Ensaio | Literatura


O mundo parece ter desejo apenas por mais do mesmo.

                                                                      Ser diferente é ser só.

Marquesa Luisa Casati

 

Para uma breve introdução ao assunto

 

A poesia que chamam contemporânea brasileira não é ouvida, vista, nem lida, salvo episodicamente, no Brasil. As antologias — poucas — da poesia desse período são particular e frequentemente equivocadas, e os livros de autores e autoras se encontram muitas vezes esgotados ou em edições de editoras tão pequenas, que desaparecem nas fendas do assoalho[1]. Há um claro desajuste entre as obras produzidas desde meados da década de 1990 até o momento e a crítica produzida no país. Alguns desses poetas e dessas poetas já receberam até retrospectivas antológicas de suas carreiras, como Ricardo Aleixo (Pesado demais para a ventania, 2018), Marcos Siscar (Metade da arte, 2003), moi-même (Transformador, 2014) e ainda outros e outras[2].

Assistindo ao programa Choque de Cultura, ouvi o seguinte de um dos maiores nomes do transporte alternativo no país, o Julinho da Van, que disse: “Cê tem que tá no mínimo 40 ano atrasado pra participá legal da pátria”. Não teria dito melhor, como politicamente também vimos que se propôs recentemente, sem cerimônia e com sucesso, que voltássemos 50 anos no tempo, para dentro da ditadura: é uma visão muito popular.

Compilei em 2009 uma breve antologia para a revista mexicana La Otra, com 12 poetas brasileiro(a)s nascido(a)s entre as décadas de 1970 e 1980 que seria importante conhecer, e lá afirmei para o México que o Brasil não conhecia esse(a)s poetas. Isso continua sendo verdade neste ano perplexo de 2021. Já ouvi, de crítico conhecido, que sua prospecção do que acontece em poesia brasileira se dá pelo que chega à sua caixa postal vindo das “grandes editoras”. Ouvi de crítica famosa — e ela o dizia a convidado estrangeiro — que não havia mais literatura no Brasil, que a literatura agora quem fazia eram eles mesmos, os críticos, ao redigir seus ensaios. Não são exceções em seu meio: é a opinião corrente.

Dada a temperatura política e cultural do país nos últimos anos, quando um usurpador teve juntamente a falta de vergonha de publicar o que apenas ele chama poesia, para a gargalhada geral dos discretos, e quando poucos anos depois um secretário de Cultura, de rosto absorto e maníaco, citou Goebbels em rede nacional, devo dizer que aquelas afirmações de críticos, acima, por mais graciosamente obtusas que fossem, não me surpreenderam. E não me surpreenderiam também porque, como lembrava no meu Icterofagia, de 2008, as queixas de poetas são antiquíssimas. Naquele livro, a voz que traduzi e adaptei, de latim medieval, era a do poeta normando Serlo de Bayeux (1036-1104) lamentando a falta de noção geral: “Homero teria sossego/em crises de câmbio e emprego?”[3]

Constata-se o padrão em muitas ocasiões, como no famoso ensaio do linguista russo Roman Jakobson (1896-1982), “A geração que desperdiçou seus poetas”, de 1931, escrito logo após a morte de Vladímir Maiakóvski (1893-1930). É um texto aterrorizante sobre as agonias secretas, e nem tanto, de Iessiênin, Khliébnikov, Blok, Gumilev e outro(a)s (poderíamos seguramente acrescentar Anna Akhmátova e Marina Tsvietáieva: uma viveu até se tornar idosa, mas suportando sofrimentos que matariam a maioria de nós, e a outra engrossou o grupo de suicidas). Sobre a perda daquele cubofuturista “marxista”, como chama Maiakóvski, escreve Jakobson: “Foi a nossa geração que sofreu a perda”. E, adiante, oferece um diagnóstico tão percuciente que não poucos entre nós sentiriam a tentação de aplicá-lo in toto aos dias de hoje:

Oposta a essa urgência criativa, dirigida a um futuro transformado, está a força estabilizadora de um presente imutável, revestida, como está este presente, por um lodo estagnante que sufoca a vida em sua moldura fixa.[4]

Ou como Alfredo Palacios, senador socialista na Argentina, discursou em 1938 no Senado, quando o desastre grassava também entre a poesia argentina:

Nosso progresso material assombra nativos e estrangeiros. Construímos cidades imensas. Centenas de milhões de cabeças de gado pascem na imensurável planície argentina, a mais fecunda da terra; mas frequentemente subordinamos os valores do espírito aos valores utilitários e não conseguimos, com toda a nossa riqueza, criar uma atmosfera propícia onde possa prosperar essa planta delicada que é um poeta.[5]

Em que pese o talvez desairoso sobriquet de “planta delicada” (ou o possível conflito com as origens brasileiras da “Carta do achamento”, a partir da qual se costumou dizer “em se plantando tudo dá”), Palacios quis sublinhar o mesmo aspecto desenvolvido no texto de Jakobson, observando o bizarro deslocamento da figura do poeta, que penso entender mais simplesmente ao notar que uma sociedade que abraçou a velocidade irrefletida da indústria pôs no centro de sua vida perceptiva a economia e calculadamente alienou das pessoas a esfera das decisões (para depois aliená-las umas das outras) não poderia resultar em nada conveniente para a vida deste tipo inconveniente, a(o) poeta, resquício de um tempo anterior à divisão dos conhecimentos e do trabalho, e da troca de ciência por mera tecnologia.

Mas para um breve histórico deste nosso período no Brasil, vejamos antes como estava a situação ao fim dos anos 1990, começo dos 2000. Há poetas que já demonstram um percurso; outros e outras apresentaram bons começos e nos fazem aguardar mais adiante. Um mapeamento, como o deste artigo, não é como o daqueles mapas detalhados que descrevem todo o cosmo: é como aqueles mapas menores que, apontando algumas cintilações, pretendem sugerir mais e melhores trabalhos de reconhecimento.

Não sou um crítico buscando ser histórico: sou um poeta oferecendo sua apreciação; ou seja, completude, também pelo espaço, é impossível. Não obstante, diante do negacionismo crítico que decreta sobre a poesia que está “tudo parado, nada acontece”, repito Galileu e digo: eppur si muove.

 

Princípios

 

Quando cheguei à cena de poesia com meu primeiro livro, MCMXCVIII, em 1998, havia um esquema pronto: havia os filiados diretos aos concretos, e os indiretos[6]; os adversários furiosos não dos concretos, mas do poder cultural que os concretos haviam amealhado; havia quem viesse do mais mínimo sinal de menos de Drummond; Ferreira Gullar (1930-2016), que, conquanto famoso e influente, sobretudo nas polêmicas com os concretos, na sua infeliz guinada política, e por sua crítica de arte, não deixou traços claros de influência de sua grande poesia, nem de sua pior; havia, por fim, uma coisa muy curiosa que pretendia ser poesia e era em parte diário egocêntrico, em parte tese de alguma coisa, roteiro de viagens, e sem forma, que fazia extraordinário sucesso e ainda hoje, por vezes, reaparece como leitura dos bairros onde se concentram culturetes na cidade, e nos grandes veículos de mídia e cultura; e, é claro, havia gente que orgulhosamente não pertencia a nada disso, e em número francamente menor. Alguns vinham já de longe, alguns estavam em seus primeiros passos: eu contava 22 anos à época, e mesmo para mim essa situação era perfeitamente clara, e não me parecia nada bem[7].

Alguns exemplos de quem destoava, e tinha desde o início a minha atenção: Horácio Costa (1954), poeta de linguagem onívora e exuberante, de escrita bem pouco típica no Brasil; Donizete Galvão (1955-2014), cuja escrita precisa, de vocabulário específico e exato, não impedia a construção de uma poética forte em seus afetos, mas sem sentimentalismo ou falso basbaque pseudofilosófico, manias que empesteavam a escrita de poesia no Brasil; o extraordinário Ricardo Aleixo (1960), talvez o mais múltiplo poeta brasileiro em atividade, de produção que abarca desde habilíssimos manejos de métrica e estrofe regulares a usos verbivocovisuais,  desenvolvidos a partir da poesia concreta e das vanguardas internacionais, além de muito da cultura afro-brasileira, intensificando o jogo da performance na fisicalidade cultivada, na voz licorosa, maleável também ao canto, e incorporando referências plásticas de Hélio Oiticica e Arthur Bispo do Rosário; e Claudia Roquette-Pinto (1963), poeta que faz desdobrar, das pequenas conexões sonoras entre as palavras, um rico e vivo tecido verbal (em um poema como “Marinha com medo de dormir”, por exemplo)[8].

A partir desses e de outros exemplos de uma paisagem já em modificação, penso que o começo dos anos 2000 tenha significado um momento fundamental de virada naquele cenário, quando as novas gerações de poetas começaram a mover aquele cânone imóvel, e começou a se dar destaque também a nomes como os de Hilda Hilst (1930-2004), Roberto Piva (1937-2010) (dois que hoje parecem inevitáveis, mas que foram se firmando nas edições da editora Nankin, em meados da década de 1990[9]), Leonardo Fróes (1941) — o grande poeta que comemora seus 80 anos neste 2021 —, Max Martins (1926-2009)[10], Sergio Rubens Sossélla (1942-2003)[11], e esses são apenas alguns exemplos, facilmente multiplicáveis[12], de poetas que, ressurgindo de seu absurdo ostracismo, foram mostrando que havia uma complexidade grande sob a superfície preguiçosa de um marasmo crítico-literário.

A tradição era revirada, porque qualquer escritor ou escritora que valha o nome sabe que em literatura aparece primeiro e brilha de notoriedade o que costuma ser mais simples de deglutir, para um público ainda pego nos 40 anos de defasagem aludidos acima, e em relação à mudança de foco que autore(a)s mais fibroso(a)s exigem.

Ainda que alguns daqueles autores e daquelas autoras trazidos à tona acabem sendo lidos antologicamente, a mobilidade importante do cânone mais imediato já se fazia sentir — seus resultados atuais terão efeitos profundos adiante — e significava um momento vibrante de variedade e reinvenção, que ainda está longe de acabar, não só pelo rearranjar das gerações prévias, mas também pelo que poetas jovens começavam a fazer em suas obras originais.

E nisso é preciso ressaltar: parte do grosso equívoco da nenhuma — ou quase nenhuma — recepção que essa poesia teve reside no fato de que o período não repete mecanismos de 1922, não repisa a poesia concreta nem a Tropicália, nem vai à caça de algo como L=A=N=G=U=A=G=E a partir do que construir um modelo viável. Felizmente não faz nada disso, e sua vibrante diversidade foi por demais desconcertante para a letargia do costume[13].

 

Poesia viva no Brasil do século XXI[14]

 

Não sou um tipo aristotélico, o de “primeiro as coisas primeiras”, e, portanto, a ordem em que nomes e obras aparecem a seguir não é, de modo algum, ordem de importância, porque, além do mais, poesia não é corrida de cavalos. Em 2006 escrevi notas breves sobre alguns poetas que considerava já importantes, e uma era Angélica Freitas (1973). Destacava lá que Freitas, então inédita em livro, trazia para a poesia brasileira uma sofisticação do uso da ironia, como acontecera na França do fim do XIX com Jules Laforgue, reposicionando a importância de alguns nomes de referência da poesia, além de formalmente desempenhar engenhos de rima e forma que, muitas vezes discretos ou insultuosos, cavavam fundo[15] e eram mais importantes do que se assinalou sobre suas sensibilidade e referências pop — coisa que se nota numa quantidade não pequena de autores e autoras do período e é historicamente determinada. Em “A mulher limpa”, de Um útero é do tamanho de um punho (2012), Freitas não apenas escreveu um poema que vai ao centro da questão (o livro todo vai, aliás), mas antecipou a ação corrosiva de um discurso público que, se sempre esteve aí, tornou-se novamente explícito quando, em 2016, usaram-se os termos “bela, recatada e do lar” como propaganda de virtudes femininas.

Falava também de Ricardo Domeneck (1977), cujo papel agora já não é mais só o de um dos melhores poetas brasileiros em atividade — já com muitos livros de uma poesia inquieta, formalmente diversa, cosmopolita —, mas de figura estruturante para os últimos anos, no trabalho variado que desenvolveu como editor da revista Modo de Usar & Co.[16] em seus dez anos muito importantes de existência, como autor de artigos e ensaios sobre autore(a)s e temas literários candentes, e também como promotor de leituras e festivais de poesia no Brasil e no exterior, especialmente em Berlim (onde reside há mais de uma década). Penso que sua lírica homoerótica seja sem par, e apenas para um exemplo passageiro do modo vívido, político, humorístico e erótico desses poemas, leia-se o final de “X+Y: uma ode”: “e oxalá sentir em meio a tal/ loa uma nova ereção/ cavucar/ as malhas entre as dobras/ do edredão/ enquanto lemos poemas de Catulo,/ Kaváfis./Quando chegarem os bárbaros,/ me encontrarão na cama;/ que venham porém armados,/ pois hei de estar acompanhado,/ e em riste nossas lanças”[17].

Domeneck  mantém também atividade como tradutor de poesia[18] — mas do tipo de tradução que passou do que antes era mera muleta intelectual para se tornar uma arte no Brasil, por obra sobretudo de Haroldo (1929-2003) e Augusto de Campos (1931)[19], seguindo uma hipótese poundiana, que ganharia praticantes posteriores em, entre outros, Nelson Ascher (1958) e Paulo Henriques Britto (1951), ofício que prossegue também comigo, e outros e outras, e ainda adiante com Guilherme Gontijo Flores (1984), como veremos.

Por fim, comentava lá o livro de estreia de Ana Rüsche (1979), Rasgada (2005), que trazia contida variedade, poemas muito objetivos e insolentes, por vezes eroticamente desafiadores (sem os clichês do subgênero, ou modificando-os por meio de uma persona alegremente cruel, com traços de sadomasoquismo[20]), e outros de dureza epigramática, então mais rara de se ver, repertório ao qual em outro livro interessante de sua carreira, Nós que adoramos um documentário (2009), acrescentaria um tom elegíaco, pungente.

Escrevi, antes e desde lá, outros textos sobre poetas: prefácios, posfácios, orelhas e resenhas de livros, autores e autoras que começavam a adentrar a literatura brasileira, modificando a paisagem da arte verbal. Há um nome que não frequenta muitas listas, nome de poeta discreta, que publica pouco, mas é importante: Simone Homem de Mello (1969). Conhecida sobretudo por seu trabalho como tradutora[21] e coordenadora do Centro de Estudos de Tradução Literária do museu Casa Guilherme de Almeida, foi libretista na Alemanha e tem três livros de poemas publicados no Brasil. Sua poesia é singularíssima: uma arte de refinada articulação sintática (leia-se, por exemplo, “De uma fotografia anônima”), de imagens muito materiais e de densa materialidade sonora, que pede leitura atenta de seu trabalho minucioso.

Fabiano Calixto (1973) — poeta com muitos livros publicados, o mais novo sendo Fliperama (2020) —, como propus no posfácio que escrevi à edição portuguesa que antologiza sua poesia, Equatorial (2014), desenvolve uma linguagem que, nos extremos da agressividade e da ternura, encontra um nexo que então aproximava de uma virtude encontrável em Gonçalves Dias, isto é, uma linguagem que pouco envelhece graças à sua ductibilidade, que flagra um uso exato entre o livro e a fala, temperando ambos, um com o outro.

E podemos aproveitar Calixto para considerar um traço que nele é veemente, mas caracteriza também muito dessas novas gerações, ou seja, uma politização mais cerrada do poema. Como e por que isso tem acontecido, dividiria em duas partes: 1) poetas de fato costumam ser as “antenas da raça”, e isso em geral faz com que farejem as coisas antes no ar; 2) o último decênio do século passado de fato iniciava o que chamei em outra parte “mudança de paradigma” político-econômico-social[22]. São gerações posteriores, em seu surgimento, à humoristicamente chamada redemocratização brasileira de 1985, mas essa “redemocratização” — como foi concebida por empresários, políticos e militares, e sancionada por alguns jornalistas influentes, também em livro — apenas acobertou 21 anos de crimes contra a humanidade, e a tensão era palpável no ar mesmo quando se supunha que seria bastante engatar o piloto automático nas conquistas, muito limitadas, do período estendido do fim dos anos 1990 a 2016.

Se na superfície da sociedade, anestesiada por máquinas (pão & circo ao mesmo tempo), os tremores políticos pareciam inexistir, seria nas artes que o sismógrafo começaria a registrar distúrbios sérios nas placas tectônicas, também porque penso que seja sobretudo desnecessário sublinhar a presente situação, no limite apocalíptica, do Brasil como de quase todo o planeta. O caso cada vez mais extremo do cenário político fez com que muito da poesia brasileira ganhasse vigorosa musculatura política, não necessariamente panfletária[23], que no caso de Marcelo Ariel (1968), por exemplo, é ainda energizada por uma máquina de imagens inventivas como: “Impossível não pensar na gratuidade,/ onde o Sol nasce pisando nas nuvens,/ para vomitar sua luz/ no banheiro sujo da humanidade”.

Penso que haja uma política, por exemplo, a se extrair da poesia e da arte de Fabiana Faleiros (1980), sobre quem escrevi um brevíssimo artigo intitulado “A poesia anárquica de Fabiana Faleiros”. Anárquica porque seria muito difícil definir e delimitar o trabalho que reúne paródia musical, artes plástica e conceitual, pseudoensaio, poesia e performance de maneira razoavelmente indiscriminável no que faz. Naquilo que é poesia em termos mais estritos, nota-se algo semelhante ao exercício de sintaxe de Gertrude Stein, em que os deslocamentos de sentido e lógica operam em parte como a collage cubista (que anula o tempo linear) e em parte desautomatizam os hábitos de leitura.

Faleiros, hélas!, não tem livro de poemas publicado, a não ser um a próprias expensas, e um projeto de livro, de há dez anos, que chegou a ser até diagramado, mas não veio ao respeitável público, mesmo com o escândalo do meu mais vivo entusiasmo. Não obstante, tem poemas publicados em diversas revistas em papel e on-line e me parece desempenhar algo ímpar: tem até mesmo um livro no qual aplica o que se chamou, com Kenneth Goldsmith e Marjorie Perloff, uncreative writing, ou “escrita não-criativa”, arrisco dizer, sem ter lido, à época, nem um nem a outra, mas simultaneamente propondo algo semelhante. A esse propósito, me recordo de ter entrado faz pouco em contato com a poesia de Mônica de Aquino (1979), e li  “O mar carmim às vezes como fogo”, poema no qual a autora reconfigura o final da fala de Molly Bloom no Ulysses de Joyce, remontando o efeito de suas palavras engenhosamente; ou, em um lance de sagacidade visual, fotografa o jorro de tinta do toner de uma impressora, tendo notado nela a configuração quase mágica de corpos celestes, nebulosas, no incidente proveitoso como poesia visual de objet trouvé (articula também poemas que se compõem pela hábil construção sequencial de uma imagem).

Busco não apenas reunir o máximo do que conheço de outros autores e outras autoras neste espaço exíguo, mas também chamar a atenção para aqueles e aquelas em cujo trabalho vejo algo significativo que singularize aquela experiência, e assim vemos uma outra poeta pouquíssimo publicada e talvez ainda menos lida, que opera como que um meio de campo entre os estilos de Freitas e Faleiros, a cearense Érica Zíngano (1980): como Faleiros, o modo de Zíngano trabalhar é iminentemente logopaico, uma poesia da inteligência. Suas sagacidades não são discursivas; são como focos de luz de uma voz quase que permanentemente irônica, como a de Freitas. Poemas que se tornam objetos, ou mecanismos conceituais de composição, não são raros em sua obra, publicada de modo errático e, sobretudo, fora do Brasil.

Nascido em Brasília e professor da UFPR, Guilherme Gontijo Flores (1984) é um dínamo: acumula as funções de poeta, editor, tradutor prolífico e premiado de várias línguas[24], professor e ensaísta, além de músico (atividade que por vezes se mescla com a de tradutor). Um dos poetas brasileiros para quem um contínuo de culturas, línguas e tempos povoa o espaço de sua composição e reside de modo permanente na variedade de seus interesses, leiam-se o árduo “labirinto”, o malandro “elogio do fracasso”, ou o inconsútil “inverta-se o olhar na árvore”. Membro fundador e ainda hoje editor da revista escamandro, Gontijo Flores é um dos nexos que fazem movimentar a poesia brasileira com sua atividade aparentemente ininterrupta. E é importante considerar que, quando a revista Modo de Usar & Co. encerrou seus trabalhos em 2017, a escamandro já dividia com ela o centro de irradiação[25]: com já quase dez anos de existência, acrescentou não apenas um enfoque diverso, como também conseguiu incorporar a si a primeira experiência que julgo efetiva de recepção crítica da poesia contemporânea no Brasil. Representa igualmente uma passagem significativa da geração nascida na década de 1970 para a geração de 1980, como se constata pela idade de seus editores e editoras[26].

Penso que muito do variado interesse da poesia contemporânea no Brasil se dê por deslocamentos, que podem ser físicos, perceptivos, de uma indefinição de lugar[27] ou de uma voz que receba sedimentos de uma gigantesca plataforma, antiga e contínua, de linguagem, como exemplifiquei em Gontijo Flores. Isso gera efeitos muito diversos, como se pode observar na poesia de Érico Nogueira (1979), em especial nos livros Dois (2010) e Poesia Bovina (2014): poeta que vem do cultivo raro da poesia antiga — é, como Gontijo Flores, professor de Latim —, e que acrescenta à métrica regular e aos experimentos com métrica quantitativa um vocabulário inusitado, móvel e quebradiço, colhido diretamente na língua falada hoje, provocando um ruído sem paralelo em suas composições, que puxam simultaneamente para esses dois lados.

Uma poeta complexa, entre os das novas gerações, do ponto de vista dessa linguagem que provoca ruído, é Maíra Mendes Galvão (1981), que estreou com Jamanta na testa (2019), em belo volume da editora Quelônio. Sua linguagem é tão própria e irrepetível, tão urdida em vocabulário denso, incomum, por vezes híbrido em suas invenções multilíngues, ou no uso consciente de camadas etimológicas, que sua escrita, como sua arte performativa, são efetivas singularidades na poesia brasileira, com influências claras de James Joyce, de Mina Loy, poeta que vem traduzindo, e de Gertrude Stein.

Três outros poetas constroem uma poesia de refinado trabalho nas filigranas internas da palavra, e esses são Eliane Marques (1970), Marcus Fabiano Gonçalves (1973) e André Capilé (1978). Marques tem uma poesia de tamanha energia verbal que me intriga o ser pouco lida; e com energia verbal quero dizer que há no que escreve um nó tão satisfatório de conhecimento, necessidade, forma e vocabulário, que o poema se torna um circuito inventivo de alta corrente elétrica. À sua poesia se aplica com precisão aquilo que dissera o poeta chileno Vicente Huidobro, que em “todas as coisas há uma palavra interna, uma palavra latente e que está debaixo da palavra que as designa. Essa é a palavra que deve descobrir o poeta”[28].

Marcus Fabiano Gonçalves, em Arame Falado (2012), escreve um dos livros de poesia com maior limpidez e exatidão dos últimos dez anos, publicado pela 7Letras, e traz consigo uma saudável dureza reminiscente de João Cabral de Melo Neto, mas àquela secura dá espinhos de um pensamento erudito e, por vezes, lucidamente cruel. Poemas como “Grilagem”, “A masmorra de Lisboa”, e tantos outros, são excelentes não importa quando, nem quantas vezes os lemos. Já André Capilé, para dar um exemplo, produz coisas como “se ao vir às suas costas dias cinzas/ há caminhos de andar, outros de salto.// há caminhos enquanto não mudarem/ o barulho dos tacos no asfalto”, entre inúmeros outros jogos do autor do ótimo Muimbu (2017).

Poeta, crítico, tradutor e editor, Rodrigo Lobo Damasceno (1985), baiano de Feira de Santana, é figura quieta e lacônica: não o são seus trabalhos. Em meu couraça (2020) lhe dedico um retrato, fascinado com sua inteligência. Lembro de ler, há mais de dez anos, um seu pequenino volume crítico sobre Jorge Luis Borges e Bioy Casares, e de me admirar da completa maturidade do pensamento e da escrita que haviam composto o ensaio, em particular pela juventude de seu autor: o equilíbrio de suas considerações, a elegância de seu fraseado preciso e de fina composição, depois ainda receberiam, nos anos posteriores, camadas de foco e intensidade que agora revelam um autor com uma contribuição distinta.

O poeta de Casa do norte (2020), que teve poemas esparsos publicados em revistas antes, tem também um dos textos que julgo fundamentais da geração, um tipo híbrido de ensaio, e faz parte da espessa e ótima revista Meteöro (2019)[29], o chamado “Eu nunca mais vou voltar por aqui: Poesia do Nordeste no Sudeste: ensaio sobre algumas poéticas migrantes brasileiras”. Leitor fino de muitas tradições de poesia e prosa, Lobo Damasceno constrói um caminho peculiaríssimo de escrita no Brasil, a que se deve atenção.

Entrei em contato, mais ou menos à mesma época, com o que escrevia Reuben (1984): primeiro, por um artigo publicado em número impresso da revista Modo de Usar & Co., exibindo a mesma desenvoltura inteligentíssima de Lobo Damasceno como autor ensaístico, de escrita cultivada; e, logo depois, por sua poesia que, com As aventuras de cavalodada em + realidades q canais de tv (2013), produziu um dos livros recentes mais instigantes em suas formas indefiníveis, velozes, a própria definição do anticonvencional, que, como proposto no ensaio “Passos de uma outra dança: dinâmicas e enfrentamentos”, de Caroline Micaelia (1993), publicado na revista Cisma (n. 5, 2016), implica os “ritmos do skate, do dub e do pixo”, assim como um tipo de linguagem que subverte o livro de poemas, incluindo também um registro das peculiaridades gráficas da escrita no espaço digital: fazer com que tudo isso simultaneamente funcione numa arte de alta voltagem não é nada simples. Como Micaelia registra com perspicácia, é uma poesia “que não enuncia o mundo a partir de uma torre de marfim, mas no meio do furacão”.

Jeanne Callegari (1981), mineira, manteve com Reuben, maranhense, o Macrofonia, evento de poesia & performance na cidade de São Paulo. Callegari estreou com Miolos frescos (2015), livro enxuto e preciso, com um raro timing de humor que poderia desandar na piada sem consequência, na gracinha passageira que entulhou tantos livros do período, mas Callegari, sem também carregar peso marmóreo, encontra o lugar exato de provocação e registro móvel da vida, com leveza. No posfácio ao livro aproximei esse seu estilo de parte do que faz a poeta irlandesa Mairéad Byrne, entendendo que ambas produzem algo raro, poesia com um uso de autêntico humor, no sentido forte.

E na poesia de Leonardo Marona (1982) esse humor se mistura com a iminência de um perigo existencial, um desafio lançado: esse risco que ronda seus poemas lhe dá nervura específica, e um sentido de urgência palpável, não a urgência como se diz hoje, quando alguém esbarra em um tema da moda. É ler poemas como “ode à página”, ou “poema para teu cigano”. Ótimo prosador, autor da novela Dr. Krauss (2017), publicada pela editora Oito e Meio, eu o reúno, nessa versatilidade, com a catarinense Leila Guenther (1976), que já escreveu prosa importante, em parte recolhida no recente livro de contos Partes homólogas (2019), e tem escrito uma poesia de base sobretudo oriental, muito diversa, no entanto, do tipo de coisa que se generalizou no Brasil com a adaptação da forma do haicai, popularizada por Paulo Leminski (1944-1989)[30], por exemplo.

Há também poetas que surgiram há pouco em livro e que já nos oferecem poemas contundentes e certeiros, como observo em Diogo Cardoso (1983), em especial por “Necrológio” e “[Amei o porco guardado nos olhos da mulher]”, em que um é simplesmente um poema perfeito, e o outro dá o melhor curso imaginável a uma tradição perdida no Brasil desde Murilo Mendes, pois Cardoso extrai novo interesse e vida do (quem diria?) já antigo surrealismo, que conhece muito bem em suas virtudes e defeitos. Outros, como Danilo Bueno (1979), nos trouxeram um livro singular e significativo, e esse é o caso de seu longo, elegíaco, Uma confissão na boca da noite (2013): poema repleto de pontos brilhantes, escrito com convicção rara.

Entre os mais jovens, e cuja poesia também conheci há pouco, é importante ler Carlos Orfeu (1988): sua poesia facilmente se destaca por um ofício do rigor, de uma percepção fincada nas coisas, sem discurso, cuidadosa ao adjetivar, de foco que não se perde, e ao mesmo tempo não incorre naquela mania de meados dos anos 1990, quando se supunha que concisão em poesia se conseguia ao pingar duas sílabas numa página. Sua poesia tem uma calma aparente de lago quieto, mas nota-se o movimento rico na parte interna da confecção de seus poemas.

 

Epílogo: proporções e um começo de crítica literária

 

Há ainda outros poetas e outras poetas, de que falei alhures, e outros e outras de quem falarei; há contribuições que ficaram localizadas em determinado ponto do tempo e decaíram a partir de lá; há quem tenha se calado e há quem tenha crescido em importância. Haveria que abrir um capítulo para a poesia visual, para pontos de confluência entre poesia e música, e certamente ainda outro para a poesia ainda não cartografada de slams e da poesia falada.

Por isso também é justo lembrar que a crítica literária começa a se dedicar à poesia contemporânea, e merece destaque o trabalho notável do crítico e professor da UFMG, Gustavo Silveira Ribeiro (1980), não apenas porque essa é sua área de eleição, mas também pela fineza de seus trabalhos sobre o assunto, lendo a diversidade do momento com sensibilidade afinada para cada uma de suas peculiaridades, densidades, diferenças e potenciais. Tem demonstrado verdadeiro empenho, escrevendo artigos, resenhas e ensaios, e oferecendo cursos sobre o tema. Leia-se, por exemplo, Uma alegria estilhaçada: poesia brasileira, 2008-2018, antologia comentada que se publicou pela editora Macondo, em conjunto à revista escamandro, em 2020.

E menciono também Matheus de Souza Almeida, o Matheus Mavericco (1992), que faz há anos um trabalho sério, consistente e difícil de ler meticulosamente poesia, em particular a contemporânea, não só fornecendo fortuna crítica para quem queira começar a ler essa poesia, mas também anotando passos difíceis de muitos autores e autoras, o que permite igualmente que seja consultado como referência em vários poemas que escolhe já criticamente para apresentar com sua leitura refinada, em detalhe, no blog formas fixas.

Aqui penso que temos já algum material para exploração inicial, a quem deseje conhecer parte do que de melhor a poesia brasileira contemporânea já fez. E continuará fazendo.


Dirceu Villa (1975, São Paulo) é poeta, tradutor e ensaísta.

[1] Já a recepção das vias digitais, desordenada e multitudinária, confere não apenas outra vida à poesia, como implica também, eventualmente, uma abordagem bastante diversa para a própria concepção do poema.

[2] O mineiro Edimilson de Almeida Pereira (1963), por exemplo, teve seu Poesia + (antologia 1985-2019) publicado pela editora 34, o que, convenhamos, é sinal claro de reconhecimento — quae sera tamen, como de costume.

[3] O trecho que utilizei na minha reinvenção se acha em latim em “O modo de existência do poeta medieval”, capítulo VII de Literatura Europeia e Idade Média Latina, de Ernst Robert Curtius, com uma tradução ad sensum em nota, feita por Paulo Rónai, que traduz o livro com Teodoro Cabral.

[4] Jakobson, Roman. “On a generation that squandered its poets”, in: Language and Literature (edited by Krystyna Pomorska and Stephen Rudy), London/Cambridge, The Belknap Press of Harvard University Press, 1987, chapter 16, p. 274 e p. 277.

[5] Diario de Sessiones de la Cámara de Senadores, volumen 3 (1938), p. 21.

[6] Destacaria, do grande contingente de poetas diretamente influenciado(a)s pela poesia concreta, Marcelo Sahea (1971): sua poesia guarda e resgata muitos dos usos dos concretos, mas ele é, com Aleixo, aquele que soube desenvolver uma obra vigorosa e inventiva que vem daquela tradição e a transforma para seu uso.

[7] Meu segundo livro, Descort (2003), mostrava já no título o senhal do meu desacordo.

[8] Há ainda outros e outras, esses são exemplos.

[9] As edições mais conhecidas, da Companhia das Letras e da editora Globo, vieram conspicuamente depois.

[10] Martins finalmente recebeu edição condizente com sua arte pela UFBA, obra completa em dez volumes sob coordenação de um poeta refinado como Age de Carvalho (1958), paraense como Martins, e prefaciada por alguns poetas das novas gerações, como, faço questão de pontuar, Eduardo Sterzi (1973).

[11] Gregório Camilo e Fernanda Magalhães Ferrari, da Catatau Filmes, têm se dedicado a repropor a poesia de Sossélla, reunindo poetas em leituras e vídeos que recuperam seu rico espólio.

[12] Hilda Machado (1951-2007) receberia publicação póstuma de sua poesia em Nuvens (2018), volume editado por Ricardo Domeneck (1977), para dar um exemplo de poeta ativo também na releitura do passado recente da poesia brasileira; o mesmo acontece com o notável prefácio de Reuben (1984) para o seminal Sibilitz (1981, edição original; 2016, edição da Chão da Feira), de Leonardo Fróes — poeta que já havia sido editado com os cuidados da editora Azougue, de Sergio Cohn (1974) —, ou o doutorado de Fabiano Calixto (1973), defendido em 2019 e dedicado a reunir e ler a poesia de Orlando Parolini (1936-1991), entre outros tantos exemplos possíveis, como Glauco Mattoso (1951), sempre presente, em especial pelo Jornal Dobrabil (1977-81), e Jacinta Passos (1914-1973), revista agora por seus fortes poemas políticos e feministas avant la lettre, não-panfletária em ambos os casos.

[13] Costume tão antiquado, que se queixava do uso dito indiscriminado do enjambement pelas novas gerações de poetas: o que apenas flagrava, na generalidade da proposição, a incapacidade — ou inabilidade; ou ambas — de ler os usos particulares.

[14] Como escreveu o poeta, tradutor e professor Patrick Quillier em sua ótima antologia (de 2016) traduzida para o francês: poésie brésilienne vivante.

[15] Infelizmente, e a despeito de seu sucesso (coisa rara em poesia), é menos lida pelas qualidades de sua poesia do que pelas características singulares do momento que a acolheu. E é em particular a crítica negativa à poesia de seus dois primeiros livros que se concentra, interessada, em explorar esse equívoco.

[16] Função editorial, na fundação e em momentos variados, que dividiu com as poetas Angélica Freitas, Marília Garcia (1979) e o poeta Fabiano Calixto: os quatro foram publicados, com seus livros originais, na coleção ás de colete, extinta na extinta editora Cosac & Naify, importante contribuição editorial do poeta Carlito Azevedo (1961). Já a revista Modo de Usar & Co. teve também quatro números impressos e criou não apenas repertórios completos de poesia internacional, incluindo poesia visual e sonora, mas também estabeleceu um roteiro muito amplo e útil de poesia contemporânea no Brasil. Os dez anos da revista ainda são acessíveis em seu endereço digital.

[17] A esse respeito, ler seu livro breve, Cigarros na cama (2016), série elíptica em verso, do fim de um amor.

[18] As traduções importantes que fez de Frank O’Hara, de Hans Arp, de Heiner Müller e de contemporâneos, como o argentino Alejandro Crotto (1978), entre muito(a)s outro(a)s, constituiriam um comentário à parte.

[19] Todo mundo tem antecedentes. Lembramos Odorico Mendes, Guilherme de Almeida e tutti quanti.

[20] A propósito, a sexualidade nas obras de poetas do período — como também os indícios de novos modos de vida — surge como uma exploração experimental e não meras vinhetas chamativas ou a banal exploração pública do privado autobiográfico: há um sentido renovado de reinvenção da vida, e algo de teatral, voltando numa onda do tipo de experimentação do fim dos anos 1960 e começo dos 1970. E é política, também, e não mero tema em arte, e assim vemos como a liberdade grande dos fins dos anos 1990 e começo dos 2000 foi recentemente retrucada com um momento de conservadorismo truculento, para quem rótulos e slogans de fácil memorização interessam.

[21] Tem traduzido Arno Holz e Ulf Stolterfoht e acaba de publicar, pela Demônio Negro, Poesie (2020) de Augusto de Campos, traduzindo os poemas de Campos (que aliás comemora 90 anos neste 2021) para o alemão, numa edição bilíngue de fina composição, que funciona também como uma ótima antologia do trabalho mais ousado do poeta concreto.

[22] Não inventei nada disso: bastaria ler Robert Kurz, quando se perguntava ainda nos anos 1990 como o capitalismo continuaria a existir se suas guerras não davam sobrevida de nem sequer um ano ao dólar; Thomas Piketty, quando notou estatisticamente que todo período de extrema concentração de renda desanda em algum tipo de calamidade pública e conflagração; Chris Hedges, quando fez notar que as democracias vinham se erodindo sob o que hoje seria melhor definido como corporocracia; e Darcy Ribeiro, que nunca deixou de avisar que a estrutura de “classe, cor e preconceito” (assim como, diria eu, o hábito recalcitrante do golpe de Estado ligado a essa estrutura) não havia se resolvido de maneira a solucionar a questão civilizacional do Brasil.

[23] Diferencio da seguinte maneira: político, mas não panfletário, ocorreria quando a poesia encontra um ponto no qual a ação pontual, incidental, ganha um desenho que não se limita à ocorrência momentânea, mas passa a interessar de modo mais amplo no reconhecimento de raízes profundas de determinado aspecto da vida humana, de modo exemplar em, por exemplo, “O montanhês do Kremlin”, de Óssip Mandelstam, ou no também extraordinário e premonitório “Tiranias”, de Ruy Proença (1957): “antigamente/ diziam: cuidado, as paredes têm ouvidos// então/ falávamos baixo/ nos policiávamos// hoje/ as coisas mudaram:/ os ouvidos têm paredes// de nada/ adianta/ gritar”; e panfletário seria aquilo que se destina ao momento e tem um sentido mais diretamente ativo, buscando intervir no caso em ponto. Também o panfletário tem seu sentido e sua necessidade, embora obviamente não sobreviva como obra. O exemplo que daria são poemas da Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO. O engajamento pode ser desses dois tipos. Pádua Fernandes (1971), no Brasil, constitui um exemplo de poesia engajada bem solucionada; de Tarso de Melo (1976) lembraria de, entre outros, “Exames de rotina”, e assim também Paulo Ferraz (1974), que é poeta do jogo de verso rápido e astuto, e tem se destacado também como tradutor do russo e do catalão.

[24] Apenas para se ter uma ideia, traduziu a poesia completa de Propércio, a de Safo de Lesbos, além de uma edição dos poemas de Calímaco. Traduziu também a Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, uma quantidade enorme de poemas esparsos de outros poetas (Horácio, Poe, Rilke, + um largo etc.) e prepara uma tradução de Rabelais.

[25] Ainda outras revistas, como a Inimigo Rumor, ou a Sibila, editada pelo poeta Régis Bonvicino (1955), desempenharam papéis significativos, embora diversos, no período.

[26] É notável. Ex-editores fundadores: Adriano Scandolara (1988), Bernardo Lins Brandão (1981), Vinicius Ferreira Barth (1986); fundador e membro atuante do time de editores atuais, Guilherme Gontijo Flores (1984); editores atuais: Sergio Maciel (1992), Nina Rizzi (1983), André Capilé (1978) e Patrícia Lino (1990), que é portuguesa. Todo(a)s ou quase todo(a)s são também poetas e tradutore(a)s. A escamandro teve dois números impressos até o momento.

[27] Se vimos em Érica Zíngano que seu périplo e mesmo a dificuldade atribuível a sua linguagem a fazem publicar mais no exterior do que em seu país, notamos que o livro de estreia de Francesca Cricelli (1982), por exemplo, se chamou Repátria (2015) pelas inquietações de sua origem entre brasileira e italiana, e de seu considerável périplo estrangeiro; ou, como veremos adiante, o baiano Rodrigo Lobo Damasceno (1985), que lançou recentemente seu livro de estreia, Casa do Norte (2020), e em cuja obra se percebem distintamente os embates do próprio país dividido, em sua experiência pessoal e poética vivendo no Sudeste, o que desperta um tipo específico de linguagem para lidar com essa percepção.

[28] Huidobro, Vicente. “La poesía”, in: Altazor/ Temblor de cielo (edición de René de Costa), Madrid, Cátedra, 1996, p.177.

[29] Revista, até agora, de um número só, mas muito importante por encapsular parte do momento mais recente, enquanto se move. Publicada pela editora Corsário-Satã, dos poetas Fabiano Calixto e Natália Agra (1987). Agra já publicou dois livros de poemas, e me recordo particularmente de “Augúrios”, do recente Noite de São João (2020).

[30] Torquato Neto (1944) e Ana Cristina César (1952-1983) são referências que costumam resultar melhor.

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