Selfie | Cênicas


Ilustração de Iuri Casaes

A espectadora de bolor

março de 2021

Edição: 22


Mais que uma zona de exceção da vida habitada apenas ocasionalmente, a doença é uma espécie de dupla cidadania da qual só nos destituímos completamente ao morrer. Susan Sontag, impressionada com os efeitos espetaculares de certas doenças sobre o imaginário social de determinadas épocas, escreve, nos monumentais A doença como metáfora/A AIDS e suas metáforas, sobre como estar doente significaria habitar um reino construído pela atribuição de metáforas às enfermidades. A ensaísta aponta para os perigos que tal operação representaria para o doente, cujo jugo torna a doença ainda mais difícil de ser encarada. Susan estava atenta para como as estruturas discursivas plasmariam as experiências de estar enfermo em fantasias punitivas ou sentimentais e nos efeitos capilares dos reinos metafóricos e interpretativos sobre a cultura. Observou como identidades eram redefinidas e comunidades novas, demarcadas (a exemplo da AIDS). Observou o que o câncer fora para quase todo o século XX e a AIDS para o seu final; a tuberculose e a loucura para o século XIX e a peste como paradigma do século XVI. Ela alertava para o quanto pode ser irresistível o desejo de interpretar doenças e epidemias em especial.

No texto O coronavírus como metáfora, Contardo Calligaris parte das premissas de Sontag e aposta no covid como matriz das metáforas fundadoras do século XXI. Para o autor, as alegorias derivadas do binômio contaminação/imunidade despontam como punitivas da ideia de mundo globalizado e sem fronteiras. Ler o corpus social a partir de premissas epidemiológicas tem em sua base a guerra contra a alteridade, pois sempre concebe corpos estranhos deteriorando um corpo saudável. A leitura intoxicada veria o mundo sem fronteiras com desconfiança, justificando toda sorte de xenofobia (materializada em muros e em novos limites geográficos) com a desculpa de serem barreiras sanitárias. Além do palpite do psicanalista, têm chovido interpretações a respeito da pandemia do covid-19 como uma metáfora dos nossos tempos. A doença como um inevitável,  o confinamento  como  uma chance para a humanidade repensar a dimensão coletiva da vida, entre outras bobagens. O grande reino da inevitabilidade não é tão grande assim: no caso brasileiro, todos sabemos o nome, o sobrenome e o número eleitoral da causa do esgarçamento desta pandemia. Aqui não trato disso nem daquilo.

Apesar da sedução ser grande, recusei a operação de metaforizar a experiência coletiva e individual da pandemia do covid-19 a partir de Dança doente (2017).  Me reservo o direito de apenas abordar a experiência de reler seus sentidos (a obra é anterior à epidemia mundial) a partir deste novo contexto, no qual não só a dança, mas também a imagem, a transmissão e o público estavam doentes.

 

1.

Assistir à Dança doente, estando em dia — no pior sentido — com a epidemia do presente, me levou a pensar nas relações do léxico comum entre os universos da doença e da apreciação artística. Vejamos: basta que varie a regência do verbo assistir para que ele deixe de significar testemunhar, presenciar, ver (“assisti ao espetáculo”) e se torne socorrer, dar socorro.  No segundo caso, por razões óbvias, são frequentes os exemplos envolvendo algum personagem da área da saúde (“o médico assistiu o paciente”). Por sua vez, aquele que é assistido é chamado de “paciente”, e, não raro, está enfermo. Paciente sugere paciência, já que tal atributo é algo que tanto a doença quanto os sistemas de saúde exigem. É também o nome dado tanto àqueles que carecem de cuidados inadiáveis – que, por ironia, não podem mais esperar –, quanto àqueles réus submetidos à pena de morte, que esperarão até que o fim se abata sobre eles.

“Espectador” guarda lá seu parentesco com “expectorante”, mais por fraternidade fonético-anatômica que por fidedignidade etimológica. Um diz respeito àquele que olha atentamente (portanto, ao olho); o outro, àquilo que é capaz de tirar algo do peito. “Tirar do peito”, “falar desde o coração” são variações de uma compreensão antiga sobre a arte e a ideia de “expressão artística” como uma vazão de algo dentro de si. Em meados do século XX, Wilhelm Reich sugeriu que o impedimento da vazão dessas expressões íntimas (para ele, necessariamente criativas, fossem expressões de raiva ou refreamento sexual) seria responsável por doenças, a exemplo do câncer. Essas acepções encontram no próprio cristianismo raízes ainda mais antigas. No evangelho gnóstico de S. Tomás, por exemplo, há uma passagem em que Jesus diz: “Se manifestares o que está dentro de ti, o que está dentro de ti te salvará. Se não manifestares o que está dentro de ti, o que está dentro de ti te destruirá”.

Para além dos parâmetros e estruturas em que a ideia de dar vazão ou expressão àquilo que está represado encontra ecos análogos na saúde, na arte e na religião, me parece que algumas danças podem nos ensinar a deslocar esse movimento. Em vez de definir o saudável (ou o artista) como aquele que desloca algo de dentro para fora de si, olhemos também para artistas cuja atenção esteja entre a superficie, as bordas e o fora. Em Min a La Borde (1986), o dançarino de butô Min Tanaka se apresenta na Clínica psiquiátrica La Borde, a convite de Félix Guattari. Sair do ensimesmamento, admitir a fragilidade e a fantasmagoria de todos os entes vivos também são formas de vitalidade. Que não estejamos imunes a elas.

 

2.

A certa altura do ano passado, fui chamada a ajudar nos cuidados de meu padrasto junto à minha mãe. O casal já idoso precisou enfrentar a alegria e o pânico de ser chamado a receber o transplante hepático do marido nas condições calamitosas de transmissão do covid-19. Meu pai biológico, idoso e obeso, também acometido de problemas hepáticos, tinha saído da UTI havia pouco e estava se reestabelecendo de um quadro grave da doença. Também idoso, recém-operado e à base de imunossupressores[1], meu padrasto era o candidato incontestável à condição de vítima fatal, caso se infectasse pelo vírus. Ele estava contente pelo milagre que era descobrir um fígado compatível e poder recebê-lo, mas igualmente apavorado por ser justo aquele o momento do transplante. Lembro de sua fisionomia assustada com o que havia sucedido ao meu pai e lembro também do torpor que ele visitou ao deixar o hospital, tentando nos explicar, muito lento e emocionado, a proximidade com que sentia a morte a todo o tempo, desde a cirurgia.

Passado um período de cuidado constante com o padrasto recém-transplantado, recebi na madrugada uma chamada telefônica nervosa de minha chefa, dizendo “Alana! Perdi o paladar, perdi o paladar. Sinto muito…!”. Enquanto falávamos, minha mão saiu à cata de uma tangerina madura e muito cheirosa que deixei na cabeceira da cama, para evitar assaltos à geladeira. A chefa ainda ao ouvido, falando alto e, àquela altura, eu nem escutava uma palavra sequer. Arranquei a casca a dentadas, o sumo cítrico pingando nas pernas e então o susto: não havia mais cheiro algum para sentir. A tangerina parecia uma fruta falsa. Gritei para o cômodo ao lado, onde os velhos dormiam, ainda com o celular na mão e a chamada em curso, atropelando o que quer que a chefa estivesse dizendo com “NÃO ENTREM MAIS AQUI, NÃO SINTO MAIS CHEIRO DE NADA“.

Daí em diante, comecei a apresentar outros sintomas. Foram quinze dias confinada num quarto de 6m2, recebendo as refeições através das mãos apavoradas dos velhinhos por debaixo de uma fresta da cortina improvisada como porta. E eis que surge o convite: “Alana, dezoito de julho tem Dança doente pelo Festival Cenas do Nordeste, exibido completamente on-line, quer escrever?”. Na data do convite (16/07/2020), o Brasil havia chegado à marca de dois milhões de casos confirmados de coronavírus e os óbitos estavam em torno de 77 mil de brasileiros.

 

3.

Embora prejudicada, topei escrever, doente, a respeito do espetáculo dirigido por Marcelo Evelin, acreditando que estar enferma seria um estado de presença mais adequado à obra. Eu, incapaz de sair da horizontal na maior parte do tempo, aceitei o convite grunhindo de dor enquanto uma febre esquisitíssima e invisível ao termômetro se movia pelo meu corpo, fazendo arder meus membros sem nenhum grau centígrado a mais no medidor. E foi assim, com o corpo embolorado, as pestanas queimando de febre e a vista embaçada, que estive na estranha companhia daquele trabalho. Deitada com o computador sobre a barriga, deitei aquela dança sobre mim, querendo talvez  me aproximar – do jeito que uma dançarina faria – da noção de crítica de arte que Sontag, em mais de uma oportunidade, e ainda mais enfaticamente em “Contra a interpretação” sugeriu: que a arte precisaria menos de uma hermenêutica que de uma erótica.

Sensível ao bafo quente que sabia ser meu apenas porque saía da minha boca entreaberta, pensei: “se a dança é a arte da doença, estar doente me deixa mais perto dela”. Eu seria, ao menos naquele instante, a própria Dançarina Doente em minha aura de bolor. Enquanto pensava, respirando apenas pela boca, continuava sentindo aquele ar repugnante, o meu próprio ar repugnante, deteriorando o oxigênio disponível no quarto.

Uma pessoa adoentada, quase sempre deitada, gemia num canto obscuro da casa. Um hábito como o de relaxar sobre o tatame, o corpo como um peixe, parece ter sido aprendido em uma aula dada por esse dançarino doente. Seu corpo aparecia nos contornos parecendo realizar o gesto da reza, mas ele era alcançado pela escuridão, como se houvesse se reconstituído após uma lágrima. Ninguém sabia o que era essa obscuridade do além, nem se lembrava do começo que parecia uma ressurreição obscura. [2]

4.

Eu não posso dizer que vi Dança Doente. De todo modo, talvez isso não seja tão importante. Guardei, em minha defesa, o célebre trecho “os olhos têm um defeito, pois são olhos”, do  Hijikata Tatsumi, em seu A dançarina doente. Livro que também não li, a não ser através de citações em outro livro[3], cujo encontro comigo se deu anos antes. Se os olhos têm esse defeito de “apenas ver”, danças não são necessariamente da ordem do mostrável. Para termos ciência disso, há toda uma tradição milenar de danças não cênicas.  Tadashi Endo, por exemplo, ainda que se inscreva numa certa tradição cênica, afirma os limites do ver na sua dança. Ele não deseja apenas mostrá-la: ele quer, sobretudo, que ela exista. Ele quer que o encontro entre audiência e artista produzam um “sentimento de existência absoluta”. E era apenas isso o que eu desejava naquele encontro: uma existência absoluta com uma dança na qual minha presença contaminada não fosse indesejável.

Eu diria que algumas muitas peças, performances e danças são imunes à exibição virtual, ficando, assim, indecifradas, intocadas. Se deixadas apenas à sorte da visão, têm algo de fundamental ceifado da raiz. Dança doente me pareceu um desses casos. Se o dançarino de butô deveria ser como “o cadáver que se levanta” (nas palavras do próprio Hijikata) para se aproximar daquele limiar de presença e atenção, a audiência dessas danças das trevas[4] deveria aquietar a banalidade, a vulgaridade e principalmente a ilusão a respeito da própria saúde, lembrando do fato de sermos também um cadáver.

5.

No início tivemos algum problema na transmissão, mas, depois de alguns ajustes, o terceiro sinal estava livre para soar e tentarmos agir como pagantes num teatro. Inicia-se a exibição de Dança Doente na plataforma Zoom.

Começa o trabalho. Mais da metade da exibição está em registro em preto e branco, em textura VHS, propositadamente desgastada e difícil de ver. O cinegrafista que compôs o registro com Evelin estava recriando o gênero de captura de imagens que o cinema butô consagrou em arquivos de vídeo do próprio Hijikata, em cujos documentos o trabalho também se baseou. A certa altura, um comentário constrangido no chat do Zoom: “só eu não consigo ver nada?”, numa réplica do tipo “O rei está nu[5]”. Quem teria coragem de dizer, uma vez dada a largada (15, 20 minutos corridos de exibição) que não estava enxergando nada? Uma admissão de tal estatura seria virtualmente idêntico a falar “Não estou entendendo nada”.

Após algum tempo, a imagem se torna mais legível; o aspecto VHS dá lugar ao formato digital. Ainda assim, minha internet não perdoa: promove entrecortes e a atenção difusa batalha contra a atenção focada.  Não há ascese ou “sentimento de existência absoluta” possível. Entre interrupções, quedas de rede e de pacto dramatúrgico (porque a rede está sobrecarregada) surge um Omolu errante e não literal – a não ser pela vestimenta de palha da costa, sobre uma encruzilhada branca no linóleo preto. A encruzilhada transnacional por onde circula um elenco nipo-brasileiro-canadense lembra inevitavelmente os limites e fronteiras já acirrados antes da pandemia: o conservadorismo nacionalista e os muros desejosos de imunidade contra os estrangeiros. Há território poroso possível na crise imunitária-humanitária? Que Omolu nos varra das epidemias. 

Minha febre aumenta mais um pouco. Estaria eu ficando mais doente?  Enquanto penso se posso piorar, volto ao Dança doente: e se a doença for aquilo que de inevitável nos atravessa e incorpora? Aquilo para o que não estamos preparados e, de súbito, passa a nos habitar e se alimentar de nós sem que nossos exércitos celulares sejam capazes de impedir? E se a saúde puder ser compreendida fora da chave da imunidade? “Imunidade” e “humanidade” são quase anagramas. Mas este “quase” nos ajuda: imunidade e humanidade não são o mesmo, ufa! “Imunidade” entrou para o léxico militarizado (fala-se em exército imunológico, ataque ao invasor, combate, defesas etc.).  Salvos pelo “quase”, somos levados a pensar sobre o famigerado antropoceno, a derrocada da era geológica de predomínio humano, cuja culminância aparece como uma crise de humanidade. Por falta de vacina ou de convívio, tal crise foi acentuada na pandemia como uma crise de imunidade.

A sensação de incêndio interno só aumenta. A doença promove alterações radicais na experiência temporal: ora os cronômetros deixam de fazer sentido e tudo se dilata indefinidamente, ora tudo se acelera. Perdi um pouco o rumo da obra; ainda estou flutuando com Omolu, senhor do mundo dos mortos, dos contágios, epidemias e seus poderes de cura sobre as pragas; ainda estou junto ao cadáver ressuscitado de que nos fala o butô, os mensageiros do ínfimo e do espectral. A misteriosa febre em mim fala do morto como instância fundamental do vivo e faz o elogio à doença e à capacidade de ser radicalmente afetado pelo outro, pelo corpo estranho que ela representa. Que Omolu nos varra das epidemias.

6.

Omolu, butô e eu como espectadora doente já nos cruzamos antes. Sete anos atrás, no último episódio de doença (pré-covid) em que fiquei acamada, uma amiga querida narrou-me todo o espetáculo Fukushima mon-amour (2012), de Tadashi Endo. Antes de adoecer, eu havia dançado o trabalho Um solo para Omolu num teatro lotado e de corpo aberto. Passados quatro dias do evento, uma bolha na testa; sete dias depois, uma catapora de causar inveja no leprosário me deixou inválida por um mês. Fiquei sem andar, sem falar, sem comer e sem tomar banho sozinha. Estive coberta de feridas dentro e fora do corpo, na superfície e nas mucosas, sob as unhas e dentro dos olhos; sentia dores na pele, nos músculos, nos órgãos. Cheguei a ter episódios de inconsciência e princípio de convulsão. Foi quando soube que catapora podia ser letal na idade adulta. Que Omolu nos varra das epidemias.

Tinha comprado o ingresso para ver o trabalho do Tadashi Endo antes de adoecer e seria  o primeiro espetáculo de butô que eu veria de perto. Um dia após a apresentação, minha amiga, entusiasta do butô e da minha saúde, narraria para mim, por telefone, as cenas do espetáculo todinho. O ex-namorado brutamontes dessa amiga, no mais caricato estilo homem-ogro, homem-tosco (daquele que se acha mais másculo apenas porque malha, é alto e fala grosso e para quem teatro é um programa impossível), não queria ver dança porque era “coisa de viado”. Minha amiga arrastou ele na marra, totalmente contrariado. Vivi para ouvir que o ogro simplesmente chorou que nem criança, largou toda sua saúde nos assentos do teatro. O ogro e eu estávamos ligados pela vitalidade que exala da fragilidade, ambos arrastados para o reino da ressurreição obscura. Ainda tenho detalhes da narração dessa amiga, de cor em minhas memórias. Nunca assisti Fukushima mon amour pelos meus próprios olhos, antes ou depois. No mesmíssimo período de acamação e catapora, um outro amigo me ofereceu trechos de A dançarina doente, de Hijikata Tatsumi, a fim de me mostrar a beleza do bolor. Dentre os pensamentos que me habitavam à época, ficou registrada uma anotação feita já no finzinho do experimento de morte com a catapora: “Se a dançarina doente estiver certa, como Menocchio, o moleiro, também estava a respeito de O queijo e os vermes, não há razão no ditado omnis cellula ex cellula. Nada de uma célula advir de outra preexistente. A vida vem mesmo do bolor, dos vermes, da putrefação. Brindemos, estou viva.”

 

7.

Diz-se que são sete os palmos nos quais um morto deve ser guardado sob a terra. Esse cálculo foi instaurado noutra epidemia, quando a peste bubônica assolou parte da Europa. Os cemitérios alteraram as regras de sepultamento para evitar contaminações, determinando assim que fossem seis pés de profundidade ou sete palmos abaixo do chão. Na pandemia do coronavírus, milhares de famílias perderam a chance de velar e  enterrar os seus mortos; os caixões passaram a ser lacrados e vários cemitérios ficaram superlotados. Nem sete, nem dois: nos lugares onde a crise sanitária acirrou, não há mais palmos suficientes. Dos fantasmas não sabemos, mas seus corpos ficaram em frigoríficos enquanto se ampliavam as “vagas” de sepulcro.

Há sete anos, dancei para Omolu antes do meu encontro com o butô e acabei ficando doente demais para vê-lo.

Há sete meses e meio, havia dois milhões de doentes e mais de 70 mil mortos no país. Com tamanha intensidade de contaminação, as transmissões on-line — portanto espectrais — de eventos passaram a ser mais comuns. Por isso, quando Omolu e o butô se encontraram para dançar no Festival Cenas do Nordeste, eu pude vê-los, mesmo doente e impedida de ir e vir. O chão não dispõe mais de palmos; nas mãos as palmas estão difíceis. Desde então, foram mais de dez milhões de casos registrados de covid. Resisti meses à escrita deste texto e agora, sob os escombros de mais de 250 mil mortos, finalmente vencida pelo dever, volto a escrevê-lo. Com o retorno ao texto, a segunda onda. No mês de março, a expectativa é alcançar a triste marca de três mil mortos por dia no país. Bastou permitir que os fantasmas em mim falassem e já me sinto embolorar mais uma vez. Se metaforizar desgraças fosse meu forte, pela quantidade de “setes” neste texto eu bem que poderia taxá-lo de número funesto. Mas o que sei é que número assombrado mesmo é o 17, com toda a certeza.


Alana Falcão é dançarina, professora, dramaturgista e crítica.


[1] Medicação que suprime o sistema imunológico para que nossas defesas não ataquem o órgão transplantado como um ser estranho.

[2] “Dançarina doente”, p.18. in: Obras completas (Zenshu) citado no Pensar um corpo esgotado, de Kuniichi Uno, p. 54.

[3] Pensar um corpo esgotado – Hijikata Tatsumi

[4] Ankoku butoh.

[5] Conto clássico europeu no qual um imperador  contrata um esperto ourives e encomenda dele  um  tal manto de tecido muito especial. Tal trama só seria visível àqueles virtuosos de coração e índole. O ourives e seu assistente passaram dias no castelo, fingindo fiar o manto, e todos, igualmente, fingiam ver a tecelagem gradual da inexistente peça. No dia em que o rei veste pela primeira vez o traje e comparece diante do reino, um silêncio inicial vai se substituindo por exclamações a respeito da beleza da roupa. Até que uma criança exclama em voz alta: “MAS PAPAI, O REI ESTÁ NU”, e todos então se dão conta do embuste a que foram submetidos.

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