Ensaio | Audiovisual


Detalhe da pintura de Amine Barbuda

Em Vidas Amargas (East of Eden, 1955), de Elia Kazan, Cal Trask (James Dean) se esforça para agradar seu pai (Raymond Massey). Há um ciúme mortal entre Cal e seu irmão, Aron (Richard Cavalo).

Visando conquistar o pai, que claramente pende para o lado de Aron, Cal se revela um capitalista de primeira. Ele empreende em meio à I Guerra Mundial. Aproveita as oportunidades e ganha muito dinheiro. Orgulhoso, revela ao pai sua estratégia visionária. A família ficou rica, conta Cal. Para a surpresa do jovem ambicioso, seu pai o repreende, e mais que isso: ordena que ele devolva o dinheiro ganho às custas do sofrimento alheio.

Em 2020, durante a pandemia, a sociedade se esfacelou, mas os grandes capitalistas não se fizeram de rogados. Ganhar dinheiro não foi um problema para os mais ricos, que se tornaram ainda mais e mais ricos. As Big Techs estão entre os gigantes que se aproveitaram da oportunidade”. Uns ganham e os outros, a imensa maioria, perdem.

O cinema, em seu modelo de exibição, vem sendo particularmente afetado. Os gigantes do streaming, que já se mostravam vorazes, avançam com muito poder de fogo numa luta cada vez mais desigual. Toda a cadeia de exibição está sendo desmontada.

Netflix e Amazon, entre outros, apelam para a “liberdade de mercado”, oferecendo produtos a preços baixos e exercendo pleno domínio em boa parte do mundo. Hoje, os gigantes do streaming só não entraram onde prevalecem governos autoritários. Tais empresas possuem um poder jamais experimentado. Nem mesmo as de petróleo, que foram quebradas em seus  monopólios pelo governo dos EUA em 1911, passaram por algo parecido. O poder político norte-americano percebeu que o domínio exercido era  prejudicial a todos, inclusive ao mercado. Talvez isso aconteça novamente nos próximos meses com algumas das empresas que integram a chamada Nova Economia”, mas o estrago já é gigantesco.

Neste novo cenário, a sociedade como um todo tem perdas significativas. Milhares de postos de trabalho simplesmente desapareceram. Por outro lado, a sala de exibição sempre funcionou como vetor de desenvolvimento de regiões inteiras, promovendo encontros em torno da cultura e do pensamento. Eu acho difícil que o cinema, como espaço de exibição, simplesmente desapareça, mas uma forte redução no número de salas está num horizonte próximo. Há um esforço político no sentido de diminuir a importância da sala de cinema. Vamos ver no que tudo isso vai dar.

Os festivais de cinema, alicerçados no encontro e nas trocas pessoais, têm buscado algum equilíbrio dentro do limbo que representa o mundo virtual. Antes da pandemia, havia um modelo que se revelava imperfeito, mas que estava em funcionamento pleno.

"Dança das cadeiras" Pintura de Amine Barbuda - Nanquim e óleo sobre linho 15x21cm

Até 2020, os grandes festivais pelo mundo contavam com muito dinheiro e davam as cartas. A maioria desses grandes festivais investia no encontro entre profissionais de cinema, que levavam a nova produção apresentada mundo afora. Críticos e jornalistas ganharam status diferenciados. O mercado de filmes, que funcionava com uma estrutura à parte, cresceu assustadoramente nas últimas duas décadas. Ganhou vida própria e dimensões ampliadas graças à globalização e às novas janelas. Muitos profissionais de cinema passaram a viajar para os mercados e não mais aos festivais propriamente ditos. Boa parte dos acordos de coprodução e comercialização nasceram nesses encontros, dentro dos grandes eventos.

O acesso aos festivais e aos mercados, contudo, nunca foi exatamente simples ou mesmo barato, sobretudo para nós, dos países em desenvolvimento/pobres.

Certa vez eu recebi um convite para ir ao Festival de Toronto, no Canadá, sem dúvida um dos festivais que mais cresceram nos últimos anos. Toronto passou a pautar o Oscar, por exemplo. Como convidado, eu teria, gratuitamente, passagem e credencial. Já era um adianto, mas eu teria que bancar o resto das despesas. A hospedagem se revelou exorbitante. Após incessante busca, encontrei um quarto via Airbnb, muito distante do local do festival. Ok, valia o esforço. O prazo para tirar o visto era exíguo e acabou que não saiu a tempo. Fiquei a ver navios, frustrado.

Em outra oportunidade, fui convidado para o Sundance, mítico festival de cinema dos EUA. Festival que nasceu sob o signo da independência da grande indústria do cinema, mas que já foi em boa parte absorvido. Mais uma vez, eu teria passagem de ida e volta, além de credencial. Reitero que já é bastante coisa! Do aeroporto mais próximo até Park City, onde ocorre o festival, se faz necessário mais de uma hora de deslocamento. Alojamento se revelou impossível para a nossa combalida moeda. Procurei amigos que compareceriam ao festival, mas eles eram poucos e já estavam organizados. Um deles iria dormir na cozinha, embaixo da pia de um pequeno apartamento. Na época do festival, imperam as baixas temperaturas. Salas pequenas nem sempre dão conta do número de espectadores. Acabei por desistir.

Já estive no Festival de Cannes algumas vezes. Lá, também, tudo é muito caro. Já dividi apartamento pequeno com outros cinco marmanjos: críticos, jornalistas, curadores e cineastas. Não tinha nenhum jovenzinho, não. Tive bons encontros enquanto esperava horas nas filas para ver os filmes. Certa vez, marquei dois meetings enquanto esperava para ver um longa de Hang Sang-Soo. Fiquei quase três horas aguardando por uma sessão de uma hora e meia. Em outra oportunidade, peguei uma chuva torrencial na fila de espera de uma estreia aguardada dos Irmãos Dardenne. Em um terceiro momento, fui auxiliado por um segurança português, que se apiedou de nós, brasileiros, por estarmos horas na fila para ver um filme de Jim Jarmusch. Subimos por escadas alternativas, passando por verdadeiros labirintos do Palais, e vimos o filme do alto do mítico prédio. Os seguranças, em Cannes, representam um poder à parte.

Dos grandes festivais europeus a que eu já fui, o de Berlim foi sempre o de que mais gostei. Festival mais acessível, no qual a população local comparece de fato. São centenas de milhares de espectadores em dezenas de sessões e salas de cinema espalhadas pela cidade. As temperaturas sempre se revelam muito baixas. Já peguei 20 graus negativos, em Berlim, por dez dias seguidos. Houve um ano em que o sistema para retiradas de credenciais estava fora do ar. Centenas de convidados e jornalistas esperaram por horas do lado de fora em meio à tempestade de neve. A imagem pode até ser bonita, mas o frio era aterrador. Como resultado, boa parte de críticos passou o Festival de Berlim na cama, com febre. Não sei como, mas me safei dessa e aproveitei bem o festival.

Com a pandemia, as coisas mudaram. Em janeiro, poucas semanas atrás, recebi meu login e senha para “comparecer” ao Festival de Sundance. Posso ver tudo sem pegar um longo voo, sem pagar preços exorbitantes pelo aluguel de um quarto minúsculo, sem ter de ficar exposto às baixas temperaturas do local, nem enfrentar longas filas.

Os grandes festivais de cinema descobriram o poder do streaming e um real alcance global. Possuem marca, são atrativos, sobretudo por serem proibitivos à imensa maioria. Sundance pretende conquistar o grande público dos EUA, este ano.

Vale dizer que, via de regra, apenas os residentes nos EUA terão acesso aos filmes do Sundance. O mesmo com os demais festivais: Roterdã, que acontece agora, tem seus filmes disponíveis apenas para o público em território holandês. A não ser que você esteja cadastrado como jornalista, crítico, curador de festival, comprador de títulos…

O mercado de Sundance será inteiramente virtual. O mesmo em Berlim, Roterdã, Cannes e demais. A indústria se reagrupa e toca o barco! O resultado disso? É cedo para medir resultados. Quase ninguém se arrisca a dizer como os festivais se portarão ao final desta pandemia, que parece já estar à vista nos países europeus.

De todo jeito, as perdas que já temos são inúmeras, claro. O cinema sempre foi pautado pelo aperto de mão e olho no olho. Há um real network que conduz as negociações. O cinema é movido pela tensão do encontro. Sem isso, muita coisa deixa de acontecer. Há, ainda, perda significativa para a economia das cidades que abrigam os festivais. Muita gente perde o trabalho, a renda. Esses eventos movimentam bilhões e bilhões.

Não se sabe, também, em que medida o grande público de fato será seduzido pelos grandes festivais em modo virtual. A internet se revela um limbo tenebroso até mesmo para as marcas mais conhecidas. Conheço muita gente que sempre quis estar em Sundance, mas não necessariamente se sente empolgado para conferir os filmes on-line.

Eu mesmo, confesso! Ainda não despertei para o mundo virtual. Desde o início da pandemia, assisti a duas lives e compareci” a um festival online. Não tenho paciência, sinceramente.

Pode ser que algo do virtual permaneça, mais adiante. Mas não se cogita eliminar o encontro, o aperto de mão antes das sessões. Para isso, existem outras iniciativas.

O MUBI, serviço de streaming muito conhecido pelos cinéfilos, tomou a forma de um festival. Estabelece recortes, divulga entrevistas após as sessões. Se transformou em forte concorrente dos grandes festivais de cinema no mundo virtual.

Tratei até agora dos maiores festivais de cinema que, de certa forma, estabelecem um norte para os demais. Em todo o mundo, há uma reestruturação da cadeia de eventos cinematográficos. Talvez a principal questão para festivais de médio e pequeno porte seja a do ineditismo regional.

Explico melhor: é comum que a maioria dos filmes busque estreia em um festival grande, o maior possível, o que possibilita maior visibilidade. O filme que passava em Cannes, por exemplo, era reproduzido em dezenas de festivais pelo mundo antes de entrar na TV/ internet. Agora, sem a janela cinema”, os filmes estreiam cada vez mais rápido no streaming. Mesmo o filme menor”, logo que passa em algum festival, já busca o mundo virtual. Por outro lado, quando um filme é exibido em um mesmo território (Brasil, por exemplo), ele atrai um público significativo e propício ao seu conteúdo logo na primeira exibição. Fica mais complicado que esse mesmo filme seja exibido em outros festivais, como acontecia antes da pandemia.

Claro que festivais não se resumem à questão do ineditismo. Existem recortes e leituras distintas. Filmes que não foram descobertos num primeiro momento ganham novas chances logo depois.

Como curador de um festival de médio porte no Brasil, o Panorama Internacional Coisa de Cinema, a questão do ineditismo em festivais nunca me tirou o sono. Eu não me importava se um curta ou um longa tivessem estreado antes e passado em um, dois ou três festivais brasileiros. Acima de tudo, eu me importava com o recorte geral do festival e a forma como o filme seria visto pelo público baiano, além de pensar no acesso que haveria pós-festival, aqui na cidade.

Mas agora… sabendo que o filme já estreou na internet, em alguns festivais no Brasil… e que não teremos a janela cinema”… como proceder? Entendo que há um público cativo do Panorama após tantas edições, mas os desafios se transformaram. Ao menos temporariamente.

Os festivais perdem força significativa no mundo virtual. É necessário dizer que a imensa maioria de festivais de cinema irá desaparecer a médio prazo caso a necessidade do on-line permaneça.

E vale lembrar que no Brasil nós temos um outro inimigo a ser enfrentado: Bolsonaro.

O capetão possui estratégia de destruição de alguns setores do país. Um deles é o cinema. Inimigo público declarado. Para tanto, a Ancine é mantida na UTI e sem oxigênio. O cérebro parece morto, mas o coração teima em funcionar. A Ancine não possui diretoria há meses. Não é possível tomar decisões e já ficou claro que o primordial é a paralisia. A destruição é por dentro mesmo.

O setor passou a experimentar forte reversão de expectativas. Muitas produtoras fecharam as portas nos últimos anos. Festivais de cinema deixaram de acontecer em 2018, em 2019 e, sobretudo, em 2020. Centenas de milhares de pessoas deixaram de trabalhar numa atividade que vinha em crescimento contínuo desde 1995, ano da Retomada após a destruição provocada por Collor de Mello.

Muitos trabalhadores da cultura respiram aliviados, momentaneamente, graças à Lei Aldir Blanc. Dezenas de festivais de cinema vão acontecer até abril. É um alívio, mas que logo nos trará à realidade.

Os ataques ao cinema não se iniciaram com a chegada de Bozo ao poder. Há alguns anos, a burocracia, justificada pelo aumento da corrupção, já tinha dado mostras de seu poder paralisador sobre todo um setor.

Nada contra a prestação de contas do dinheiro público. Não é isso. Fato é que um produtor cultural, modesto, da periferia de Salvador ou de Jequié, por exemplo, passou a responder da mesma forma que uma distribuidora de petróleo ou construtora que gere bilhões em contratos.

Isso sem mencionar a lerdeza das prestações, que levam, às vezes, décadas para serem analisadas. Não tem sido raro encontrar casos de diligência e pedidos de devolução de verbas após anos e anos de o projeto ter sido realizado.

Se eu tiver que fazer apostas…. mesmo com tudo o que foi colocado, eu me revelo otimista com o futuro próximo. Mesmo com um genocida no poder, nós seremos vacinados e a atividade cultural sobreviverá.

Acredito que a maior parte das salas de cinema continuará em atividade e que o streaming já atingiu o seu limite. O serviço proposto por Netflix e Amazon são bons, mas de alcance limitado e momentaneamente supervalorizado pela pandemia.

Creio que os festivais de cinema irão retornar fortalecidos. Mais e melhores! Bolsonaro será tirado do poder. Tenho que desejar e esperar por isso.


 Cláudio Marques é cineasta e curador do Panorama Coisa de Cinema.

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