Crítica | Audiovisual


Fotografia de Mariana David

Meu lugar de escrita é o sofá da sala, diante da televisão, ou a cama, escorado na parede do quarto com o laptop no colo. Caderno e caneta, rabiscos velozes sobre as páginas. Vez ou outra pauso o vídeo para impedir que um insight mais complexo me escape. Então aproveito para buscar um café, um lanchinho, e sou capturado pela rede social quando respondo alguma mensagem urgente traiçoeira. Se eu tivesse visto algum filme no celular, teria coragem de admitir (considerando que a confissão de ver os filmes no laptop já me custa bastante)? Bem, apesar de não estar certo quanto a isso, uma coisa posso afirmar logo de cara: festival de cinema online é um negócio difícil, complicado, desgastante.

Em 2021, o XVI Panorama Internacional Coisa de Cinema, assim como tantos outros eventos artísticos, ocorreu em formato remoto. Antes de tudo, solidarizo-me com os diretores, atores, produtores, técnicos, enfim, com toda a cadeia alimentar da fauna cinematográfica. Onde o sabor de aventura na viagem até às cidades dos festivais? Onde o cheiro das salas escuras, pescoços alongados para ver melhor o grande écran? Onde as festinhas com espectadores e realizadores enfim juntos no mesmo plano?

Eu participei do evento de um modo particular. Na condição de editor desta Revista Barril, vi no XVI Panorama uma oportunidade para me aproximar da produção audiovisual que nos circunda atualmente. Dentre as ações do festival, divisei a ocasião perfeita para meus propósitos: alguns dias antes da exibição dos filmes, haveria uma oficina de crítica, assim eu poderia conhecer também o povo interessado em cinema: críticos, cineclubistas, possíveis colaboradores. Os encontros começaram no dia 22 de fevereiro, dois meses depois de eu ter sofrido um ataque zumbi no centro da cidade que me custou uma fratura no olécrano esquerdo. Então, eu estava na fila de revisões de cirurgias do Hospital Geral do Estado, quando chegou a hora de me apresentar, usando uma máscara N-95, aos participantes da reunião. Pelo celular, é possível estar em vários lugares ao mesmo tempo. A oficina foi ministrada por Rafael Carvalho, que no final formou dois júris com a gente: um para a competitiva baiana[1] e outro para a nacional. Fiquei no primeiro.

Este texto, portanto, surge um pouco como obra do acaso, pois em circunstâncias normais seria improvável que eu tivesse empenhado tantas horas para assistir sistematicamente a um determinado segmento do festival. De início, me animei com a ideia de acompanhar as produções feitas na Bahia, principalmente quando me dei conta da forte presença de cidades do interior do Estado: Jequié, Vitória da Conquista, Poções, Cruz das Almas, Santo Amaro e principalmente Cachoeira – esta última por conta do prolífico curso de cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Foram dois longas de ficção. Rosa Tirana, o representante de Poções, traz a peregrinação sertaneja de uma criança em busca da santinha padroeira de sua devoção. A investida poética do filme resulta numa mistura nebulosa de diversos gêneros cinematográficos partindo do núcleo simbólico do sertão – espaço incansavelmente pesquisado e experimentado dentro da cinematografia nacional. Caminhos conhecidos – já há muito tempo pisados e repisados – para uma jornada que deveria ser de aventura. Na sequência final, por exemplo, resolvendo essa saga pueril em todos os sentidos, Elba Ramalho entoa uma canção, enquanto a chuva redentora cai sobre o chão castigado pela seca. A outra ficção, Voltei!, é iluminada à luz de velas e candeeiros. Trata-se de uma comédia distópica que se passa inteira dentro de uma casa sem energia no Brasil colapsado de 2030, quando o chamado “governo do disparate” instaura uma ditadura no país com direito a campos de concentração para artistas. Nesse filme carregado no dendê desde o sotaque das personagens até os mínimos pormenores do roteiro, as falas excessivamente explicadas vão sendo conduzidas por três atrizes que carregam com dificuldade as pedras pesadas de um texto triste. A mais matreira e ardilosa de todas, a deusa do humor. Misericórdia!

Fotografia de Mariana David

Na seara dos curtas-metragens de ficção, algumas obras materializam-se como anseios criativos ainda incipientes de jovens realizadores que estão na fase de desenvolvimento de suas técnicas. Passemos rapidamente por eles em cortes rápidos.

Capécia, um thriller manifesto, põe em cena a caçada a uma jovem negra como dramatização do motivo Pele Negra, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon. Passarinho acompanha a vida marginal de jovens artistas de rua perseguidos pela polícia e pela sociedade, combinando elementos estéticos do contexto da rua a construções visuais inspiradas em Peter Greenaway e Goya. Modo Noturno cria um suspense inusitado com a seguinte estratégia: incluir aparições sobrenaturais em um filme que parecia um simples registro de câmeras de celular filmando ruas vazias durante a pandemia da covid-19. Tempo de pipa e Para o hoje que finge diferença são esboços poéticos batalhando para se sustentar enquanto produto audiovisual. A diretora de Uma entre todas, a origem do mundo faz uma releitura performática da icônica tela de Courbet pintando cenas da colonização portuguesa sobre seu corpo de mulher indígena enquanto sua voz em off explica seu intento literal: um discurso decolonial combativo. Em Facão, um assaltante munido dessa arma causa terror na região até investir contra uma estudante de cinema que o introduz na obra de Spike Lee e dos irmãos Cohen, trazendo-o para o centro – pretensamente redentor – da sétima arte. Mórula: experimento autobiográfico feito para uma disciplina de graduação em que a realizadora expõe as consequências práticas e existenciais geradas pelo aborto clandestino no Brasil. Maratonista de quarentena, única animação no certame, brinca de um jeito um tanto destrambelhado e sem graça com o tema do isolamento social. Fica bem também aposta numa comédia que não faz rir ao falar depressão e criticar a cultura coach. B não é de biscoito é outro exemplo que arrisca no humor, partindo de estereótipos de gênero e sexualidade, mas que acaba na encenação de uma roda de conversa anódina e previsível sobre bissexualidade. Sobre nossas cabeças, a ficção mais bem produzida do ponto de vista técnico, com financiamento e atores experientes, propõe uma ideia insólita: dois personagens sentados em cadeiras dobráveis observam o céu noturno e discutem sobre a existência de vida extraterrestre até serem surpreendidos pela chegada de uma luz abdutora que encerra a obra de modo abrupto, deixando vários pontos soltos.

Os curtas documentais, por sua vez, constroem retratos/relatos intrigantes a partir de pontos de irradiação narrativa encontrados ou inventados pelos cineastas, seja nos rincões da Bahia, seja dentro de si mesmos, em suas próprias trajetórias pessoais. Os porcos e a reza filma o cotidiano em torno de uma pequena criação de suínos na região rural de Jequié onde a gente simples daquele lugar vive num Brasil pré-moderno entre rezadeiras, ladainhas e leitões. Em A casa e a rua, somos jogados no meio da perigosa guerra de espadas em Cruz das Almas: incitativa corajosa e arriscada da diretora Taise Andrade Ribeiro. À beira do planeta mainha soprou a gente escreve um estudo poético sentimental em retratos móveis, partindo da relação romântica entre duas mulheres que estão descobrindo a vida adulta fora de seus locais de origem, longe de suas mães amorosas, com quem entram em conflito. Álbum de casamento expõe o processo de separação absolutamente comum dos pais de duas personagens que montam o discurso em off intercalados com imagens do álbum como uma estetização terapêutica pouco empática aos espectadores.

Três dos longas documentais tampouco apresentam um esforço narrativo consistente para além do registro e da construção linear de sentido: Memórias em movimento, Memórias afro-atlânticas, Bembé do mercado – 130 anos. Tratam-se de registros fílmicos que falam sobre assuntos indiscutivelmente relevantes (trajetória do Balé Teatro Castro Alves; pesquisa etnográfica de terreiros de candomblé; festas religiosas de Salvador e do Recôncavo), que, no entanto, não conseguem a propor obras instigantes para espectadores desinteressados em tais temas. Já Dorivando Saravá, o preto que virou mar, embora aposte no formato cansativo de músicos, estudiosos e artistas falando sobre Caymmi – como tantos outros produtos – até consegue encontrar temas e discussões dentro da contraditoriamente gigantesca e diminuta obra do compositor, contando uma história menos frontal e unívoca. Mas qual a necessidade de jogar um violão ao mar e filmá-lo sendo tragado pelas águas, ou de fincar uma cadeira de balanço na areia da praia para criar imagens adicionais, intercalando as falas das cabeças que se pronunciam no documentário? Poesia visual é isso? As folhas com as partituras das canções jogadas às águas… Bem, tentemos outras respostas.

O longa Neojibá – música que transforma foi o filme que nosso júri premiou. Na justificativa do nosso galardão escrevemos em conjunto o seguinte: “Despontando dentre os concorrentes ao demonstrar um confortável domínio dos códigos documentais clássicos, o filme constrói uma narrativa através de seu silencioso protagonista e do instigante percurso transcontinental desses personagens movidos por uma paixão pela música, alcançando assim, méritos artísticos inquestionáveis.”. Concordo com tudo, só mudaria a última palavra em itálico, pois apesar do filme ter sim se destacado entre os outros, de modo algum ele se firma de modo absoluto enquanto obra de arte. Inquestionáveis são os resultados desta grandiosa iniciativa que é o Neojibá, assim como está acima de qualquer questionamento o talento de Marta Argerich, que toca com os jovens da simpática orquestrada montada por Ricardo Castro. Méritos artísticos proeminentes, sim, corresponderiam a um juízo mais preciso, pois a parte menos questionável no texto acima é que o filme “desponta entre os concorrentes”.

Da competição dos curtas, escolhemos Tudo que é apertado rasga, de Fábio Rodrigues Filho, cria da UFRB. Neste espetacular filme-ensaio, o realizador empreende um trabalho de pesquisa em arquivo de onde extrai falas de atores negros também espetaculares, que foram escanteados pela indústria do entretenimento no decorrer de suas carreiras: Grande Otelo, Zózimo Bulbul, Ruth de Souza, Antônio Pitanga, dentre outros. E aqui o diretor se depara com uma descoberta desconcertante que soube elaborar engenhosamente na montagem: Zezé Motta, em diversas entrevistas, num arco histórico que vai desde Jô Soares Onze e Meia – e talvez antes – até o recente talk show de Fábio Porchat, vem contando as mesmas histórias de exclusão e racismo com as mesmas palavras, como se estivesse performando um texto escrito em linhas meticulosas e ferinas. É, portanto, abominável e vergonhoso – para o país – ver na tela como a repetição sistemática dos mesmos discursos proferidos por uma de suas maiores atrizes nunca foi de fato ouvida. Na farsa da vida real, Zezé Mota escreveu, dirigiu e atuou uma peça autobiográfica que o brasileiro até hoje não conseguiu entender, ela mostra à nação o próprio atraso de quem não consegue se olhar no espelho e se reconhecer como negro. Quando comecei a assistir ao filme pensei que estaria diante de um subproduto de A negação do Brasil de Joel Zito Araújo, mas logo vi que estava enganado, quando as habilidosas mãos de Fábio Rodrigues Filho começaram a rasgar em minha frente, o seu grande filme.

Fotografia de Mariana David

Este não é um momento fácil para quase ninguém, o longo período que se estende desde o início do ano de 2020 até o presente. Para ser mais exato, desde 2016 tudo tem ficado cada vez mais difícil por aqui. E se hoje até sair de casa para comprar pipoca e refrigerante no supermercado se tornou um desafio mortal, imagine a odisseia de fazer um filme. Nesta competitiva baiana que acompanhamos, os concorrentes dividiam-se em três categorias principais: filmes de baixo, baixíssimo, ou nenhum orçamento. Mesmo com algumas exceções, a safra não é boa. E negar isso não nos levaria a lugar algum.

Diante desses fatos, porém, seria pouco apropriado – e quase cruel – não praticar um olhar compreensivo e generoso quando assistimos a tais trabalhos. Ao mesmo tempo, é cansativo participar de um processo cultural que nos impede de ver filmes em um festival sem ter de lembrar a todo momento do Brasil, da Bahia, da nossa realidade de falta de recursos e de soluções criativas para nossos impasses. Até para se manter diante de uma tela é preciso lutar bravamente.


Igor de Albuquerque é editor, tradutor, escritor e produtor. Fundador e editor da Revista Barril. Atualmente prepara uma tese de doutorado em literatura italiana na USP. Em 2019 assina o roteiro do romance gráfico “-13, -38: amanhã de novo”. É criador do canal do Youtube Bim Bom Records, voltado para música contemporânea. Escreve principalmente sobre artes e literatura


[1] O chamado Júri Jovem da competitiva baiana foi composto por mim, Clara Ballena, Catarina Santos da Costa, Luiz Fernando Rodolfo e Murilo Morais.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.