Ensaio | Música


__________________________________Aquarela de Moisés Crivelaro

A EXPERIÊNCIA MUSICAL COMO EXPERIÊNCIA VISUAL

 

Qualquer um que se proponha a escrever sobre a experiência musical irá se deparar com este obstáculo: é difícil pôr em palavras os efeitos corporais que ela produz. No clássico ensaio “O grão da voz”, Roland Barthes reclamou do excesso de metáforas nos discursos sobre música. Penso o oposto: são as metáforas que possibilitam uma ponte entre a linguagem e o corpo, e sem essa ponte não seria possível falar sobre música. Fala-se do desenho ou do contorno melódico; das curvas e saltos da melodia; das cores da harmonia; do tom sombrio ou claro de certos acordes; dos arabescos de Bach e das espirais de Wagner. Ao falar sobre música, metáforas nunca serão excessivas: serão apenas mais ou menos eficazes, mais ou menos sugestivas, mais ou menos inventivas.

Talvez Proust seja o melhor exemplo disso. As descrições dos efeitos da música sobre o personagem Swann, de Em busca do tempo perdido, estão certamente entre as melhores páginas já escritas sobre a experiência musical. Proust sabia da tarefa que tinha em mãos. À diferença da pintura, o objeto musical é invisível (sine materia, ele escreve) – como então descrevê-lo? O que se lê são páginas e páginas de metáforas brilhantes, onde uma boa parte da experiência musical é revelada como experiência visual – “E depois fora um grande prazer quando, por baixo da linha do violino, tênue, resistente, densa e dominante, vira de súbito tentar erguer-se num líquido marulho a massa da parte do piano, multiforme, indivisa, plana e entrechocada como a malva agitação das ondas que o luar encanta e bemoliza”.

 

QUANDO A MÚSICA QUIS SER PINTURA

 

Quando definiram como “impressionista” a música de Claude Debussy, em referência direta à pintura do grupo de Monet, pôde-se vislumbrar um pouco do diálogo subterrâneo entre pintura e música. Pouco importa se Debussy tinha em mente os acordes cromáticos de pintores como Monet, quando operou sua revolução sutil no sistema tonal. Seus acordes flutuantes, que criavam momentos de suspensão no auge do movimento tonal, pareciam bem mais com paisagens a serem contempladas do que com historietas a serem narradas. Era o oposto de seu antecessor e rival Richard Wagner.[1] O mesmo estava acontecendo com a pintura. A narrativa, elemento central para os pintores acadêmicos, perdia importância frente ao impacto imediato das manchas de cor distribuídas na superfície do quadro. Cada vez mais o homem moderno passava a ser definido não pela sua história, mas pelas sensações que experimentava, conforme observou o historiador da arte Giulio Carlo Argan.

O que acontecia muitas vezes em Debussy era que a melodia desaparecia no meio da harmonia – ou pelo menos deixava de ser o eixo principal de sentido. Música sem tema, diriam os críticos que a compararam à pintura. Com seu passado, presente e futuro, sua linha de encadeamento temporal, a melodia era propriamente o elemento que se desenvolvia e que era capaz de criar narrativas. Ela se mantém firme na grande escola romântica, cada vez mais individualizada – como em Mozart, Beethoven e Chopin – é o princípio dinâmico que faz a música andar. Mas, em Debussy, ela por vezes parece não ir a lugar algum – como no emblemático caso do Prélude à l’après-midi d’un faune, ou simplesmente desaparece. Sobra uma paisagem sem sombra de presença humana, sem traço de heroísmo, sem história – como aquelas paisagens antediluvianas que ocupam o plano de fundo de algumas pinturas de Leonardo.

 

QUANDO A PINTURA QUIS SER MÚSICA

 

Nos anos 1910, Kandinsky realizou as primeiras pinturas abstratas se apoiando sobre o princípio da música instrumental. A pintura deveria ser capaz de suscitar afetos sem precisar descrever qualquer coisa do mundo exterior, sem precisar dizer sobre o que fala, tal como a música instrumental prescinde de palavras. Tudo está colocado na superfície da tela, na harmonia de formas e cores. O pintor não é mais um ilusionista; está mais para um compositor – um músico de cores e formas.

Na verdade, Kandinsky dava continuidade a uma aspiração que desde o século XIX marcou a pintura (e outras artes): a aspiração de se tornar música. Pela aparente pureza de seus meios, que não precisam de referenciais externos, a expressão musical se tornou uma espécie de modelo ideal para os artistas do XIX. A formulação filosófica de Schopenhauer coroou intelectualmente esse lugar de honra que a música ocupou como modelo de todas as artes – a única capaz de nos levar ao coração da Vontade, ao absoluto, à essência metafísica do mundo. Através dela seríamos arrancados do mundo físico, marcado pela falta e pela dor, e nos tornamos contempladores do espetáculo da Vontade. A experiência estética ofereceria um breve momento de consolo da roda viva do mundo. Nos tornaríamos puros olhos e ouvidos – contempladores.

 

UM JOGO

 

Música é em grande medida transporte. Basta ouvir um trecho de uma escala oriental, ou certo timbre de algum instrumento, ou os primeiros acordes de um violão, e nossas mentes são inundadas de sugestões imagéticas, lugares físicos, ordenações espaciais, sensações corporais de excitação ou sossego. Lembranças de situações e lugares. Toda música esconde uma paisagem.

Mais interessante, contudo, pode ser imaginar a correspondência possível entre uma peça musical e um quadro – ou a poética de um pintor ou um estilo artístico. Se esta música fosse uma pintura, qual seria? E se este quadro fosse uma peça musical, qual seria? Quando fazemos tal exercício, sentimos as possíveis ressonâncias entre as duas.

Quando li uma aproximação entre a música de György Ligeti e a pintura de Mark Rothko, tudo fez sentido.[2] Na base de ambas encontramos a sensação de alguma coisa que está ao mesmo tempo parada e em expansão infinita; o ambiente imersivo que elas propõem não tem começo nem fim. A poética dos dois artistas é construída sobre uma espécie de atravessamento dos sentidos. No primeiro, o tempo, de tão dilatado, é sentido como espaço; no segundo, o espaço, de tão expansivo, é sentido como tempo. Você ouve as Atmosferas de Ligeti nas massas de cores pulsantes de Rothko, com seus contornos borrados, e vê o vazio pleno das manchas de Rothko quando escuta Ligeti. Ou seja, alguma qualidade ligetiana passa a habitar as pinturas de Rothko, ao mesmo tempo em que algo de rothkiano irá se entranhar nas peças de Ligeti. A experiência das duas poéticas sai enriquecida.

 

O GESTO

 

Pintura e música são filhas do gesto. Quando Platão exalta o modo dórico como guerreiro, está transmitindo a crença dos gregos de que tal combinação de sons inspiram gestos de coragem – impávidos, impulsivos e seguros. Boa parte do movimento da pintura moderna foi na direção de tornar o gesto do pintor – que ficou escondido na tradição acadêmica – mais aparente, mais claro, mais visível para o espectador. O que fascinava no Almoço na relva, de Édouard Manet, não era apenas a luz dura sobre a expressão dura, da mulher nua que nos encara no primeiro plano, mas o gesto do pintor revelado na superfície da tela. É um gesto ousado, carregado de intenção. A pintura de Van Gogh vai levar ao paroxismo esse caminho: o quadro é visto, de fato, como um somatório de gestos – e cada um deles revela o vestígio da presença física e da espiritualidade de quem o criou.

O mesmo se pode dizer dos icônicos quartetos tardios de Beethoven: o que fascina ali é a violência do gesto, que rasga o equilíbrio tonal com o mesmo ímpeto com que um amante rasga a roupa da mulher finalmente possuída. E o que dizer do rock’n’roll senão que é uma longa sequência de gestos corporais filtrados a partir de certa experiência histórica? Não mais a maneira estudada e autoconsciente da tradição burguesa europeia, mas o gesto espontâneo, livre, energético e perigosamente insolente – daí a sua modernidade insuperável.

O pintores zen consideravam que toda a pintura transcorre da energia e da intenção geradas na pincelada inicial. Por isso, ela deve ser resultado de um gesto resoluto e ousado. Pois é ela que abre a primeira fenda no campo infinito das possibilidades. Assim como as primeiras palavras de um romance começam a limitá-lo – e é fascinante que Guimarães Rosa tenha começado seu Grande Sertão: Veredas com “Nonada.”, como se quisesse reinstaurar na escrita o vazio e o infinito de possibilidades de uma folha em branco -, a obra procede num movimento de redução crescente das possibilidades, até finalmente estacionar (ou ser abandonada) em algum lugar.

Tal acontece também na canção – e o acadêmico Luiz Tatit ergueu uma teoria fundada sobre o gesto cancional, ou entoativo. Um único gesto interessante, prenhe de vida, pode sustentar uma canção – às vezes um disco inteiro. Tudo virá dele. O que se aprendeu de violão, de encadeamento de acordes e teoria musical, são apenas artifícios para desenvolver esse gesto, fazê-lo durar, extrair dele o máximo de frutos possíveis.

E o ouvinte de hoje não quer tanto escutar músicas, no sentido antigo, mas escutar gestos com os quais possa se identificar. Os aspectos de elaboração formal que nortearam parte da produção de canções no século XX foram relegados a um segundo plano. De modo análogo o domínio técnico deixou há muito de ser reverenciado na pintura. Queremos o gesto único, insubstituível, e a coragem que dele emana.

 

A MÚSICA CRIA IMAGENS

 

“Quando a música se tornou tão importante?”, pergunta o publicitário Don Draper, na série americana Mad Men. Estamos nos anos 1960 e a vida coletiva pulsava ao ritmo das canções. Houve certa “musicalização da cultura”, como se a música – a canção popular, mais especificamente – tivesse se tornado o terreno onde melhor se expressavam os sonhos de uma época, seus projetos e visões do futuro. Algumas cenas depois de fazer a pergunta, ao chegar em casa, Draper ganha de presente de sua mulher o recém-lançado álbum dos Beatles, Revolver. Ela lhe diz para ir direto para a última faixa, Tomorrow never knows, uma canção com toque oriental e temática filosófica, escrita e cantada por John Lennon. Mais jovem do que ele cerca de quinze anos, ela usa a canção para comunicar algo sobre o estado do mundo, algo que vai além da mera transmissão de informação, que não pode ser comunicado apenas com palavras. Ouvir a última canção do último álbum dos Beatles é se atualizar sobre uma nova realidade que está saindo da casca; é afinar a sensibilidade para o mundo que está nascendo. A sensação é de que cada canção está reconstruindo o real. Vivemos até hoje sob o arrebatamento e também sob a nostalgia desse momento no qual as canções dialogavam de modo natural com a alma coletiva, no qual a própria vida parecia uma espécie de transe musical.

Draper coloca o disco na vitrola, senta numa poltrona confortável, deixa a cabeça pender para trás e fecha os olhos. O episódio termina aí, mas podemos imaginar o que acontece em sua mente: ela é invadida por visões. Reminiscências, fantasias, cores avulsas, imagens acompanhadas por sensações corporais (ou seja, emoções): não é isso o que a música desperta em nós? A experiência musical nunca é apenas musical.

 

PINTAR OUVINDO MÚSICA

 

Todo mundo deveria experimentar isso ao menos uma vez. Jean Michel Basquiat se trancava em seu estúdio por dias, pintando e escutando música nas alturas. A sinergia entre olhos, ouvidos e corpo, se bem realizada, nos liberta da parte da mente ocupada em construir e defender uma identidade. É quando entramos no flow e deixamos partes mais profundas do ser, geralmente cerceadas pelas demandas sociais, se expressarem, dançarem através dos sentidos.

Se deixar intoxicar pela música. Deixar que certa frase melódica ou certos ritmos sirvam de apoio para a condução da mão que segura o pincel. Ser tocado por uma alegria ativa. Pintar completamente esquecido de si mesmo. Desaparecer no processo.

 

PINTAR PALAVRAS

 

Existe na língua inglesa o termo word painting. Trata-se do que os grandes compositores conseguem realizar nos momentos em que o significado das palavras e o desenho musical se compatibilizam de modo tão perfeito que acabam produzindo um super sentido, uma outra entidade – o motz et son dos trovadores provençais, descrito por Antonio Risério como “organismo semiótico em que palavra e som são inseparáveis em sua encarnação material”. Nesses momentos a canção parece tocar sua própria essência. É o delicado fraseado que acompanha a “pluma que o vento vai levando pelo ar”, em A felicidade, de Tom e Vinícius; o modo especial de cantar o “changing my life with a wave of her hand”, em Here, there and everywhere, de Lennon & McCartney; o lento deslizar de notas que acompanha o sentimento de queda e solidão narrados em Luz negra, de Nelson Cavaquinho; o movimento criado pelo “verde luz, verde cor de arrebentação”, de Sargaço mar, de Dorival Caymmi, um lindo exemplar de compositor-pintor no Brasil (assim como é Bob Dylan, nos EUA). São momentos de rara força, em que a canção parece se dirigir mais aos olhos do que propriamente aos ouvidos. A palavra se torna visual porque ganha movimento e direção, descrevendo uma trajetória, deixando em nós uma marca que não diz respeito somente ao ouvido, mas à imaginação.


Paulo da Costa é pesquisador, crítico de música, compositor e artista visual.


[1]Tratei sobre este tema no artigo que escrevi para o site da Revista Piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/tom-e-debussy/

[2] Refiro-me ao livro do professor Alexandre Freitas, Ressonâncias: aproximações entre música e pintura, que será publicado ainda este ano.

 

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