Ensaio | Visuais


Colagem de Ema Ribeiro

A ideia inicial seria traçar uma espécie de panorama ao redor da fotografia contemporânea. Ao buscar pela definição da palavra “panorama”, vi que ela está associada a uma visão desimpedida, que supera obstáculos, e me dei conta de que não poderia traçar um panorama, pois não saberia falar de fotografias sem pensar sobre obstáculos. Vejo as imagens como um território acidentado, sinuoso como o movimento de uma serpente. Ao pensar nelas, encaro mais incertezas do que respostas. Então, mais do que um panorama, o que tentarei trazer aqui é essa dança, esse labirinto que começa pelo olhar e que alcança todo o nosso corpo.

Em 2020, assim como muitas outras pessoas, me vi isolada dentro de casa como uma forma de me proteger e proteger os demais contra o Coronavírus. 2020 me deu, além de muita tristeza, tempo para pensar. Nesse período, me encontrei com as palavras de algumas pessoas que nutriram de mais espaço o meu campo simbólico e afetivo; uma espécie de alargamento de mundo ao qual agora é impossível voltar atrás. Penso que algumas pessoas e suas reflexões amalgamam esse poder: mudam a nossa estrutura interna de tal maneira que o olhar para a vida sofre uma transição irremediável e, na maioria das vezes, necessária. Considero simbólico o fato de Ailton Krenak, professor doutor, pensador e ativista indígena ter sido a última pessoa que vi em uma conferência, em janeiro de 2020, em Salvador. Nesse encontro, Krenak nos falou da importância do “afeto expandido”, em que é crucial materializar nossas ações no mundo e, sobretudo, compartilhá-las. É preciso que haja movência, e que nesses deslocamentos a gente possa conduzir não somente nossos corpos e ideias mas também os sonhos de outras pessoas. Sonhar em coletivo, “provocar vitalidades” em nossa comunidade.

Retornando para os campos que me entusiasmam, o da imagem e o da palavra, me provoquei a pensar quais imagens e histórias poderiam dar conta dessa expansão de mundo; quais realizações podem nos fazer dar passos à frente e oferecer mais ferramentas para uma comunicação coletiva, transdisciplinar e afetiva. Tenho o hábito de pesquisar sobre artistas e suas produções, principalmente quando sinto que não tenho mais nada a falar. E 2020 foi um ano de silêncios. No entanto, esse mesmo ano me trouxe estas imagens que compartilho aqui, neste texto. Estas artistas e seus projetos contribuíram para que eu pudesse encarar as imagens como incisões no sistema; como um furo no tempo, uma passagem no céu – para que possamos ver o que há do outro lado.

 

Mergulhando ao redor de um iceberg

 

Gosto de pensar que trabalhar com imagens é como mergulhar ao redor de um iceberg. Não me recordo o momento exato em que passei a desconfiar das imagens, mas há muito anos vivencio uma relação de contínuo questionamento em relação a elas. Fotografias se assemelham a icebergs; há uma enorme parte oculta que somente alcançamos através de um mergulho profundo no que não conhecemos. É preciso questionar nelas o visível, porque ele também sustenta uma série de conteúdos, significados e objetivos que muitas vezes não são decifrados à primeira vista. A fotografia carrega, simbolicamente, o ideal de plasmar a realidade, de produzir um resultado mimético, fruto da elação entre o olho humano e o mundo. No entanto, a fotografia mantém um status de permanente ambiguidade entre o real e o ficcional. Com a concepção de “verdade” em tensão, a fotografia se mostra como uma espécie de documento dividido, uma “ficção que se apresenta como verdadeira”, como escreveu o pesquisador e fotógrafo catalão Joan Fontcuberta. Por isso, é fundamental que adotemos uma postura de desconfiança crítica em relação às imagens, investigando seus usos, suas veiculações e seus propósitos. Apesar de ficcional, as imagens possuem um lugar relevante na estruturação de modos de pensar, na disseminação de ideias e na formulação de políticas de controle sociais. Nenhuma imagem em circulação é inocente; elas transportam uma constelação de significados que servem a usos bem definidos. Por detrás da camada do visível, residem sentidos ideológicos e culturais que afetam diretamente nossa estrutura mental e o que definimos como real.

O primeiro trabalho que trago para este fluxo de ideias é o projeto intitulado Anastácia, da artista baiana Ema Ribeiro, uma mulher preta que transita entre diferentes linguagens das Artes Visuais. Influenciada pelo Afrofuturismo, Ema se apropriou de um documento da “História oficial” do Brasil, a imagem da mulher negra escravizada Anastácia, pintada em 1817, pelo francês Jacques Arago. Nessa representação, Anastácia leva um grilhão preso ao pescoço e uma máscara de Flandres colocada à frente da boca; um instrumento feito a partir de metais resistentes e que objetivava o controle e a punição de pessoas escravizadas. O pouco que sabemos sobre a vida de Anástacia nos informa que ela foi obrigada a usar a máscara por haver resistido aos abusos e violências sexuais por parte de um homem branco, o que a tornou um símbolo de resistência e de luta, em especial para pessoas negras. Apesar disso, a imagem que ficou como “verdade”, como ícone e como memória foi o desenho de uma mulher negra escravizada, amordaçada e silenciada. Foi a partir do encontro com essa imagem, na Igreja Rosário dos Pretos em Salvador, que Ema sentiu o peso desse silenciamento e resolveu intervir, rompendo com a perpetuação daquela forma violenta de representação. Em um exercício de “retradução”, Ema realizou uma série de intervenções na figura original através de colagens, linguagem que, por sua própria natureza, facilita a intersecção de tempos e de mundos diversos, retirando a máscara de Flandres de Anastácia e lhe devolvendo o direito ao rosto. Como uma viagem ao tempo, a artista libertou Anastácia da iconografia colonial e eurocêntrica que a inscreveu na História, reparando histórica e afetivamente a existência dessa mulher negra, aqui apresentada como uma mulher livre. Nosso olhar agora é confrontado pelos olhos e pelo discreto sorriso de Anastácia, que lhe confere o direito a uma humanidade enigmática. Essa operação de modo nenhum mascara o curso histórico; ela nos reforça a urgência em intervirmos criticamente no mundo das imagens e transformá-lo. bell hooks, mulher negra, professora, ativista, artista e teórica feminista estadunidense, em seu livro Olhares negros – raça e representação, fala da existência de uma conexão direta entre representação visual e dominação e da necessidade de que nos interroguemos, diariamente, sobre representação, raça e gênero nas imagens que produzimos e consumimos, se quisermos ser partícipes de um processo de emancipação colonial. É preciso abraçar um campo de imagens que, a partir de uma enorme força narrativa, possam contradizer representações odiosas de algumas existências, em especial, imagens que reforcem o ódio contra a negritude. “A descolonização como um processo político é sempre uma luta para nos definir internamente, e que vai além do ato de resistência à dominação, estamos sempre no processo de recordar o passado, mesmo enquanto criamos novas formas de imaginar e construir o futuro.”, nos diz hooks. O trabalho de Ema se afina com o que a intelectual diz: “eu não vou só olhar. Eu quero que meu olhar mude a realidade”. Ao interferir materialmente no curso imagético de um retrato forjado e imortalizado à base da violência colonial, Ema alarga o mundo e realiza uma reparação fundante, reinscrevendo a imagem de Anastácia em um novo lugar para sua existência visual. Ao retirar a máscara, Ema lhe devolve o direito à identidade; a ter um rosto, a olhar. A garantia de poder falar. Diante do enorme desafio que é adentrar no universo artístico de outra pessoa, perguntei a cada artista que trago aqui de que forma elas acreditam que as imagens podem “alargar” o mundo. Ema me respondeu o seguinte: “a mesma potencialidade que a imagem teve e tem de construir, ela tem para romper”. Imagens que nos estilhacem e nos conduzam a um refazimento, em um outro lugar, com uma visão que chegue para além das fronteiras.

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Série Anastácia - Ema Ribeiro
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Um álbum de família que seja nosso

 

Quem tem direito a uma imagem? Quem pode ter memória? Apesar de ser uma invenção nascida no século XIX, símbolo da Era Moderna, durante muito tempo um ínfimo número de pessoas puderam ter acesso à fotografia e ao direito de ser imagem e memória. A Fotografia sempre foi onerosa, elitizada e restrita, circulando principalmente entre pessoas brancas e abastadas. Por esse motivo, em sua grande maioria, os fotógrafos eram homens brancos, das classes altas, que podiam sustentar um ofício tão custoso em uma sociedade capitalista baseada na supremacia branca. Os álbuns de família são fruto dessa estrutura social, que delimitou quem poderia ter acesso à memoria, à recordação e ao exercício da subjetividade através das imagens. A um enorme contingente de pessoas, principalmente pessoas racializadas, excluídas do capital e fora dos padrões da heteronormatividade, foram negadas algumas das potências mais bonitas que uma fotografia é capaz de suscitar: produzir afeto e existência. Ainda hoje, muitas pessoas não possuem registros de seus familiares mais próximos. Por isso, volto a perguntar: quem tem direito a uma fotografia?

Os álbuns são arquivos que fundamentam o íntimo e o privado, normalmente com circulação reduzida a um grupo definido por vínculos de afeto e confiança muitas vezes organizados por pessoas que performam um mesmo grupo familiar. Os arquivos institucionais, por outro lado, são comumente formados por entidades ligadas ao poder público e têm como objetivo estruturante organizar e salvaguardar documentos que se referem à oficialidade histórica, ligados a instituições e pessoas públicas. Os arquivos, quando públicos, servem de memória e objeto de pesquisa a um número expressivo de pessoas e, como todo conjunto de imagens e documentos, tecem narrativas e instituem convencimentos ao redor de uma certa visão de mundo. Os álbuns de família, assim como os arquivos se destinam a resultados semelhantes: produzir memória e certificar presenças que possam superar o decurso do tempo.

É importante perceber que, para além de uma reunião de objetos que organizam uma devida história num determinado espaço e tempo, os arquivos e os álbuns possuem o poder de ativar experiências passadas no presente e através desses cruzamentos, que não necessariamente refletem o passado tal qual ele aconteceu, dão espaço à fabulação de um futuro outro; um futuro que escorra pelas margens normativas da História. Dois arquivos em especial, e que trago aqui como referência, nos ajudam a pensar de que forma os acervos podem implantar outra possibilidade de memória, uma memória que não seja construída a partir da violência e do silenciamento. O Archivo de la Memoria Trans Argentina, que nas palavras de Maria Belén Correa, sua fundadora, é um espaço para “a proteção, construção e reinvidicação da memória trans através de fotos, vídeos, recortes de jornais, revistas e dos relatos de nós mesmas, as sobreviventes”, foi iniciado em 2012, a partir de uma comunidade no Facebook, com o objetivo de reunir imagens e memórias das sobrevivente, abarcando um período que vai dos anos 70 ao final dos anos 90, quando muitas mulheres trans e travestis argentinas recorreram ao exílio para sobreviver. O arquivo, que reúne cerca de 10 mil imagens, foi organizado em um livro pela Editora Chaco (AR) e está criando outros núcleos ao redor de toda Argentina. O próximo passo, segundo me contou Cecília Estalles, fotógrafa e uma das organizadoras do arquivo, é começar o Archivo de las masculinidades. Ao realizar-se enquanto arquivo, tal conjunto expansivo de imagens passa a ser um espaço que constrói uma memória familiar pública, em que recordações e narrativas são reunidas, tal qual um álbum de família. Segundo Paul B. Preciado, um filósofo e escritor feminista transgênero (2011), o conceito de gênero é antes de tudo uma noção sexopolítica, na qual o corpo é experiência e potência. O corpo não binário, fora do território da heterossexualidade, o corpo bicha, sapatão, queer, agênero, trans, cria identidades que resistem à normalização e opera como força política. Então, o que vemos nesse arquivo é uma dinâmica que articula não só resistência e sobrevivência, mas também a vida em seu fluxo contínuo, sendo preenchida por coisas cotidianas e banais que tornam a existência um lugar repleto de significados. Observamos imagens de mulheres celebrando, mulheres comemorando aniversários, grupos de amigas em viagens, fotos de pessoas rindo, de pessoas chorando, de pessoas que já se foram. Imagens muito semelhantes às que muitas de nós orgulhosamente ostentamos em porta-retratos e álbuns em nossas casas. Levado da esfera íntima para a pública, esse arquivo se soma à enorme luta pela existência e garantia de direitos às pessoas trans. Nos ajuda, ainda, a desconstruir o protagonismo narrativo dos documentos e referências que julgamos como “oficiais, de forma [que] possamos desestabilizar as iconografias e referências visuais vigentes. O arquivo como resultado de uma construção que intersecciona o privado e o público e pleiteia, junto à oficialidade institucional, o poder de organizar imagem e memória. Um espaço onde o afeto seja instituído como uma categoria relevante para a formação de acervos que disputam lugar com relatos que estigmatizam certas existências. Atualmente, algumas fotografias do arquivo encontram-se em exibição na mostra Madalena Schwartz: As Metamorfoses – Travestis e transformistas na SP dos anos 70, no Instituto Moreira Salles, com imagens que revisitam parte da obra de Schwartz, incluindo ainda representações fotográficas das culturas transformistas e travestis em diferentes países da América do Sul.

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Foto do Archivo de la Memoria Trans Argentina
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Reivindicando o afeto aqui como uma episteme importante, me lembro que, certa vez, numa conversa com a artista visual cearense Marília Oliveira, uma mulher sapatão, ela reforçou a relevância dessa episteme para a construção da existência material e simbólica de mulheres lésbicas, em detrimento de discursos que só trouxessem esses corpos amarrados à ideia de violência. Um Livro sobre o Amor Sapatão, trabalho mais recente da artista e que faz parte da construção do Museu do Amor Sapatão, interrelaciona questões de gênero, memória e autobiografia, temas recorrentes dentro de sua pesquisa, tecendo uma delicada trama ao redor do que ela chama de “memória coletiva sapatão”. Marília compreende o arquivo como “um espaço de disputa; como direito à memória e como espaço de ressignificação. Arquivo é agência que deve ser tomada para corpos e identidades dissidentes”, conforme me relatou via e-mail. No livro, encontramos imagens que pertencem a Marília e a outras mulheres convidadas por ela para compor a narrativa; um conjunto que, entre imagens e textos, inaugura um território híbrido que conjuga afeto, memória e reparação política. São fragmentos visuais de diferentes histórias de amor que celebram o afeto, a intimidade e as miudezas do cotidiano de casais lésbicos, que costumam experimentar violências tanto na esfera privada quanto pública ao assumirem o amor existente entre elas.  Fotografias analógicas, polaroides, imagens que remetem à estética da fotografia “amadora”; e que aqui assumem o stricto sensu da palavra: são imagens feitas por quem ama; por quem quer sustentar ao infinito a existência da pessoa amada. No trabalho de Marília, o amor entre mulheres ganha o direito às páginas principais de um álbum de família, que se torna público ao assumir o formato de um fotolivro. Através destes projetos podemos pensar de que modo as imagens podem se somar na reformulação de uma consciência coletiva que verse criticamente sobre as complexidades dos discursos e da realidade.

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Foto de Marília Oliveira - Um Livro sobre o Amor Sapatão
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Ouroboros

 

A fotografia pode ser destinada a diferentes propósitos: documentar, fabricar memórias, presentificar existências, catalogar, classificar, criminalizar, diminuir distâncias, produzir conhecimento e testemunho. Susan Sontag escreveu no seu livro Sobre Fotografia que “fotografar é atribuir importância”. Fotografamos aquilo que julgamos digno do nosso olhar; aquilo que queremos atribuir relevância ad infinitum. Ou, ainda, me arrisco a dizer, fotografamos porque nos julgamos importantes. Sabemos que fotografar também pode ser uma forma de dominação: sujeitar através do olho, do enquadramento, por meio de usos e narrativas nas quais as imagens serão inseridas. A História da Fotografia é uma enorme confrontação entre a fabulação do real e a estética do controle. Penso nas milhares de pessoas que, transformadas em iconografia, não puderam decidir se gostariam de ser fotografadas. Pesquisar sobre fotografias é se confrontar, diariamente, com uma série de tentativas de colonização de subjetividades através do olhar do outro. Por isso, considero os autorretratos um gesto insurgente e disruptivo no que diz respeito à forma como queremos ser vistas. Quando assumo simultaneamente o lugar de quem fotografa e de quem é fotografada, abre-se uma enorme possibilidade: sou responsável pela construção do que será visto na imagem. Sou o começo e o devir do que mostro – imagino a mim mesma; documento o meu corpo e destruo a partir de mim qualquer expectativa de encarceramento a partir do olhar de outrem.

Sallisa Rosa é uma artista de Goiânia que vive no Rio de Janeiro, cujo corpo de pesquisa se dissolve entre ficção, identidade e experiência, através de fotografias, vídeos, instalações e ações participativas. Os autorretratos que fazem parte da série Identidade é ficção colaboram para nos situar diante do indecifrável que é Sallisa (e que somos todas/os nós); que de maneira vigorosa nos confronta com uma pergunta: quem é você que me vê? Porque, afinal de contas, o que vemos em uma pessoa diz muito mais sobre nós do que sobre o que vemos. É o nosso olhar e o que deriva dele que constrói o que chamamos de realidade.  Sallisa, em suas próprias palavras, se identifica com a “confusão”; um trânsito entre as raízes da identidade e a fluidez do caos que, assim como a água, transborda para fora dos rótulos e caixas que normalmente são atribuídos pelo outro e que tentam conter certa expectativa identitária em relação à sua imagem. Sallisa me contou que possui poucos registros e informações sobre a sua família e que vem empreendendo uma espécie de “caminho de retomada” para entender a sua própria história. “A obra de arte sou eu”, me escreve ela, convocando a sua jornada no mundo como substância para seus trabalhos.  Enquanto criadora, Sallisa Rosa constrói ao redor de si uma série de operações visuais que transitam entre a ironia e a confrontação da ideia do exotismo visual que a sua imagem suscita dentro da iconografia colonial branca. Sua identidade é mutante, é urbana e ancestral; é um movimento que nos leva até ela e que, invariavelmente, nos devolve a nós mesmas(os). Ao ver esse trabalho, penso nas incontáveis vezes em que me contentei com o que via nas imagens; como se nelas houvesse tudo que há para ser visto em uma pessoa. Identidade é ficção me relembra que as imagens são como Ouroboros, a serpente que engole a si mesma a partir da cauda e que, periodicamente, se refaz. Ordem e desordem caminham juntas, assim como a pretensão à identidade e sua completa mutação. Ouroboros incita, talvez, a um exercício reflexivo que todas(os) nós deveríamos enfrentar enquanto operamos no mundo das visualidades: voltar a si mesma(o). O que sei de mim a partir do que vejo? O que em mim é confrontado quando avalio o outro representado? Sontag escreveu, ainda, que “novas fotografias mudam a nossa visão das fotografias do passado”, e isso me leva a pensar que disputar os espaços de representação é fundamental para desestabilizar a normatividade do olho que produz imagens. Quando testemunhamos Sallisa performando o seu corpo no mundo, observamos como as imagens podem reelaborar a nossa passagem por esses territórios; retirando de nós qualquer tentativa de definição que parta de outra pessoa. Experimentar a imagem como forma de autoconhecimento – para quem fotografa e para quem vê.

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Fotografia da série Identidade é ficção - Sallisa Rosa
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Para entender uma fotografia, observe um rio

 

No final do ano passado ganhei um livro-oráculo organizado por Mãe Stella de Oxóssi, uma importante Iyalorixá que por anos conduziu o Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. É um “livrinho” contendo provérbios yorubá e brasileiros, com o propósito de nos ajudar em momentos de dúvidas, confusão e indecisão. Ela nos orienta a abrir o livro de forma aleatória, recebendo assim a orientação de que precisamos. Acho bem interessante como, muitas vezes ao abri-lo, me encontro com as mesmas páginas e me sinto diante de um enorme mistério: o que eu ainda não compreendi? Esse livro funciona como um fluxo; é aleatório, é não-linear e entende o nosso lugar de multivalência no mundo. Me vejo recuperando ainda uma parábola bastante conhecida de Heráclito, filósofo pré-socrático, na qual diz que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”; rio e pessoa mudam e nenhum mergulho será jamais igual ao outro. Nessa perspectiva de mundo em dialética, tudo flui e nada permanece. Acredito que algo semelhante ocorre quando paramos para observar imagens – as imagens como um imenso e profundo rio, que nos afeta e que é afetado por nós. Produzo afeto, logo consigo operar mudanças no mundo. Isso pode tornar possível uma outra compreensão dos múltiplos ecossistemas que se cruzam ao nosso redor. E o que seriam as imagens, senão um enorme mistério que nos implica em transformação? Fotografar pode ensejar uma tentativa de perpetuar o que é volátil. Mas sera que é possível sustentar a mesma realidade que vemos em uma imagem, se mudamos o tempo todo?

“Como hoje estava, amanhã não será o mesmo”, interpretado por Mãe Stella como “a impermanência é uma lei do planeta Terra. Tudo passa”.  Os trabalhos aqui apresentados circulam, giram, se entrecruzam; ora nos dando as mãos, ora nos empurrando a repensar nossa passagem neste planeta, para que possamos nos aproximar a uma dimensão mais profunda e justa das experiências que produzimos. Krenak fala que “quando tudo está entrando em parafuso, você tem que ter alguém pra chamar”. Ele recorre ao poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Eu, hoje, recorro a essas imagens.


Mariana David é fotógrafa e se dilui entre pesquisa, curadoria e criação em imagens. Atualmente, finaliza o mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA Publicou três fotolivros: “Caminho”(2015), “Açude Sonâmbulo”(2017) e Dünya (2020), além de ser editora da Umbu Revista de Fotografia Contemporânea Latino-americana (2016).


Livros:

A vida não é útil – Ailton Krenak

Ideias para adiar o fim do mundo – Ailton Krenak

Olhares negros – raça e representação – bell hooks

Provérbios/Òwe (Brasil/ África) – Mãe Stella de Oxóssi

Sobre Fotografia – Susan Sontag

El beso de Judas – Joan Fontcuberta

Multidões Queer: notas para uma política dos anormais – Paul B. Preciado

 

Artistas

Archivo de la Memoria Trans Argentina – https://archivotrans.com.ar/ / @archivotrans

Ema Ribeiro – https://emaribeirro.myportfolio.com/inicio   / @emaribeirro

Marília Oliveira – https://mariliaoliveira.cargo.site/ / @mariliaoliveira0

Sallisa Rosa – @sallisarosa

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.