Perfil | Música


Ilustração de Peu Dourado

A história rendeu a nossa única Palma de Ouro em Cannes: um lavrador de uma comunidade rural sete léguas distante de Salvador chega ao Pelourinho carregando uma cruz, promessa que fez a Santa Bárbara caso Nicolau, seu burro, se recuperasse de um problema na pata. Mas a Santa Bárbara da comunidade de Zé do Burro não estava na igreja, e sim no terreiro do Candomblé – era Iansã. Chegando na “Bahia” (assim era conhecida Salvador por quem não morasse no centro da cidade), o padre da Igreja de Santa Bárbara, localizada ao final da escadaria da Rua do Paço, não o deixa entrar com a cruz porque, supostamente, ele não havia feito a promessa para a entidade certa. 

O mote do filme de Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas, se repete desde então, tanto para simpáticos a religiões afro-brasileiras como para artistas. Ao menos é isso o que defende uma das figuras chave da história da música baiana – brasileira, por que não? – Gerônimo. Autor de dois dos clássicos absolutos do axé music – Eu Sou Negão, a música que levou o som dos blocos afro para cima dos trios elétricos e rádios, e É D’Oxum, em parceria com Vevé Calasans, uma verdadeira interpretação da alma soteropolitana, Gerônimo se insere naquele rol de personalidades da Bahia em que obra e criador se fundem, criando histórias míticas sobre a vida prosaica da cidade. Sua figura é, ao mesmo tempo, culta, politizada e debochada, além de sempre muito exigente com a música, sem modéstia: Gerônimo está na linhagem de Xisto Bahia, Dorival Caymmi, Caetano e Gil, ao melhor estilo da cidade d’Oxum – aquela que é doce e vive se olhando no espelho, sem dispensar um tanto de vaidade. 

“Depois do tropicalismo, o grande acontecimento revolucionário dentro da música brasileira é a música nova da Bahia, os blocos afro, com sua beleza rítmica, força da negritude, roupas lindas e o orgulho da raça. Eu acho os compositores de dentro daquele grupo extraordinários na Bahia, e também fora dos blocos afro existem grandes como Gerônimo”, afirma Gal Costa na gravação do programa Ensaio em 1994, antes de entoar a música de despedida, É D’Oxum. Gerônimo não estava dentro dos blocos afro, mas teve papel fundamental para sua difusão pela cidade. Naquele período – meados dos anos 80 – as composições do Muzenza, Olodum, Malê Debalê, Ilê Ayê ainda permaneciam restritas às quadras onde os blocos afro ensaiavam. 

Gerônimo já tocava profissionalmente há mais de 10 anos quando, numa apresentação de uma feira de música para empresários do ramo, ficou bravo com o descaso da plateia. Pediu uma levada de samba-reggae e começou a improvisar o falatório, inspirado num povo indígena que havia encontrado em Roraima, os Macuxi. No refrão, vinha a bomba que estourou no mesmo dia nas rádios: “Eu sou negão, meu coração é a liberdade”. Virou hino dos blocos afro, ainda que surgida no extremo oposto da cidade. 

Ilustração de Peu Dourado

 

A entrada na música

 

Gerônimo Santana é natural de Bom Jesus dos Passos, ilha da Bahia de Todos os Santos, hoje considerada parte do município de Salvador, e tem 67 anos. Começou como compositor em 1970 num show de calouros da TV Itapoan e foi chamado para trabalhar no programa Poder Jovem, apresentado pela jornalista Dometila Garrido. Entre 74 e 76, tocou no trio elétrico de Dodô e Osmar, e foi estudar composição e arranjo na Universidade Federal da Bahia. Não concluiu o curso, mas lançou o primeiro disco, com os dois pés na música popular, em 83. Página Musical saiu pela Polydor e tinha produção de Ricardo Cantaluppi. A direção geral da gravadora era de Roberto Santana, grande produtor da música baiana desde o tropicalismo. Viveu nessa época, por um breve período, no Rio de Janeiro e São Paulo. A migração não deu certo e ele voltou para a Bahia, apesar de ter uma música estourada pelo país: Dentro da Minha Cabeça, que explodiu com A Cor do Som em 83, parceria com Lula Queiroz.

Segundo Bolão, músico que acompanhou toda a trajetória do axé e foi por muitos anos percussionista da banda Cheiro de Amor, três músicas do Página Musical entraram para o repertório da música de festa baiana: Dança das Águas, Nena, Jacira e Dodô e Cigarro Colomy. “Esse disco já mostra uma veia eclética muito grande, na própria forma de compor. A música brasileira era bem diversificada naquela época e muitos artistas gravavam com base no seu gosto e prazer musical, sem se preocupar em se encaixar em algum segmento específico”, diz o músico, ressaltando que o disco passa por xote (Cigarro Colomy), baião (Cabeça D’Água), merengue (Nena, Jacira e Dodô) e afoxé (Dança das Águas).

A descrição de Bolão é interessante para qualificar os discos de Gerônimo: eles vão da sacanagem (como Kirica na Buçaña, Abra a Boca e Feche os Olhos, Pau de Berimbau) à reverência ancestral (Mameto Kalunga, Salve as Folhas). Há, talvez, alguns padrões. Segundo o maestro Alfredo Moura, arranjador e membro de uma das bandas seminais do axé – a Acordes Verdes – o deboche, estilo que ficou bastante popular nos arranjos iniciais do axé, surgiu numa brincadeira de estúdio com o sucesso de Gilberto Gil, Toda Menina Baiana. Luiz Caldas inverteu, na guitarra, os dois acentos iniciais da divisão rítmica de Gil (2 + 3) para uma batida de 3 + 2, que ficou marcada em sucessos como Haja Amor e Nega do Cabelo Duro

Gerônimo latiniza ainda mais essa inversão, complexificando-a com outras claves cubanas – em músicas como Lambada de Delícia, Abafabanca e Abra a Boca e Feche os Olhos. Sua relação de reverência com o mar também é sempre cantada nos álbuns (Pastores do Mar, É do Mar, Agradecer e Abraçar), além da crônica social pelo olhar das classes populares (A Cidade das Pombas, Ao Trabalhador Por Direito, Marinheiro, Marinheiro). Outro elemento característico de suas composições é a crônica da cidade, como em A Cidade das Pombas, recuperando o imaginário de autores como Jorge Amado (a quem inclusive homenageia, em Jubiabá) e Adonias Filho. Em Surpresas Tem o Pelô, por exemplo, conta histórias de duplas como Pedro e Nazário (“dois negros lindos do Calabar”) e Roque e Rufino (“dois feiticeiros de meia-idade”).

 

No meio do axé 

 

De volta a Salvador, passou a trabalhar no estúdio de Wesley Rangel, o caldeirão das gravações do axé, fazendo percussão, vozes, jingles e trilhas de campanhas publicitárias. Veio, em 1986, o álbum Mensageiro da Alegria (Selo Nova República), este uma produção quase “da casa”, pois o parceiro de É D’Oxum, Vevé Calasans, também assinava a produção do álbum, e o próprio Gerônimo, a direção musical. Nesse disco a estilização do afoxé vai se delineando – diz lá Letieres Leite que “Gil criou uma estética de tocar o ijexá contemporaneamente que é só dele. Assim como Gerônimo tem outra estética de tocar o ijexá”. São músicas como Mameto Kalunga (parceria com Silvio Ricarti e Ricardo Amado, gravada no disco com Lazzo Matumbi) e Mensageiro da Alegria; além de sambas de roda como Vem Me Conhecer, e outras com arranjo mais pop, como Olhar e Viver Amor. Começam a aparecer as experimentações timbrísticas – É D’Oxum talvez a mais representativa nesse sentido – que são marca de muitas músicas suas. Naquela época, o estúdio de Wesley Rangel se destacava no Brasil pelas inovações de estúdio que conseguiram deixar mais evidentes nas gravações os sons diferenciados dos tambores. Trabalhar por lá devia ser uma bela escola.

Com o sucesso de É D’Oxum – que saiu numa gravação do MPB4 para a novela Tenda dos Milagres, da Globo, e desde então é regravada por dezenas de artistas em todo o país, Gerônimo passou a lançar um álbum por ano a partir de meados dos 80, todos na WR – por vezes, também aconteciam sessões de estúdio em São Paulo. Vieram Dandá (1987, Continental), Gerônimo (1988, Continental) e Dançarino (1989, EMI-Odeon). 

Em Dandá, Ramiro Musotto – argentino peça-chave para entender a virada da música baiana – entrava para o time de Toni Duarte (irmão de Gerônimo, no baixo e na direção musical, Jorge Brasil (bateria), Alfredo Moura (teclados e arranjos) e Pedrinho Rego (guitarra). Formavam ainda a base percussiva Tony Mola e Tião Oliveira. Era um misto de Acordes Verdes (da qual Tony e Alfredo faziam parte), afoxé e ritmos latinos, que já eram inspiração de Gerônimo e foram incrementados por Ramiro. 

O disco de 87 tem Abafabanca, parceria com Ari Dias que faz uma crítica à ditadura através de um retrato da classe trabalhadora petroleira baiana dos anos 50 e 60 (“Aí o peão virou burguês, até pensou que fosse um rei, cortinas com dinheiro ele fez no seu canzuá / Então veio a revolução, e do petróleo a inflação, e o peão voltou a ser peão”). Lambada de Delícia (parceria com Bego) virou também o anúncio clássico da chegada do carnaval (“Já é carnaval cidade, acorda pra ver”). O imaginário cubano, sempre presente nas composições do baiano, evidentemente não é só musical. É também sonho de igualdade, utopia de superação da Vida que passamos (essa, com Alfredo Moura, Marcelo Azevedo e Melodia Costa).  

Com Dandá, o disco Gerônimo, de 88, talvez sejam os maiores marcos da estética do baiano. Feito todo sob bases programadas por Ramiro Musotto, o álbum tem uma estrutura orquestral – antecipa, ainda que com menos jazz, elementos da Orquestra Rumpilezz, por exemplo – e tem entre suas pérolas uma composição com Dito e Batatinha, Papel de Arroz, além de Salve as Folhas, que viraria um dos grandes sucessos de Maria Bethânia.   

Apesar de ter estudado na poderosa faculdade de música da UFBA – na qual, costuma-se dizer, havia na docência mais europeus do que baianos – Gerônimo se recusa a fazer arranjos escritos. “Ele faz arranjos oralmente, não usa partitura. É solfejando que vai dizendo o que cada instrumento tem que fazer. E são arranjos fantásticos”, lembra Bolão. 

 

Duas cidades, Gerônimo no meio

 

Em 2003, o músico iniciou um périplo que voltava a recuperar lendas, causos e o imaginário artístico da Bahia. Na escadaria da Igreja de Santa Bárbara, todas as terças-feiras, Gerônimo começou a tocar gratuitamente para o público, que ficava sentado nos degraus. Sem patrocínio ou apoio estatal, batizou a iniciativa de “O Pagador de Promessas”: “De cima do morro eu vejo as duas cidades, uma preta, uma branca, eu no meio, gingando meu corpo pela liberdade”, canta em Seu Pagador, música inspirada tanto na sua condição como na de Zé do Burro. 

O maestro Ubiratan Marques, fundador da Orquestra Afrosinfônica e grande amigo de “Gel”, como o chama, lembra de um dia em que estava comandando os teclados no show da escadaria e Caetano Veloso faria uma participação. “Ele chegou para mim: ‘Puxa, essas células rítmicas que ele usa são tão ricas, quem é que arranja essas coisas?’. Respondi que vinha tudo da cabeça de Gerônimo. Ele ficou muito impressionado, me parece que entendeu melhor tudo ali”.  Bira conta que aprendeu muito dos ritmos no piano com “Gel”: “Ele tem muita influência da música afro-latina, panamenha, de Cuba. Eu tive que aprender muitos tumbaos [claves rítmicas do piano para se tocar salsas, merengues e outros estilos afro-latinos], que são difíceis pra caramba, para tocar com Gerônimo!”, ri. 

Como no filme de Anselmo Duarte, em que delegado, cafetão e padre se aproveitam da situação do incompreendido Zé do Burro – que queria apenas saldar sua dívida com a santa – para conquistar capital político, a pagação de promessas de Gerônimo é também metáfora dos diversos percalços da sua carreira. Em 1990, ainda trabalhando nos estúdios de Wesley Rangel, compôs com Vevé Calasans um dos grandes jingles políticos da história do Brasil: ACM, meu amor, música que foi usada até a morte do coronel. O combinado, após receberem um bom dinheiro pela composição, era de que só voltariam a cobrar direitos autorais quando “o véio” morresse. Dito e feito: já no velório, entrou com uma ação para processar a TV Bahia, afiliada da Globo da qual a família Magalhães é dona, pelo uso da música. Ele e a viúva de Vevé, que morreu em 2012, levaram a parada, mas Gerônimo passou muito tempo escanteado pela emissora. Ele também entrou com processos contra a TV Bandeirantes e outros grandes grupos de mídia. Segundo Bira Marques, essa condição contribuiu para o que chama de boicote à carreira do amigo. 

Mas os sucessos falam mais alto, e ainda caberia citar alguns outros hits como Toté de Maiangá e Menino do Pelô, ambas com Saul Barbosa, cantadas por Margareth Menezes e Daniela Mercury respectivamente; além de Ralé, da Timbalada; Até Shangri-La, gravada por Pepeu Gomes, e Jesus É Palestino, com Ivete Sangalo. 

Se do lado dos empresários há muitas reticências em relação a Gerônimo, seus colegas, contemporâneos ou não, o celebram. Desde 1998, a parceria com Bira Marques frutificou em pérolas ainda pouco exploradas como o disco Orixás, em que suas composições ganharam novas camadas com a Orquestra Jazz Sinfônica, de São Paulo, naquela época regida por Bira. “Eu ainda estava começando a escrever arranjos para orquestra, tínhamos que entregar tudo em um mês. Ele começava a cantar o que a percussão ia fazer, o baixo, os violinos, a tuba, e eu tava ali meio de copista. É um concerto de mais de uma hora, um trabalho de altíssimo nível”, diz. Gerônimo também participa do primeiro disco da BaianaSystem, de 2009, em Da Calçada Pro Lobato; de Festa Bárbara no disco Santo Antônio e Outros Cantos, de J. Velloso; e em Sombra da Lua no disco de 2018 de Illy. No ano passado, Mameto Kalunga ganhou versão orquestral, com Gerônimo e Lazzo Matumbi, no disco da Afrosinfônica. Apesar da guitarra baiana ser a estrela da festa em Da Calçada Pro Lobato, vale prestar atenção nas linhas do baixo de Marcelo Seco, o Seko Bass, baixista do grupo que é primo de Gerônimo, tocou com ele por muitos anos e afirma ter tido com ele a sua primeira escola musical. 

Uma unanimidade entre artistas é o fato de que a música de “Gel” não envelhece. Se algum dia voltarmos aos shows suspensos pela pandemia do novo coronavírus, nada mais justo do que reassistir ao “pagador de promessas” e toda a força de suas canções – que, se já são boas gravadas, ao vivo são imbatíveis. 


Paula Carvalho é jornalista e doutoranda em Sociologia pela USP.

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