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“Se eu demorar pra responder é porque estou aqui fazendo a comida”. Eugênio Avelino prepara um feijão com torresmo, arroz e brócolis enquanto, concomitantemente às tarefas no fogão, passa em revista sua longa carreira numa demorada chamada em viva voz.

Aos 73 anos, recentemente vacinado com uma dose de coronavac, aquele que adotou artisticamente a alcunha de Xangai sabe muito bem temperar suas memórias, falhas e acertos, embora também não deixe em fogo baixo escólios referentes à pandemia e, sobretudo, à política nacional brasileira.

O ano de 2021 traz redondas marcas em sua trajetória musical. São 45 anos do primeiro LP (Acontecivento, CBS); 40 do segundo (Qué Que Tu Tem Canário, Kuarup) e 30 de uma de suas obras mais festejadas, o “Bahia de Todos os Cantos” também chamado “dos Labutos” gravado entre abril e julho de 1991, no Estúdio Livre, no bairro da Liberdade, em Salvador.

Na contracapa desse álbum, num texto de 13 linhas, o menestrel Elomar Figueira Mello define Xangai com uma precisão cortante de um punhal. “(…) um cantador, um artista, um dos poucos gatos-pingados e tresloucados sonhadores-de-mãos-sangrentas-contrapontas-afiadas-inimigas. Remanescente que teima em guardar a moribunda alma desta terra”.

A radiografia tão erudita quanto exata descende de uma longeva amizade nascida na relação hierárquica entre mestre e pupilo. Xangai tinha 9 anos e já trazia o gosto pela música, herdada do avô sanfoneiro, quando conheceu Elomar, uma década mais velho, em Vitória da Conquista. Ainda no fino assobio de suas primeiras composições, o garoto seria profundamente tocado pela potência melódica do então jovem trovador.

“A música de Elomar é sertânica, sacra. Ele fala com Deus em cada verso que compõe. É um dos meus mestres diretos, assim como Beethoven, Cartola e Gilberto Gil”, pontua.

A amizade entre os dois ramifica afetos na árvore genealógica. Nas 11 faixas do LP “Bahia de Todos os Cantos” (seis do Lado A e cinco do lado B), em quatro delas, o exímio João Omar, filho de Elomar, faz a base do violão. Em outras, o arranjo fica ao encargo do celebrado violonista Cao Alves.  O maestro Fred Dantas e Oswaldinho, no acordeon, engordam a lista dos parceiros de valioso quilate nesse singular trabalho.

O disco traz letras com forte teor ambientalista, como nas belas “Pela luz dos dias” e “Não ‘rio” mais”, e passeia também por músicas românticas, nas faixas “Chegando” e “Ana Raio”. Tem espaço ainda para a abertamente otimista “Tudo aquilo que flutua feito vaca, com cabeça, rabo e refrão” e uma ode gaiata a Salvador, em “Bahia de Calça Curta”.  

Já a bem-humorada “O quintal de Consuelo” se equilibra com o acalanto de “Imbuzeiro dos duendes”, dona de um dos versos mais bonitos de todo o trabalho: “Estrada branca, das areias finas (…) Justa causa eu tenho, pra me encantar com a vida”.

“Foi um disco que fizemos com muita qualidade musical. Desde a concepção, a ideia era falar dos vários cantos que a Bahia tem. Mas queria focar, sobretudo, no canto dos trabalhadores, das pessoas anônimas que cantam durante sua labuta. Pois, veja, o trabalhador canta. O vaqueiro, o marceneiro, a lavadeira também. O trabalhador alivia um pouco a dureza do trabalho cantando. Daí o porquê desses dois nomes do disco”, diz Xangai.

A mesma proposta de abrir ouvidos para uma Bahia multiétnica e plural, compreendida no virtuosismo dos seus 27 territórios de identidade – ainda que constantemente reduzida, no senso comum, numa falsa dicotomia entre Recôncavo x Sertão – fez o cantador elaborar, em 2017, o projeto Cantingueiros.   

Em parceria com a empresa Natura, ele organizou uma websérie em quatro episódios, derivando no disco homônimo. Lá, dá voz a quatro compositores conterrâneos de diferentes nuances: a força ancestral do candomblé de Mateus Aleluia, o repente e samba sertanejo de Bule-Bule, a crônica bem-humorada de Gordurinha (1922-1969) e a música de um sertão mágico-medieval de Elomar.

“Dá pra estabelecer, sim, esse paralelo entre o ‘Bahia de Todos os Cantos’ e o ‘Cantingueiros’. Diversificar sons e entender as nossas muitas matrizes musicais sempre esteve presente na minha forma de compreender a música. Eu adoro a diversificação. Em cada episódio da websérie, eu busquei estas visitações conscientes do que cada artista faz”, diz.

O projeto Cantingueiros foi gravado no sítio Ponta da Torta, em São Gonçalo, no interior da Bahia. Cada episódio passeia por temas caros a cada um dos compositores como o fervor de Elomar por Jeová (Deus, do Velho Testamento); ou a devoção, por Aleluia, nos Orixás.

O violonista João Omar enxerga uma inquietude constante na obra e na alma do amigo. “Xangai não consegue se repetir. É um artista que tem a ânsia pela percepção da riqueza cultural. Sua alma agregadora, de buscar influências, está refletida na sua produção e naquilo que ele está constantemente buscando. Seu jeito de tocar busca a oscilação, o diferente, a não linearidade”, analisa.

A partir dessa quebra sequencial, ele define o toque de Xangai no violão como “pinicado”; enquanto Elomar, seu genitor, delicia-se num chiste gastronômico para conceituar tal dedilhada como “cortado miúdo acebolado”.

“A quebra da linearidade nesse toque pinicado de Xangai é o espaço onde encaixa suas tantas referências. Ele é um latino-sertanez, em um universo construído da música ibérica, flamenca, com leves toques do samba. É um ritmista. Mas, acima de tudo, é um autêntico, naquilo que faz e no que acredita”, pontua Omar.

A caça pela diversidade musical, indelével em Xangai, faz as palavras de Elomar ganharem carimbo definitivo. De fato, um felino, um dos últimos de sua espécie, desvairado pelo som ancestral destas plagas.  

 

Sorveteria e filhos

Enquanto ainda fareja novas sonâncias, o cantador desassossegado puxa pela memória as imprecisões do seu LP de estreia, gravado em 1976, no Rio de Janeiro. No ‘Acontecivento’, com capa estampando uma fotografia do bando cangaceiro de Corisco e Dadá, seu nome artístico aparece numa versão com muito mais consoantes que vogais: “Schangay”.

A referência era o nome da sorveteria em Nanuque, nordeste de Minas Gerais, aberta pelo pai, com direito a batismo numa grafia própria. “No primeiro disco eu ainda era imaturo. Tenho orgulho do material, mas acho que poderia ter ficado mais minha cara. Nos próximos, consegui produzir do meu jeito. Passei a assinar também como Xangai, do jeito que se escreve a cidade chinesa”, derrete-se.

É dessa época, no Rio, que nasce sua primeira filha, Weena Marula. Depois viriam mais cinco, de outras três relações diferentes – uma das quais, a também cantora Mariá Pinkusfeld, casada com José Gil, filha de Gilberto Gil.

Diante da elástica faixa etária da prole, entre 44 e 20 anos, Xangai incorpora o perfil coruja. “Lembro das histórias mágicas que ele contava quando era criança. Tinha uma de uma cobra gigante que perguntava sobre seu filho, o buguelo. Outra era do galo que roubava o milho, que acabou dando origem à música “O Quintal de Consuelo”, recorda João Jany, 22 anos, filho do terceiro casamento.

Jany, que herdou o nome do pai de Xangai (o dono da sorveteria), fala também das posições anti-imperialistas do cantador, embora com notáveis contradições. “Ele sempre foi um localista, de valorizar as coisas da terra, sobretudo do sertão. Era contra que a gente comesse McDonald’s, por exemplo, ou ouvisse rock, principalmente metal. Mas ele mesmo gostava muito dos Beatles, da música Come Together, e do Queen”.  

“Outro ponto curioso da nossa relação é que eu sou vegano e ele sempre valorizou a comida do sertão, que tem como uma das bases carne de caça. Na música ABC do Preguiçoso, ele brinca com caçar uma paca gorda. E eu sou contra tudo isso. Mas aprendemos a nos respeitar mesmo sendo diferentes”, diz Jany.

O também cantador Maviael Melo, nascido em Pernambuco, mas radicado no norte da Bahia, acrescenta que, acima de tudo, Xangai é um “contador de histórias da porra”.

“Ele gosta de ouvir as histórias dos lugares onde vai, onde está. E tem uma memória ótima pra lembrar aquilo que lhe contam nos mínimos detalhes”, reforça.

Diante de tantas particularidades, João Omar diz ter certeza que Xangai, ao fim e ao cabo, é um personagem do mundo mítico de Elomar, que ganhou vida e passou a gravitar em torno do próprio criador.

“Ele preenche a capacidade de vários personagens criados por meu pai, além de ter uma interação muito própria com ele. Ele saiu daquele universo de Elomar para vir se chocar com a musicalidade e o texto do meu pai. Os dois dominam o mundo do sertão e quando conversam falam palavras que, para um ouvinte desavisado, parece outro idioma. São dois malungos”, brinca, citando um termo próprio do sertão-mundo, referente a “amigos”.

 

União do Vegetal e otimismo

As reminiscências dos tempos construídos se chocam com as incertezas atuais. Desde um show em Brasília, em março do ano passado, Xangai está sem se apresentar ao público. A ausência gera desconforto na alma do artista, ao passo que traz pendências para o bolso do pai de família.

“Nem sei como estou pagando minhas contas. Juro que nem sei. Ajudo meus filhos que moram longe, tem a casa aqui em Conquista… É tudo muito difícil neste momento. A gente busca edital, ajuda dos amigos, mas a realidade é que é tudo muito difícil mesmo”, reforça, antes de abrir fogo contra o atual presidente e a condução da pandemia no Brasil.

“Como é que um desorientado vai orientar os brasileiros? O povo tá sofrendo e a gente tem alguém que não parece fazer a mínima questão de tirar o país desta condição. Muito pelo contrário. Desde quando Collor se elegeu, eu repito a mesma premissa. Enquanto brasileiro, eu reclamo. Mas, enquanto eleitor, não. Porque eu sabia tudo que viria a partir dessa opção. Como se diz aqui na Bahia, esse governo é taca”, afirma, numa livre expressão fálica.

Há 32 anos frequentador do centro espírita União do Vegetal (UDV), guiada pelos ensinamentos do baiano Mestre Gabriel (1922-1971) e com os rituais ligados ao consumo do chá Hoasca, Xangai diz acreditar numa mudança de rumo tanto na crise sanitária quanto na política.

“A gente tem que acreditar sempre. E lutar também. A vida é feita desses desafios, por mais difícil que sejam os tempos”.

O almoço vai esfriar. O cantador, escritor e personagem, poeta e poema em si mesmo, precisa desligar seu universo mágico, permeado por tantas crenças, cobras gigantes, galos larápios’, ritos xamânicos, meio-ambiente, sertão e muitas vozes, portal de acesso para a alma moribunda desta terra.

O caminho de volta se faz pela estrada branca, das areias finas. 


André Uzêda é jornalista e pesquisador.

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