais se escuta? Sertanejo. A antiga prática do jabá continua sendo exercida com afinco no meio e só pode ser exercida por quem tem dinheiro. Nesse sentido, muitos sertanejos criaram verdadeiros impérios: são muito executados, lotam shows, conseguem tornar seu processo produtivo independente e tem condições materiais para realização de turnês que vão desde uma enorme equipe até aviões próprios. É uma concorrência desleal com outros nichos musicais.

O ponto é notado por Luedji em dois momentos do debate. Ao responder uma seguidora que disse “não fala isso pq a gente saiu da tropicália e caiu em você”, a artista formula a seguinte ideia: “Eu disputo a música brasileira, o mercado me engole por causa de vcs. Mas as escolhas já estão feitas! N sei como tem de desenhar isso.”. Sendo mulher, baiana e negra, sua indignação recai sobretudo no racismo que estrutura todos os âmbitos da sociedade brasileira. Se ela tem público, o mercado a incorpora, mas dentro dos limites do que não fere a “ordem branca”. 

Em outro momento, ela chega mais próximo à lógica da circulação da música quando diz “Eu não entendo pq a TV e rádio sempre tocam as msm músicas, se somos vários Brasis.(chique, elegante, e cafona inclusive ) Na verdade eu entendo, todos nós entendemos, vcs tb, só estão fingindo que não.”. Novamente aqui o que fica subentendido é que a cantora se refere mais ao racismo do que à lógica comercial – que, claro, é racista e machista -, nos termos de suas práticas. Ainda que, em números, nenhum outro gênero musical se iguale ao sertanejo nos dias de hoje, em geral cada estilo foca em uma determinada plataforma para divulgação, de acordo com uma estratégia que visa alcançar seu público mais próximo. Como acontece com o funk e o YouTube. 

No entanto, é preciso pensar que, se a música independente quer disputar espaço dentro das mídias hegemônicas, não seria o caso de pautar a disputa sem ser pela moralidade – o que vem falhando miseravelmente desde que nos entendemos por gente? Como se o debate fincasse seus argumentos em dualidades como: vocês são cafonas, nós somos chiques; nós temos referências, vocês são mais do mesmo. Há uma linha muito tênue que garante que o sertanejo ficará do lado de lá e a música popular independente de cá. Afinal, qual não foi o encantamento e arrebatamento causado pelas composições, pela voz e pelo espaço aberto por Marília Mendonça, sertaneja e uma das artistas mais tocadas no streaming, no YouTube e nas rádios? Seria meramente uma exceção? Ela também não canta aquele universo do interior do país?

Ainda no desenrolar das reações provocadas pelo tuíte de Luedj Luna, uma seguidora provoca: “Cafonice não é eufemismo para o que a gente não gosta?”. A lógica dessa resposta é a mesma da que foi apontada no início desse texto quanto à definição da ideia de “cafona”. À luz de tantas questões, é preciso pensar que por mais que a busca pela pluralidade e igualdade no mercado seja urgente, este sempre vai refletir, de certa forma, um estado de arranjo da sociedade – e não o contrário.


Pérola Mathias é editora da Barril. Doutora em Sociologia, pesquisa a música brasileira contemporânea e trabalha como jornalista musical independente. Em 2015, criou o blog Poro Aberto e hoje escreve coluna mensal na revista A Palavra Solta e publica semanalmente nas @resenhasmiudas, uma revista de crítica no Instagram. É roteirista e apresentadora do podcast Dois Mil e Depois, um projeto da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

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