Perfil | Música


Djalma Corrêa tem uma trajetória marcante como percussionista. Nos anos 1960 e 1970, morou na Bahia e lá desenvolveu um importante trabalho de pesquisa e criação artística fortemente inspirado nas expressões percussivas da cultura popular baiana. Destaco a criação do grupo Baiafro, no ano de 1970, trabalho precursor de construção de uma linguagem artística afrodiaspórica.

Em conversa recente com Djalma Corrêa sobre o trabalho do grupo, ele me contou que o considera um dos grandes trabalhos que fez sobre a cultura negra e diz que a ideia de Baiafro sempre permaneceu com ele, mesmo depois que terminou o Movimento Integrado Baiafro. “Eu continuei fiel aos princípios do Baiafro. Baiafro está dentro de mim. Dentro da minha cabeça até hoje”. A seguir, apresento os percursos traçados por Djalma e busco situar a importância de sua percussão na fonografia brasileira, especialmente da chamada MPB.

 

Seminários Livres de Música da Bahia

 

Djalma Corrêa é mineiro da cidade de Ouro Preto e vem de uma família musical. Uma de suas maiores inspirações foi seu tio-avô, cônego Caetano, que tocava rabecão numa orquestra de câmara, na cidade de Mariana. Suas primeiras referências, além da música barroca, foram as congadas, as procissões da Semana Santa, os toques dos sinos das igrejas e também o bloco de Zé Pereira, de sua cidade natal. Ouro Preto foi, como ele fala, a primeira “pancada percussiva”. Maria do Carmo Corrêa, sua irmã, 14 anos mais velha, foi grande estimuladora e, posteriormente, parceira em alguns projetos. Djalma ainda era menor de idade quando começou sua vida profissional como baterista na noite de Belo Horizonte. Nessa mesma época, Maria do Carmo já estava na Bahia, em Salvador, estudando nos Seminários de Música da Universidade Federal da Bahia, importante escola de música coordenada pelo professor Hans-Joachim Koellreutter. O músico alemão chegou ao Brasil em 1937 e, com a eclosão da Segunda Guerra, acabou se estabelecendo no país. Em 1954, fundou a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, na época conhecida por Seminários Livres de Música da Bahia, criada no âmbito do projeto revolucionário de universidade do reitor Edgard Santos.

Aos 17 anos, no ano de 1959, Djalma Corrêa vai a Salvador para participar de um curso de férias de música eletrônica oferecido pelos Seminários. O que seria apenas uma experiência de 20 dias vira uma intensa vivência de quase 20 anos. No curso de música eletrônica, Djalma, aprendeu o “bê-á-bá” do que ele chamou de música eletrônica primitiva, feita no corta e cola com sintetizadores e osciladores, sem o uso de computadores hoje indispensáveis. Koellreutter, vendo seu interesse e desenvoltura, oferece-lhe uma sala para montar um laboratório experimental de música eletrônica. Era uma sala no porão da Escola de Música, dividindo o espaço com Walter Smetak, que, na sala ao lado, tinha um Laboratório de Luthieria. Depois do curso de férias, Djalma ingressou nos cursos regulares de percussão (percussão sinfônica) e composição e se tornou técnico da universidade, sendo responsável pelas gravações sonoras, e logo passou a integrar o grupo de jovens compositores e a Orquestra Sinfônica da Escola de Música. Foi um período fértil, de muito aprendizado.

 

Djalma Corrêa, por exemplo…

 

Além da formação acadêmica, Djalma Corrêa logo se integrou ao universo musical da cidade, participando da orquestra de Carlos Lacerda e, nesse ambiente, conheceu os artistas que faziam música popular, na época com grande influência da Bossa Nova e do Jazz. Tocando na noite, ele foi se integrando aos movimentos culturais da cidade. Em 1964, Djalma participou do show “Nós, por exemplo…”, que juntou pela primeira vez, no palco do recém-inaugurado Teatro Vila Velha, nomes ainda pouco conhecidos do cenário musical: Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Perna Fróes, Fernando Lona e Alcyvando Luz. O espetáculo foi produzido por Roberto Sant’Ana. Djalma apresentou uma obra de música eletrônica com acompanhamento de bateria e percussão e fez também a sonoplastia do show. Como estava com o gravador no palco, apenas para a sua música, resolveu gravar o show: um registro ainda inédito desse show antológico.

 

Nasce um pesquisador e com ele um acervo

 

Seus olhos e ouvidos de músico-pesquisador logo se interessaram pelo universo cultural baiano. Foi nesse período que ele começou a fazer gravações sonoras. Primeiro com um gravador de seu professor Koellreutter e depois com um Nagra, gravador portátil, muito utilizado no cinema para a captação do som direto. Aos poucos, então, começou a registrar diversos aspectos da cultura popular baiana: a Capoeira, o Samba de Roda, os Ternos de Reis, a Puxada de Xaréu e os Terreiros, quando lhe era permitido. Uma coisa vai levando a outra e, por onde andava, Djalma levava seu gravador. Com o tempo, foi expandindo suas gravações e pesquisas para outros estados do Brasil e do mundo, constituindo um rico e extenso acervo.

Nas suas incursões por Salvador, Djalma passou a frequentar terreiros de candomblé e aprendeu os toques com os alagbês mais virtuosos da cidade como, por exemplo, Vadinho, Euvaldo Freitas, do renomado Terreiro do Gantois. Em trecho do Programa Ensaio, de Fernando Faro, Djalma conta:

“(…) meus outros mestres, vamos dizer assim, da coisa prática, de meter a mão no couro, realmente foram os alagbês das casas da Bahia”.

E completa, falando de sua relação com Vadinho:

“ele me ensinou mais do que eu merecia, aprendi com ele tudo, ou quase tudo. Tudo é impossível porque o conhecimento místico da cultura negra é muito amplo. Mas, com Vadinho, eu tive a possibilidade de conviver nos principais terreiros da Bahia e tocar junto com ele” (Programa Ensaio, TV Cultura, SP, 1994).

É importante ressaltar, também, o contato com personalidades desse mesmo universo como os artistas Pierre Verger, Carybé, Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, e sua esposa, a etnóloga Juana Elbein dos Santos, entre outros.

 

Grupo Baiafro: música percussiva afro-baiana

 

Em 1970, Djalma criou o grupo Baiafro, inicialmente como um trio formado por ele, Edinho Marundelê (Edson Emeterio de Sant’ana) e Onias Carmadelli. Com esse trio, fez alguns shows, como um concerto de atabaques e flautas na Igreja Nossa Senhora do Rosário, no Pelourinho. Num segundo momento, se integraram ao Baiafro Vadinho e seu irmão Dudu (Eduardo Freitas Filho), Alagbês do Terreiro do Gantois e também Mestre Gato (José Gabriel Góes), importante mestre de capoeira da cidade.  O grupo foi se transformando e, em meados da década de 1970, já era o Movimento Integrado Baiafro, que chegou a ter mais de 20 integrantes, reunindo várias linguagens artísticas, como a dança, o teatro e as artes plásticas. Desde o início, contou com o apoio do Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA) e de Roland Schaffner, na época diretor do instituto, um grande incentivador do grupo.

Em texto inédito de reflexão e história da experiência do grupo, escrito por Djalma no ano de 1980, ele define o conceito do que é Baiafro:

“Baiafro é uma proposta cultural, a busca de uma nova linguagem em música e em dança, que reflita os anseios e o modo de ser do homem atual. Por ter nascido na Bahia, é negro, por ser brasileiro, mestiço e mutante, como todo o produto do terceiro mundo, profundamente ligado à religião e à cultura negra, reflete em seus rituais um deslocamento para um plano mágico das forças essenciais da natureza, Bahia, África, Baiafro”.

Um ponto de destaque do trabalho do Baiafro era a questão racial – a valorização da cultura negra e afro-baiana – levantada pelo grupo no próprio nome, no instrumental e na temática dos espetáculos (“Sete Poemas Negros”, “Por que Oxalá usa Ekodidé?”, “Afro Mundi Contemporâneo”, entre outros). Essa perspectiva pode ser uma chave para entender o background conceitual que motivou o trabalho de Djalma, tanto do Baiafro, como de suas pesquisas e de outros trabalhos. A questão da diáspora negra era um forte elemento da proposta do Baiafro. Em outro trecho do mesmo texto, Djalma continua trazendo elementos do que ele chamou de questões teóricas do grupo.

“Baiafro estendeu sua pesquisa a outros estados e países, tendo como referencial a terra mãe África, preocupando-se em entender e estudar os diferentes aspectos que a raiz básica negra tomou em suas diásporas pelo mundo e a sua interação com outros patrimônios culturais”.

Em 1972, o grupo fez sua primeira gravação fonográfica. Essa gravação marca também o início de uma longa e intensa atividade de Djalma, relacionada à indústria fonográfica. O LP Salomão – The New Dave Pike Set e grupo Baiafro in Bahia – (MPS Records) foi um registro da primeira formação do Baiafro com o grupo de jazz alemão.

 

Djalma Corrêa em três produções fonográficas

 

Djalma Corrêa, através de sua carreira como percussionista, teve uma importante inserção na indústria fonográfica, principalmente em meados da década de 1970 e início da década de 1980. Depois de viver de 1959 a 1976 na Bahia, mudou-se para o Rio de Janeiro, no auge do chamado boom fonográfico do que viria a ficar conhecido sob a sigla MPB. No Rio, passou a trabalhar regularmente em gravadoras, fazendo as bases percussivas de diversas gravações comerciais, principalmente nos estúdios da Polygram. Só nos anos 1970, foram mais de 40 discos. Djalma também atuou em shows e turnês com Gilberto Gil e Maria Bethânia, além de ter sido um dos músicos dos Doces Bárbaros, trabalho coletivo dos baianos Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Djalma foi um dos músicos que deu à percussão uma posição de destaque na música brasileira e podemos ver esse movimento tanto na criação de sua linguagem percussiva, como na divulgação da percussão presente em diversas tradições afro-brasileiras e de matriz africana, como  no Candomblé.

Inspirado por essas experiências, nos anos de 1977 e 1978, Djalma faz três produções fonográficas, os LPs: Candomblé, Folclore do Brasil e Djalma Corrêa Baiafro. Nesses três discos, Djalma teve uma atuação proeminente, numa mistura de papéis de pesquisador, colecionador, curador e artista. Os três discos, produzidos num intervalo de tempo muito próximo, têm naturezas diversas. No entanto, trazem muitos elementos convergentes, sendo um deles sua atuação como estudioso, como ele mesmo se caracterizou, da cultura afro-brasileira e do denominado folclore. Os três discos trazem a linguagem da percussão para o centro das atenções.

Candomblé (1977), embora gravado em estúdio e concebido já como um produto, está diretamente conectado ao seu trabalho de documentação da música e dos toques dos terreiros. No texto da contracapa, Djalma faz essa relação: “Como músico e estudioso da cultura afro-brasileira, sempre considerei de fundamental importância a documentação do riquíssimo repertório oral dos povos de descendência africana no Brasil” (LP Candomblé, contracapa).

Um dos aspectos era justamente essa consciência da importância do registro sonoro como documento de preservação de um repertório em transformação. “O registro é oportuno, dado às inevitáveis mudanças e transformações ocorridas na sociedade global”. No LP, lançado em 1977 pela Fontana, uma espécie de subselo da gravadora Polygram, Roberto Sant’Ana assumiu a coordenação de produção e Djalma, a direção de produção e a mixagem. São dele também a foto da capa e o texto da contracapa.

Djalma relata que a execução desse trabalho foi bem descomplicada. Primeiramente, ressalto que isso se deveu à larga experiência de Djalma em gravações de músicas de terreiros. Essa sua bagagem facilitou o trabalho, pois Djalma já tinha o domínio da técnica de gravação, da escolha dos microfones, do distanciamento dos sons agudos etc. Outro ponto de destaque é a presença de Vadinho do Gantois no comando da execução dos toques. Era ele quem conduzia os trabalhos musicais e que trazia o repertório, sempre tocando o Rum. Por fim, todos os participantes já vinham da experiência do Baiafro, experimentando a transposição da linguagem da música do candomblé para diversos espetáculos e atividades do grupo. Dessa forma, estavam todos muito integrados.

Folclore do Brasil (1977), editado pela Phonogram, é a única edição fonográfica do extenso trabalho de documentação sonora e audiovisual que Djalma desenvolveu de pesquisa da cultura popular brasileira. Reunindo uma compilação de temas, foi uma edição promocional e não comercial, comemorativa dos 100 anos do som gravado. Com uma tiragem limitada de 300 exemplares, o LP foi distribuído pela Phonogram para as grandes gravadoras do mundo, representando a música brasileira.  Na época o diretor da gravadora, André Midani, pediu para Djalma fazer uma seleção de suas gravações para essa edição comemorativa. Djalma, então, selecionou 14 temas de diversas expressões do Norte, Nordeste e Sul do Brasil. Cada gravação teve sua dinâmica própria, mas no geral são gravações feitas em locais abertos ou nas sedes dos grupos. Alguns exemplos são o Carimbó do Pará, a Caixa do Divino do Maranhão, o Maculelê, os Aboios e a Puxada de Rede da Bahia, o Bambelô do Rio Grande do Norte, o Marabaixo do Amapá, as Tribos do Amazonas e a Trova Gaúcha do Rio Grande do Sul. A edição foi uma pequena seleção: são 40 minutos de um material ainda inédito de quase 100 horas de gravações sonoras. Esse material é parte do acervo do músico, que está em processo de organização, classificação e digitalização.

O disco Djalma Corrêa Baiafro (1978), da série MPBC – Música Popular Brasileira Contemporânea, pode ser considerado seu o trabalho mais autoral, embora seja também fruto do longo trabalho do grupo Baiafro. “O disco carrega o conceito baiafro de trabalhar a linguagem percussiva afro-brasileira”, diz Djalma, em entrevista realizada em janeiro de 2019. O resultado é um disco conceitual, uma mistura de referências: da música barroca, da formação nos Seminários de Música, da prática na música erudita e popular. Tudo isso somado às suas pesquisas e vivências no universo musical afro-baiano. Djalma faz, segundo ele, uma mixagem dessas influências, um apanhado de tudo, criando uma linguagem experimental. O artista recebeu, com esse LP, o prêmio de melhor instrumentista do troféu VillaLobos e foi a primeira vez que o prêmio foi dado a um percussionista. Ainda em 1978, o LP foi lançado no Japão.

Gravado no Rio de Janeiro e em Salvador, dois anos após Djalma deixar a Bahia, este LP é também uma síntese da trajetória de Djalma. O trabalho de estúdio, no Rio, foi quase todo produzido com Djalma tocando sozinho, fazendo playbacks, efeitos sonoros e pensando as costuras necessárias para o disco. Na Bahia ele gravou com o Vadinho do Gantois e Dudu, que já haviam participado do disco Candomblé, no ano anterior, e, como mencionado, tinham sido membros do Baiafro. Eles participaram da faixa “Os Quatro Elementos”, releitura de músicas do candomblé, e da faixa “Samba de Roda na Capoeira”, as duas de maior referência à cultura afro-baiana. Ainda na Bahia, ele gravou com o Coral da Juventude do Mosteiro de São Bento e o solista Paulo Gondim e com o Conjunto de Flautas “Musika Bahia”, integrado por Conceição Perron, Bárbara Vasconcelos e Maria do Carmo Corrêa, sua irmã. O disco contou ainda com a participação do violonista Raimundo Sodré e de Neném, na cuíca.

A série MPBC – Música Popular Brasileira Contemporânea tinha como referência a música autoral e instrumental. O disco de Djalma Corrêa foi o primeiro da série. Para Djalma foi a possibilidade de realizar um disco seu, com bastante liberdade e tempo de criação. “Coube à Phonogram criar condições para realização desse projeto, sem, entretanto, limitar ou interferir na concepção musical de cada um dos participantes”, diz na contracapa do LP Baiafro.

 

Acervo Djalma Corrêa

 

Desde 2018 estou em constante contato com Djalma Corrêa, pesquisando a trajetória desse importante artista para minha tese de doutorado e trabalhando com ele, com seu filho, José Caetano Dable Corrêa, e equipe, no projeto de preservação de seu acervo, que fica em sua residência no bairro de Pedra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro.  É ali, nesse bairro,  distante do centro da cidade, que Djalma guarda em áudios, fotografias, filmes e mais uma centena de outros tipos de documentos esse grande legado para a cultura brasileira, especialmente para a sua expressão negra. Djalma preserva diversos registros das culturas populares, música popular e erudita, das religiões afro-brasileiras, entre outros temas. O projeto de organização, classificação e digitalização de parte inicial desses documentos é desenvolvido pela Associação cultural Balafon com apoio do programa Rumos Itaú Cultural e está em sua fase final.


Cecília de Mendonça coordena o projeto de preservação do Acervo Djalma Corrêa e é doutoranda em Antropologia pelo PPGSA/UFRJ.

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