Crítica | Literatura


Não existe o país

junho de 2021

Edição: 22


 

Acabou de sair “O conto não existe”, coletânea de entrevistas e ensaios de Sérgio Sant’Anna organizada por Gustavo Pacheco e André Nigri e caprichosamente editada pela CEPE editora. É uma leitura de grande interesse e prazer não só para os quatro mil leitores que o contista carioca afirmava ter no país ao final de cinco décadas de carreira e numerosos prêmios literários, como também para qualquer interessado em cultura brasileira. Seria uma boa oportunidade para este resenhista pinçar dois ou três trechos só agora republicados que serviriam para defender uma antiga tese sua a respeito da literatura brasileira, uma forma rápida e quiçá eficaz de reivindicar importância a si próprio, se esse tipo de coisa ainda lhe fizesse sentido em meio à prolongada tentativa de sobreviver física e psicologicamente à pandemia/genocídio que custou ainda mais ao escritor protagonista do livro em questão.

O resenhista até poderia ser perdoado pelo egocentrismo, se o (discretíssimo, ressalve-se) autoelogio viesse cercado de elogios ainda maiores ao contista (que em sua estima realmente está abaixo apenas de Machado de Assis) e fosse seguido de uma descrição detida do conteúdo da coletânea: mais ou menos uma entrevista pra cada lançamento significativo da carreira do escritor, com seus diagnósticos da realidade cultural brasileira dos anos 60, 70, 80 e 90, um belo perfil biográfico de 2015, mais análises de autores como Raymond Carver, Franz Kafka, Otto Lara Resende, entre outros, destacando-se pela precisão e brevidade, dando a impressão que os organizadores pegaram apenas os melhores textos de toda a trajetória do escritor. Daí é só citar alguns exemplos e o texto praticamente se escreve sozinho, uma qualidade quase necessária pra qualquer projeto nesses tempos de exaustão física e moral em que o país segue seu caminho incólume para a marca de meio milhão de mortos.

Poderíamos até nos permitir uma pequena ousadia e colocar a coletânea como pioneira involuntária de um gênero todo novo de nossa literatura, a do saudosismo de nossas desgraças antigas, como quem olha fotos de uma infância infeliz que mesmo assim brilha se comparada a tudo que veio depois: “lembra como a gente achava que estava muito lascado na mão do Sarney?”

Entretanto, um texto chamou a atenção do resenhista maldito e pareceu merecer certo destaque: uma espécie de interrogatório disfarçado de entrevista sobre uma das obras mais famosas do contista, O concerto de Joao Gilberto no Rio de Janeiro. Parece que o livro tinha sido negativamente avaliado, e alguém teve a curiosa ideia de convidar o autor para se defender das “acusações”. 

O resultado, claro, para além da premissa divertidíssima, é de grande valia, tanto no sentido de exemplificar a autoridade verbal que é possível arregimentar para si na produção de um erro de julgamento (o livro de contos é até hoje lido e cultuado, 40 anos depois de seu lançamento, enquanto o crítico, autor de um romance elogiado nos anos 70, não teve a mesma sorte), quanto na desenvoltura do contista, seguro de si, para lidar com as questões levantadas, pertinentes mesmo quando equivocadas. Num espaço pequeno, discute-se muito conteúdo, e de forma contundente.

O crítico, por exemplo, pergunta qual seria a renovação da linguagem supostamente presente quando se lança mão de tantos adjetivos clichê, sem pensar na possibilidade do contista na verdade trabalhar arquétipos do imaginário em grande parte mobiliado pelas mídias, publicidades e narrativas políticas comuns – é como acusar o Andy Warhol de ser clichê com suas Marilyn Monroes.

Este resenhista ficou muito impressionado com o formato e se confessa surpreso que ainda não tenha sido recuperado nos tempos atuais, tão ávidos por atenção e agressividade. O duelo de egos comum em tantas interações do meio intelectual e artístico ali ganha algo de ágil, ou mesmo de objetividade, e a primeira reação de antipatia extremada pelo jornalista diminui com a tranquilidade da recepção de Sant’Anna e o reconhecimento de que aspectos importantes do livro de fato foram apontados, ainda que de início mal interpretados.

O resenhista propõe aqui, finalmente, uma retomada do formato, no intuito de dar uma animada no nosso meio literário ultimamente meio macambúzio (talvez pelo fascismo galopante e aparentemente indestrutível, ou pela devastação enfim irreversível do bioma, ou pela insistente inexistência de um Prêmio Nobel brasileiro para redimir nossa intelligentsia como um todo). Evidente que essa retomada não seria automática, requerendo algumas adaptações trabalhosas: primeiro, na parte da figura autoral a ser questionada, dada a trágica indisponibilidade do contista, precisando ser alguém com bastante autoconfiança e que não encare como ataque a menor crítica (mesmo a crítica construída como um ataque). Talvez melhor escolher quem jamais tenha posto os pés nas redes sociais, ou melhor ainda, na internet como o todo. 

Deve-se encontrar algum crítico que não queira aparecer mais que a obra a ser criticada (excluso, portanto, o presente resenhista), um que talvez assine com pseudônimo, sem que isso seja passível de ser tachado de covardia. Algum estrangeiro, ou candidato a santo. E talvez seja necessário também criar outro contexto cultural e político, algum em que exercícios intelectuais como produzir literatura ou crítica literária figurem como mais do que ócio criativo ou terapia ocupacional, nalgum outro Brasil que não este de agora em que a esperança apareça como possibilidade também para quem não está desinformado.

É particularmente triste no atual contexto a frequência com que a questão do nacionalismo aparece entre as considerações do contista, para o desentendimento dos críticos que talvez exigem personagens envoltos em lábaros estrelados para entender uma obra como verdadeiramente nacional. Por muito tempo exigiu-se dos escritores uma produção com uma qualidade alta o bastante que pudesse de alguma forma (por meio de descrições precisas, entendimento sutil) ajudar a definir os rumos da construção de um país minimamente justo; hoje, sufocados pela falta de ar e futuro, cabe perguntar se algum dia realmente era razoável esperar que nessa terra se arrumasse qualquer coisa que possa fazer jus à grandeza de obras como a de Sérgio Sant’Anna.


Breno Kümmel é escritor, autor do romance “Uma noção ainda vaga de todo o dano”, a ser lançado esse ano.

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