Ficção e Poesia | Literatura


 

Cena 1: Minha casa, minha rua

ESPAÇO

Rua de casas simples, onde se vê uma sequência de duas casas e um bar sem mesas ou cadeiras. Numa rua atrás, vê-se prédios altos.

PERSONAGENS

Alex

Jorge

Laura

Raimundo

Zenito

TEMPO

Primeira semana de isolamento social em Salvador.

Final de tarde. Ao longo da cena, a luz vai mudando, representando a chegada da noite. Entra Alex, vestido com uniforme de porteiro. Alex se dirige à primeira casa.

JORGE. (aparecendo na janela da segunda casa). Ô, Alex!

Alex recua e vê Jorge na janela.

JORGE. Chegou mais cedo?

ALEX. Tá vigiando a rua, é?

JORGE. (sorrindo). Laura tá lá em cima, viu você vindo. Toma uma cerveja?

ALEX. Sim, pensei em bater aí, mas não sabia que já tinha chegado.

JORGE .(saindo da janela). Fui liberado mais cedo também: o vírus.

Alex espera em frente à segunda casa. Após um tempo, Jorge sai da segunda casa segurando uma mesa de plástico. Alex o ajuda indo buscar duas cadeiras de plástico empilhadas. Jorge e Alex colocam a mesa e as cadeiras em frente à segunda casa. Alex se senta em uma das cadeiras, enquanto Jorge entra novamente na segunda casa. Jorge retorna, trazendo consigo uma cerveja e dois copos. Jorge senta, abre a cerveja e serve os dois copos.

ALEX. Cadê Raimundo? Não vai abrir não?

JORGE. Vai, tem que abrir. (gritando para o bar ao lado da segunda casa) Ô, Raimundo, sua clientela chegou com sede!

ALEX. (achando graça). Raimundo tá com medo do carro que passou ontem, é?

JORGE. Que carro?

ALEX. O carro de som. Você não tava aqui não?

Jorge nega com a cabeça.

ALEX. Ah, acho que foi na hora que você já tinha entrado mesmo. (breve pausa) A gente tava aqui ontem resenhando, já era quase oito horas, aí passou um carro de som mandando todo mundo entrar em casa. Que o vírus e não sei o que…

JORGE. Mas entrou aqui na rua?

ALEX. Não, na principal, mas deu pra ouvir daqui. Aí, Zenito ficou dizendo que era por causa do bar de Raimundo, que o bar dele era o corona-bar. (imitando Zenito, voz de megafone) “Raimundo, por favor, em nome da saúde de nossa população, feche esse corona-bar.”

Alex e Jorge riem.

JORGE. Essa semana o povo tava todo de máscara lá no mercado, os clientes.

ALEX. Ah, os moradores lá do prédio também. Colocaram álcool gel na portaria e disseram que não era pra abrir o vidro, não, que era só pra atender o interfone. Acho até melhor.

JORGE. Os meninos tão sem aula desde segunda-feira. Laura tá se vendo doida.

ALEX. Ela não tá indo trabalhar?

JORGE. Tá. Os meninos tão ficando com a mãe dela. (breve pausa) Tá aí a velha.

Alex faz sinal para que Jorge fale baixo.

JORGE. (falando um pouco mais baixo). Que nada, tá meio surda, já.

LAURA. (voz de dentro da segunda casa). Ô, Jorge!

ALEX. (rindo). Aqui ouve tudo. É uma comunhão total essa rua.

JORGE. Pior que é. Quando eu era criança que meu pai mandava eu entrar, eu ficava encostado na parede, ouvindo as conversas.

ALEX. Imagino as conversas! Seu pai e o falecido Josias!

Alex e Jorge riem. Entra Raimundo, saindo do bar.

JORGE. Ah, muito bem, chegou quem faltava! Abra essa espelunca aí, corona-bar!

RAIMUNDO. E aí? Vou abrir, mas tô com pouca cerveja. Vou logo avisar que eu não quero confusão depois. O caminhão não veio repor hoje, não.

ALEX. Hoje é sábado. Bote pra gelar o que você tiver!

Raimundo vai buscar uma cerveja no bar. Laura sai da segunda casa, usando máscara. Laura cumprimenta Alex com a cabeça. Laura atravessa a rua para colocar alguns sacos de lixo na lixeira.

JORGE. (apontando Laura). Inventou isso aí agora!

ALEX. (fazendo graça). O que é isso aí, Laura? Tá com medo de pegar doença da gente, é?

LAURA. (atravessando a rua de volta e levantando a parte inferior da máscara para poder falar). Ganhei lá no trabalho, pra proteger do vírus.

JORGE. Só pode entrar na casa da mulher de máscara.

ALEX. (para Laura). E fica todo mundo de máscara lá?

LAURA. (levantando novamente a parte inferior da máscara). Não, só eu.

ALEX. Lá no prédio, é o contrário. (fazendo uma piada) Os moradores tudo de máscara, menos eu. Acho até bom.

LAURA (levantando novamente a parte inferior da máscara e entrando em casa). Pelo menos o vidro da portaria te protege!

Raimundo retorna com uma cerveja.

JORGE. Sim, Raimundo, tá gelada?

RAIMUNDO. Tá, desde ontem no freezer. Já vai começar a reclamar?

JORGE. (fazendo graça). De jeito nenhum, você é meu coligado.

ALEX. Apesar de ser o dono do corona-bar!

Alex, Jorge e Raimundo riem. Breve silêncio.

ALEX. E será que pega assim mesmo?

JORGE. Assim como?

ALEX. Assim, no ar.

JORGE. O vírus? Ah, não sei. Cada um diz uma coisa, mas parece que é grave, tá cancelando tudo. Amanhã mesmo mesmo não vai ter jogo.

ALEX. Fiquei sabendo.

JORGE. (continuando) Disse que tá morrendo gente como a porra na China.

ALEX. (surpreso). Na China? Ah, meu amigo, a China é muito longe.

JORGE. Mas disse que tá morrendo gente aqui também, o povo que chegou de viagem que trouxe.

ALEX. (ainda surpreso). Da China? Não é possível!

JORGE. Não só da China, de outros países também.

ALEX. É… Sei não.

JORGE. (para Raimundo). Bote um sonzinho aí, vá!

Raimundo sai e liga na caixa de som um sertanejo antigo (Xitãozinho e Xororó, por exemplo) num volume baixo. Raimundo olha pra cima, observando.

ALEX. Isso chegou aqui foi no carnaval então.

JORGE. O que?

ALEX. Esse vírus. Não foi o povo de fora que trouxe?

JORGE. É, pode ser, mas acho que é mais o povo que viajou e que tá voltando agora.

ALEX. Eu não sei, disse que não pode aglomeração. E carnaval é o que?

JORGE. (eufórico). Ave Maria, pura aglomeração! Foi bom, viu? Saí no Olodum depois de dez anos. (para Raimundo que ainda está no bar) Raimundo, bote um Olodum aí!

Raimundo muda o som para uma antiga música da banda baiana Olodum, “Vem meu amor”.

ALEX. Você foi?

JORGE. Pro carnaval?

Alex confirma com a cabeça.

JORGE. Oxe, demais! Fui todos os dias esse ano, que ano passado eu trabalhei.

ALEX. Esse ano eu trabalhei.

JORGE. Eu já troquei meus dias antes, trabalhei domingo, repus falta dos outros, só pra ficar livre. Foi bom, viu?

ALEX. Acho que eu não tenho mais pique.

JORGE. (levantando, dançando com sentimento de saudade, cantando a letra da música, copo à mão). “Vem, meu amor, me tirar da solidão. Vem, meu amor, me tirar da solidão…”

ZENITO. (entrando, uniforme de motorista de ônibus, cantando junto e dançando). “Vem para o Olodum, vem dançar no pelô. Vem, meu amor, chega pra cá, me dá a mão.”

Raimundo aumenta o volume do som.

ALEX. (ainda sentado, tímido, mas cantando junto) e RAIMUNDO. (chegando com copo à mão e cantando junto, também tímido). “Vem, meu amor, me tirar da solidão. Vem, meu amor, me tirar da solidão. Vem para o Olodum, vem dançar no Pelô. Vem, meu amor, chega pra cá, me dá a mão…”

ALEX, JORGE, RAIMUNDO e ZENITO. (cantando com mais energia). “E fico assim o tempo todo a te esperar. Até que um dia você possa se tocar e vir correndo me tirar da solidão. E só assim conquistarei seu coração. Vem, meu amor, me tirar da solidão. Vem, meu amor, me tirar da solidão…”

Raimundo olha pro alto, ao redor, e volta a baixar o volume do som.

JORGE. (levantando o copo, em gesto de brinde). Bom demais, meus amigos! Não perco por nada.

ZENITO. (com um gesto, pedindo um copo a Raimundo). Achei que o corona-bar não ia abrir hoje!

RAIMUNDO. (saindo pra buscar o copo). Tá aberto, mas tem pouca cerveja.

ZENITO. (imitando voz de megafone, falando um pouco mais alto). “Raimundo, por favor, em nome da saúde de nossa população, feche esse corona-bar.”

Alex, Jorge e Zenito riem um pouco mais alto.

VOZ DE LONGE. Vão pra casa! Irresponsáveis!

Alex, Jorge e Zenito procuram de onde vem a voz, olhando para o alto.

JORGE.(gritando, em resposta). É o que, rapaz?

ZENITO. (gracejando). Acabei de chegar e já vou pra casa? Logo amanhã que é minha folga? Tá de brincadeira!

JORGE. (mesmo gracejo). Pois é, nem comecei ainda.

ALEX. (mesmo gracejo, pro alto). E você é segunda-feira pra me mandar ir pra casa?

Alex, Jorge, e Zenito riem. Raimundo retorna com uma cerveja e um copo para Zenito.

ALEX. Agora, veja só, (imitando a voz do prédio) “vão pra casa”.

JORGE. E aqui é o que? Não é casa não, é?

ALEX. O pessoal desses prédios adora dar uma opinião aqui na rua, já repararam?

JORGE. Isso porque o prédio é da rua de trás, imagine.

ZENITO. Ah, mas foi o dia todo isso na rádio. Vocês acreditam que, quando eu tava circulando ali pelo centro, tinha uma senhora assim coitada, andando, distraída, aí passou um carro, carrão com uns playboy, aí uma menina gritou: (imitando, pronúncia em inglês) “coronavirus”! A senhora deu um pulo, fiquei com medo que caísse pra trás. Eu comentei com o cobrador na hora, quase mata a senhora do coração. E saíram rindo, achando o máximo.

ALEX. (pronúncia em inglês). Coronavirus?

JORGE. Em inglês é assim.

ALEX. Que coisa mais sem graça.

JORGE. Mas é assim que se fala.

ALEX. Não. Essa história da senhora.

JORGE. (lembrando). Ah, eu que quase me mijei hoje no mercado com isso de (pronúncia em inglês) coronavirus, porque tinha uma gringa querendo informação e, mesmo ela fazendo toda mímica do mundo, ninguém conseguia ajudar ela. E ela falando lá de longe por causa do vírus. Aí teve uma hora que ela começou a repetir: (pronúncia em inglês) coronavirus, coronavirus, coronavirus… E a gente nada. Aí, Marquinho, que trabalha no caixa, entendeu e perguntou à gringa: (pronúncia em inglês) “coronavirus?”, e a gringa toda feliz “yes!”. Aí Marquinho disse pra gente: “ela tá falando coronavírus!”, aí todo mundo “ah, sim, coronavírus, claro!”. Aí ficou um olhando pra cara do outro e Marquinho olha pra gringa e pergunta: (pronúncia em inglês) “coronavirus o que?”, e a gringa ficou sem entender nada, aí voltou a repetir (pronúncia em inglês) “coronavirus, coronavirus, coronavirus”. Ah, meu amigo, no começo tava até engraçado, tentei ajudar, fiz um monte de gesto, mas aí começou a me dar um nervoso, só saí andando.

ZENITO. (rindo). Pelo menos, você pode sair andando. E eu que fico naquele banco sentado direto: bom dia, boa tarde, boa noite, passa no shopping?, vai pro fim de linha?, bom dia, boa tarde, boa noite… Faço muita cara de paisagem também.

ALEX. É como diz S. Madruga: nenhum trabalho é ruim, ruim é ter que trabalhar.

JORGE. Até que eu me divirto. Eu me sinto meio ator assim. Porque eu fico ali na entrada do mercado, sério; sim senhor, sim senhora, mas por dentro eu dou é risada. Essa gringa mesmo hoje…

ALEX. Eu só penso em vir pra casa. Não tô reclamando, não, mas dizer que eu me divirto já é demais.

Ouve-se barulho de panelas batendo vindo do alto e gritos com dizeres de descontentamento. Alex, Jorge, Raimundo e Zenito olham para o alto. Laura aparece na janela e olha para o alto também. Laura sai da janela e retorna usando máscara. Jorge pega o celular e aponta-o para o alto. Raimundo vai ao bar e retorna com uma panela para bater também, mas sem muito entusiasmo.

JORGE. (filmando com o celular, narrando). Aí, ó, vou filmar aqui pra vocês verem o que tá acontecendo aqui na rua. (se corrigindo, enfaticamente) Aqui na rua, não, que esse povo não mora em minha rua. No condomínio que tem aqui atrás da rua. Esses, que estão gritando agora, batendo panela, reclamando, são os mesmos que elegeram; que bateram panela da outra vez, se lembram?. (movimentando o celular de um lado para o outro) Podem ver! Os moradores dos prédios, ricos, agora tão reclamando. (falando mais alto) Agora, cambada? Agora? (voltando a baixar o volume da voz) Fica aqui meu registro pra vocês.

Jorge guarda o celular. Laura entra em casa.

ALEX. Todo dia agora isso?

ZENITO. São oito horas, quer apostar? (para Raimundo) Liga ali a televisão.

Alex, Jorge, Raimundo e Zenito vão pro bar. Raimundo entra no bar. Barulho de TV ligada. Ouve-se um pronunciamento.

ZENITO. É por isso. Pode desligar, Raimundo.

Raimundo desliga a TV. Alex, Jorge e Zenito voltam para mesa.

ZENITO. (enquanto caminha). Eu respeito Raimundo, por exemplo, bater a panela dele, cada um faz o que quer, mas eu não consigo, não.

ALEX. Ah, nem eu, que nada.

JORGE (debochando). Aí essa gritaria agora; esse chilique, agora?

ZENITO. Vou gritar de volta: “vão pra casa, irresponsáveis! Sai da varanda! Para esse barulho!”

JORGE. O certo seria “Vão procurar o que fazer!”

Alex, Jorge e Zenito riem.

ALEX. (pensativo). Eu não sei não, viu?

ZENITO. Me deixe quieto.

JORGE. Aumenta o som aí, Raimundo!

Raimundo coloca outra música antiga de alguma banda baiana. Blackout.

 

Cena 2: Pedra que canta

 

ESPAÇO

Parte inferior de um viaduto. Há um barraco de papelão, um carrinho com material reciclável, um sofá velho, um colchão, uma garrafa com cachaça e mais objetos que possam indicar quem alguém circula, dorme, come por ali.

PERSONAGENS

Paulo

Inês

TEMPO

Segunda semana de isolamento social em Salvador.

Paulo está sentado em cima do colchão, olhar contemplativo mas também observador. Ouve-se esporadicamente o barulho de carros e pessoas passando. Ouve-se também, e com maior frequência, passarinhos cantando.

PAULO. (após um tempo, para os passarinhos). Vieram aproveitar o feriado? Que a cidade tá vazia? (ouve-se canto intenso de passarinhos) Eu também prefiro assim, apesar de tudo.

Ouve-se vozes de pessoas passando. Paulo observa com estranheza.

PAULO. (percebendo o aparecimento de uma fresta de luz, colocando o colchão sob a mesma, deitando-se) Coisa boa. (para os passarinhos) Eu também gosto do sol assim. (breve pausa) Dá uma sensação de vida, né, de coisa boa. (breve pausa) É porque é coisa boa mesmo. (breve pausa) Quando chove que bagunça tudo. (breve pausa) Na cidade, né? (gracejando, para os passarinhos) Mas se a gente tá é na cidade mesmo. (breve pausa) Na roça, é diferente.

Paulo, deitado sobre o colchão e recebendo a luz do sol, fecha os olhos. Após um tempo, ouve-se vozes de pessoas passando. Paulo abre os olhos e observa com estranheza. Paulo percebe uma máscara cirúrgica voando. Paulo pega a máscara com cuidado e coloca-a em uma grande pedra próxima, como se vestisse um rosto. Paulo volta a deitar e a fechar os olhos. Após um tempo, ouve-se novamente vozes de pessoas passando. Paulo abre os olhos, observa as pessoas e se levanta. Paulo pega a pedra, que está “vestida” com a máscara, e coloca-a na frente do próprio rosto. Paulo caminha com a pedra à frente do rosto, fazendo gestos, mudo, uma espécie de mímica e aquela pedra sendo sua máscara. Paulo se diverte. As vozes somem. Paulo coloca a pedra no chão novamente e volta a se deitar para o “banho de sol”. Paulo percebe que o feixe de luz se deslocou. Paulo muda o colchão de lugar em busca do feixe de luz e deita-se novamente. Após um tempo, entra Inês segurando um saco. Inês pega um pedaço de papelão que está próximo ao barraco e coloca-o também embaixo do feixe de luz, mas a uma certa distância de Paulo. Inês se senta e fecha os olhos.

PAULO. (para Inês). Aproveita que é coisa de quinze minutos pra acabar.

INÊS. Ele vai andar.

PAULO. Mesmo assim é rápido.

Paulo e Inês fecham os olhos sob o raio solar.

INÊS. (após um tempo, jogando para Paulo o saco que trouxe consigo). Pega aí.

PAULO. (segurando o saco). Já comeu?

INÊS. Eu já.

Paulo abre o saco, tira de dentro uma garrafa e bebe água; depois tira uma marmita e come.

INÊS. (percebendo a pedra “de máscara”). Ganhou?

PAULO. Achei.

INÊS. Então melhor não usar.

PAULO. Já tem dona, não tá vendo?

INÊS (após um tempo observando). Ficou bom nela.

PAULO. É feriado de que hoje?

INÊS. Que feriado, doidão?

PAULO. Esse deserto.

INÊS. O pouco movimento?

Ouve-se vozes ao longe. Paulo deixa a marmita ao lado e se levanta; pega a pedra com máscara e coloca-a à frente do rosto. As vozes se aproximam. Paulo faz gestos e mímicas como se estivesse a se comunicar com alguém que passa. As vozes vão sumindo. Paulo sorrindo coloca a pedra de volta no chão e senta-se no colchão novamente. Inês ri. Paulo volta a comer.

PAULO. Pra entrar no clima do feriado.

INÊS. Que feriado, rapaz? Hoje não é feriado!

PAULO. Tá parecendo. Nem o centro de reciclagem abriu pro café da manhã, aliás, você me salvou com essa marmita.

INÊS. É por causa do vírus, pô. Não tá abrindo nada.

PAULO. Que vírus?

INÊS. O vírus, doido.

PAULO. Hoje é dia do vírus?

INÊS. (rindo). Eu fiquei sabendo esses dias também. Tá rolando um vírus aí, mortal.

PAULO. (fazendo um rap). Tá rolando um vírus aí, ele é mortal. Tá rolando um vírus aí, original.

INÊS. Aí tão mandando todo mundo ficar em casa pra não pegar.

PAULO (se dando conta, rindo). Esse povo de máscara é por isso?

INÊS. É, pô.

PAULO. (após breve reflexão). Vixi.

INÊS. Passei ali em S. Antônio antes de ontem e a TV tava ligada. (pausa) Disse que mata.

PAULO. Vixi.

Paulo e Inês movem colchão/papelão para baixo do feixe de luz que se deslocou novamente.

INÊS. Eu fiquei com medo, não vou mentir.

PAULO. (refletindo). É por isso que tem menos gente oferecendo comida esses dias.

INÊS. É por isso.

PAULO. Devem tá com medo de pegar esse vírus da gente.

Silêncio.

INÊS. (gracejando). Quer dizer que você achou que era feriado há dez dias?

Paulo e Inês caem na risada.

PAULO. Não, veja bem, não mudou muito. Eu achei estranho o povo não aparecer dando comida, mas fora isso… Tô achando tudo igual… (pausa, gracejando) Esse povo de máscara achei que fosse alguma alucinação, sei lá, da fome!

Paulo e Inês riem.

INÊS. O bom é que você só anda sozinho mesmo.

PAULO. E o que tem isso?

INÊS. Porque aí não pega de ninguém, se tá só.

PAULO. Mas e aí como é que tá a coisa das comidas? A Igreja, o centro, não vai abrir nada?

Inês faz gesto de quem não sabe a resposta.

PAULO. Danou-se!

INÊS. Eu achei que fosse aparecer alguém com máscara, luva.

PAULO. (gracejando). Aparecer como se o povo tá é sumindo?

INÊS. Tô falando dos serviços mesmo, as assistentes.

PAULO. É, nunca mais.

INÊS. Eu fico meio assim porque tô com a imunidade baixa.

PAULO. (breve reflexão). Acho que a minha tá alta.

INÊS. (rindo desacreditada). Alta o que, Paulo? Que dia você comeu direito?

PAULO. Acabei de comer!

INÊS. A gente nunca tá com a imunidade alta, não, Paulo. Se a gente demora de se alimentar?

PAULO. Esses dias tá é demorando mesmo. (pro céu) Pô, seu vírus!

INÊS. Pior que fui vender hoje lá no centro e cadê? Nada nem ninguém.

PAULO. (se levantando, busca um saco cheio de remédios). Toma o que pra esse vírus? Talvez eu tenha.

INÊS. Tudo remédio velho.

PAULO. Se precisar, funciona.

INÊS. Acho que não tem remédio não, só ficar usando isso mesmo: máscara, luva, pra não pegar dos outros.

PAULO. (olhando o saco). Algum remedinho deve servir.

INÊS. Onde é que você arranja essas coisas?

PAULO. Eu sou hipocondríaco, todo mundo sabe.

INÊS. Vou te dar um toque. É bom lavar as mãos pelo menos de vez em quando. Lá embaixo da outra ponte tem um cano que desce.

PAULO. Lá é cheio demais. Você mesma disse que não pode ficar com muita gente. E eu não gosto, Inês, daquele barulho.

INÊS. Eu sei, mas você tá se lavando onde?

PAULO. Tem uma construção ali que os trabalhadores deixam.

INÊS. E eles tão vindo?

PAULO. Pior que não.

INÊS. Vai lá na ponte, pega água, volta e se lava aqui então.

PAULO. Na construção tinha água de beber também. Essa água aí não é de beber.

INÊS. Tem gente que bebe.

PAULO. Deus é mais.

INÊS. Mas serve pra lavar as mãos.

PAULO. E o resto?

INÊS. O resto também se você quiser.

Silêncio. Paulo se levanta, pega a pedra com máscara e volta a brincar colocando-a em frente ao rosto e fazendo gestos, mímicas. Inês ri.

PAULO (com máscara à frente do rosto). Acho que quem tem os anticorpos da rua não pega nada, não, viu?

INÊS. Tem isso não, rapaz.

PAULO. (ainda com “máscara”). Deus é à frente de tudo, Inês.

INÊS. Sei não, doido.

Paulo continua brincando com a máscara. Inês observa, se diverte.

 

Cena 3: Casa dos outros

 

ESPAÇO

Sala de uma casa simples: sofá de três lugares; hack grande com uma TV LCD grande, um aparelho DVD, um som, alguns CDs, porta-retrato com foto de família, uma bíblia aberta, algum santo ao lado; mesa pequena em um canto com 3 cadeiras; crucifixo médio pregado à parede; uma boneca pequena jogada no chão.

PERSONAGENS

Jorge

Laura

Celina

TEMPO

Terceira semana de isolamento social em Salvador.

Celina está sentada no sofá e assiste TV. Após um tempo, Jorge entra pela porta da rua, uniforme de segurança, máscara cirúrgica à mão.

JORGE. (colocando a mochila e máscara na mesinha próxima à porta, cumprimentando). D. Celina…

CELINA. Esqueci que tava trabalhando só meio turno.

JORGE (tirando os sapatos). Essa semana é toda de manhã. Semana que vem troca, é de tarde.

CELINA. É bom que fica mais com os meninos, descansa também.

JORGE. Quero ver é o salário.

CELINA. Não falaram nada?

JORGE. (entrando pro banheiro). Tamo negociando.

Jorge entra no banheiro. Celina se levanta, entra na cozinha. Barulho de panela, liquidificador. Celina sai da cozinha segurando um prato com comida e um copo com suco. Celina coloca prato e copo na mesa. Após um tempo, Jorge sai do banheiro, roupa de casa, senta-se em uma das cadeiras à mesinha, come. 

JORGE. (após um tempo). É de ontem?

CELINA. Laura atrasou hoje na hora de sair, não deu tempo de fazer nada.

JORGE. E os meninos?

CELINA. Eu fiz uma coisinha pra eles.

JORGE. Não. Tão onde?

CELINA. Ah, no quarto, cochilando. Acabaram de almoçar também.

JORGE. Não fazem nada o dia todo, né?

CELINA. E vão fazer o que? Quando tem, Laura faz o dever com eles.

JORGE. Eu é que tô agoniado.

CELINA. Entendo, meu filho, suas distrações né. (silêncio) Os meninos acordam já, já.

Celina volta a assistir TV. Após um tempo, Jorge termina o almoço e entra para o quarto. Celina levanta, recolhe o prato e o copo da mesa, entra para a cozinha. Celina volta a se sentar no sofá e assistir TV. Após um tempo, ouve-se barulho de criança no quarto.

JORGE. (gritando de seu quarto). Oh, esse barulho aí.

Celina vai até a porta do quarto em que estão as crianças e faz sinal para falarem mais baixo, apontando na direção do quarto onde entrou Jorge. Celina volta a se sentar no sofá e assistir TV. Após um tempo, Jorge sai do quarto e chega à porta do outro quarto onde estão as crianças: olha e sai. Jorge entra na cozinha. Jorge sai da cozinha segurando um saco de lixo. Celina observa que Jorge voltou da cozinha usando um par de sandálias.

JORGE. (abrindo a porta para sair). Vou levar o lixo e volto.

Celina assente com a cabeça. Diminuição da luz representando a passagem do tempo. Celina continua sentada no sofá. Ouve-se barulho incessante e mais alto de criança no quarto. Após um tempo, Laura entra pela porta da rua, usando máscara.

LAURA. (tirando o sapato, cumprimentando). Minha mãe.

CELINA. Oi, minha filha.

LAURA. Ave Maria, que zuada.

LAURA. (entrando para a cozinha segurando os sapatos dela e os de Jorge, as chaves dela e a mochila de Jorge; apontando com o olhar para a mochila de Jorge). Tá aí?

CELINA. Chegou, comeu e saiu.

Laura entra na cozinha. Celina assiste TV.

LAURA (saindo da cozinha, sem máscara, e entrando no banheiro, para Celina). A senhora pega minha toalha? É a vermelha, no varal.

Laura entra no banheiro. Celina entra na cozinha e volta com a toalha à mão. Celina abre a porta do banheiro e deixa a toalha dentro. Ouve-se ainda mais alto o barulho das crianças no quarto.

CELINA. (entrando no quarto onde estão as crianças, voz de dentro). A mãe de vocês chegou, pelo amor de Deus!

As crianças riem mais alto. Celina volta a se sentar no sofá. Celina fica pensativa. Laura sai do banheiro.

LAURA. (pegando o controle remoto que está jogado no sofá e diminuindo o volume da TV). Agora só quarta-feira.

CELINA. Graças a Deus.

LAURA. E os meninos?

CELINA. Essa gritaria aí.

Laura vai até o quarto onde estão as crianças, entra. Ouve-se as crianças comemorando a chegada de Laura.

LAURA (saindo do quarto, para as crianças que estão dentro). Falem mais baixo um pouco que eu e a avó de vocês tamo conversando. (sentando no sofá). Eles tão assim nessa idade.

CELINA. Não me obedecem de jeito nenhum. (breve pausa) Mas também prender duas crianças assim dentro de casa.

LAURA. Não é porque eu quero.

CELINA. Os netos de D. Joana tavam na rua hoje, bateram aqui.

LAURA. A senhora abriu?

CELINA. Mas ficaram de longe.

LAURA. Eu já falei com D. Joana que os meninos não vão sair aqui.

CELINA. São os únicos na rua…

LAURA. Mas é assim que tem que ser. (breve pausa) E a senhora abriu por quê? Deixasse bater. Já falei pra trancar a porta e esconder a chave.

CELINA. Você não conhece seus filhos? Acha que eles aceitam? Só quando é você ou Jorge. Comigo aqui sozinha, vira um inferno, Deus que me perdoe.

Silêncio.

LAURA. Eu não sei, minha mãe. Acho que vou levar eles comigo quarta-feira.

CELINA. De jeito nenhum. Depois de tudo que você mesma me contou? Aquele povo não gosta de seus filhos. E você ainda corre o risco de perder o emprego.

LAURA. Mas é muito pesado pra senhora sozinha.

CELINA. De jeito nenhum. Já passei por coisa pior.

LAURA. Os meninos vão ficar trancado aqui sabe lá Deus até quando.

CELINA. E, se você levar eles, não dá no mesmo? Não vão ter que sair de casa?

LAURA. Mas é diferente. Eu tô olhando, boto pra lavar mão, ficar de máscara… Eu me viro. (silêncio) É isso. Eu só tô indo três dias agora. Levo eles comigo e a senhora volta pra casa, é melhor.

CELINA. De jeito nenhum que meus netos não vão pra lá com você de novo.

Silêncio. Laura e Celina assistem TV num volume que quase não se escuta nada, distraídas.

CELINA. (levantando e indo em direção à cozinha). Eu tô preocupada, Laura.

LAURA. Eles vão sobreviver.

CELINA. (para em pé na porta da cozinha). Não, minha filha. Preocupada com seu casamento.

LAURA. (um pouco irritada). E a senhora quer que eu faça o que?

CELINA. Parar de brigar com ele porque ele quer fazer as coisas dele.

LAURA. Eu já parei. Ou ele por acaso tá aqui agora e eu não tô vendo?

CELINA. (suplicante). Mas quando ele chegar, não fale nada.

LAURA. Não adianta, eu tomando um monte de cuidado pra sair de casa, os meninos aqui trancados com a senhora por causa do vírus e Jorge na rua pra cima e pra baixo, bota a máscara quando quer, do jeito que quer… É de matar.

CELINA. Mas não fale nada não, já viu que não adianta.

LAURA. Não vou falar.

CELINA. Ele em casa acho que é até pior, assim preso.

LAURA. Quando não tava preso já era meio ruim né, a bebida.

CELINA. (após breve reflexão). Outro dia, ele deu cerveja pra Jorginho experimentar.

LAURA. Ah, minha mãe, não me conte nada não.

CELINA. Eu tô querendo te mostrar que às vezes é melhor ele ficar na rua do que aqui dentro. (silêncio) Ele fez brincando, mas partiu meu coração, um menino pequeno desse. (silêncio) Eu posso levar os meninos comigo lá pra casa, tem mais gente pra cuidar comigo.

LAURA. Jorge não vai querer. (debochada) Porque filho dele é ele que cria.

CELINA. Será que eu conversando com ele…

LAURA. (interrompendo). E eu também não quero ficar com ele aqui sozinha.

Silêncio.

CELINA. (dando um beijo na cabeça de Laura). Vou deitar.

Laura só responde com um gesto de cabeça. Celina sai. Laura aumenta o volume da TV, mas está visivelmente pensativa, distraída. Após um tempo, ouve-se o barulho da chave, Jorge entra, um pouco bêbado.

JORGE. (tirando as sandálias e colocando as chaves sobre a mesinha). Olha, minha esposa…

LAURA. (seca). Quer comer alguma coisa?

JORGE. (gracejando). Com essa má vontade? Não. Prefiro morrer de fome.

LAURA. Vá lavar as mãos, pelo menos, se não for tomar banho.

JORGE. (rindo). Eu gosto de tomar banho, Laura. (se despindo) Vou tomar banho, do jeito que você quer. (já de cueca) O que você quer mais? Vou fazer tudo do seu jeito, como você quer! Banho, álcool gel, máscara.

Laura só olha Jorge e não diz nada.

JORGE. Melhor, acho que hoje eu vou tomar banho com água sanitária. (silêncio) Quem sabe assim eu sirva pra você.

Laura levanta, pega sandálias, roupas e chaves de Jorge. Laura entra na cozinha.

JORGE. É por isso que eu fico na rua. Aliás, é por isso que os homens preferem a rua.

LAURA. Imagino.

JORGE (entrando pra cozinha, deboche). Ah, Jorge! Fazendo sempre tudo errado! Jorge sempre errado! Jorge não faz nada certo! Laura perfeitinha!

LAURA. As crianças tão dormindo.

JORGE. (da cozinha, rindo). E a velha também?

Ouve-se um barulho vindo do quarto de algo caindo no chão.

JORGE. (saindo da cozinha e entrando no quarto, voz de dentro). Até dormindo essa menina é destrambelhada!

LAURA. (entrando no quarto, voz de dentro). Depois, eu vejo o que foi. Vá lá pra fora, eles estão dormindo.

JORGE. Laura, pare de me dar ordem. Que coisa chata!

Jorge sai do quarto e Laura, de dentro, fecha a porta.

JORGE. (abrindo a porta, sem entrar no quarto). Ah, achei que tinha trancado de novo. (tom mais agressivo) Não tranque!

Jorge bate a porta com força e sai em direção à cozinha quando tropeça na boneca que está no chão. Jorge quase cai.

JORGE. (batendo na parede do quarto). Tinha que ser! (pegando a boneca do chão) Acorde essa menina, aí! (silêncio; batendo novamente na parede) Vamos, Laura, acorde sua filha, que eu quase caio agora, a ponto de bater a cabeça e morrer! (silêncio) Por que você não manda sua filha guardar as coisas e para de mandar em mim? Hein? É isso que eu queria saber! (silêncio) Laura, mande sua filha vir guardar a (debochado) bonequinha dela no lugar certo. Estou esperando! (batendo novamente na parede) Vamos, Laura! Estou mandando!

CELINA. (saindo do quarto). Fui eu, Jorge, que esqueci de guardar.

Celina estende a mão pra pegar a boneca da mão de Jorge. Jorge entrega a boneca sem graça, dando-se conta de que está de cueca. Celina entra no quarto novamente com a boneca. Jorge entra na cozinha. Após um tempo, Jorge sai da cozinha, vestido, com um copo de bebida à mão. Jorge senta no sofá e muda o canal da TV. Jorge, em pouco tempo, pega no sono, segurando o copo. Após um tempo, o copo vira sobre Jorge que não acorda. Luz vai diminuindo até o espaço ficar totalmente escuro. Novo dia. Celina está sentada à mesa comendo com Laura. Jorge entra de banho tomado, com uniforme de trabalho.

JORGE. (dando um beijo na testa de Celina). Bom dia, minha sogra.

CELINA. Bom dia, Jorge.

JORGE. (dando um beijo em Laura). Bom dia.

LAURA. Bom dia.

JORGE. Cadê os meninos?

LAURA. Ainda não acordaram.

JORGE. Essa hora? Tá na hora de acordar, não?

LAURA. Deixa eles descansarem. É bom que a gente descansa também. O dia é longo.

CELINA. Quer comer o que hoje, meu filho?

JORGE. Talvez eu não consiga vir almoçar.

LAURA. Não vai trabalhar meio turno?

JORGE. É, mas Zenito pediu pra passar na casa dele de tarde, pra consertar o fogão.

LAURA. E vai almoçar lá?

JORGE. (pegando a mochila e saindo pela porta da rua). Eu vou te avisando. Mas hoje eu não demoro tanto não. Vou chegar mais cedo pra pegar os meninos acordados também.

Laura e Celina apenas olham Jorge saindo pela porta.

CELINA. (sorrindo). Isso ele sabe que, com você aqui, se vier pra casa almoçar não sai mais!

Laura se mantém séria.

CELINA. (ainda sorrindo). Ô, minha filha, me desculpe dar risada, é que uns homens velhos desses, parece criança. Ontem, ele foi levar o lixo e não voltou mais.

Celina acha graça. Laura séria. Silêncio. Blackout.

 

Cena 4: O lugar mais bonito

 

ESPAÇO

Cemitério. Jardim com um vestiário ao fundo. Dois bancos de três lugares em pontos opostos.

PERSONAGENS

Luís Carlos

Roberval

TEMPO

Quarta semana de quarentena em Salvador.

Roberval faz a segurança do cemitério; anda de um lado para o outro. Roberval usa máscara de proteção. Silêncio. Ouve-se som de passarinhos cantando. Após um tempo, Luís Carlos passa ao fundo usando Equipamento de Proteção Individual: macacão, protetor respiratório com válvula de inalação, óculos translúcidos, acessório de proteção lombar, botas de cano longo, boné touca árabe. Luís Carlos carrega uma mochila com design infantil.

ROBERVAL. (percebendo a presença de Luís Carlos). Pode tomar banho aí mesmo, Luís Carlos.

Luís Carlos aponta para o vestiário pedindo confirmação.

ROBERVAL. Aí mesmo. Esse tem chuveiro.

Luís Carlos faz sinal de agradecimento e entra no vestiário. Roberval volta a andar de um lado para o outro. Após um tempo, Luís Carlos sai do banheiro usando uma roupa comum, máscara de proteção e mesma mochila.

LUÍS CARLOS. (sentando-se no banco). Valeu pelo toque.

ROBERVAL. Pouca gente sabe desse chuveiro. Vejo funcionário descendo até lá perto da administração pra tomar banho.

LUÍS CARLOS. É que esse lado aqui do cemitério é mais vazio, né? Não circula muita gente.

ROBERVAL. Só funciona a floricultura aqui. O resto é tudo lá embaixo. (silêncio) Eu gosto de trabalhar nessa área. Já trabalhei lá embaixo também, mas prefiro aqui. Dá pra ver tudo aqui de cima…

LUÍS CARLOS. (contemplando o horizonte). Muito túmulo, né?

ROBERVAL. O que?

LUÍS CARLOS. Que você vê o dia todo.

ROBERVAL. (achando graça). E você, não?

LUÍS CARLOS. Ah, é diferente. Daqui dá pra ver quase todos… São muitos.

ROBERVAL. De longe, parece só um jardim comum. (silêncio) Você vai se acostumar também. (silêncio) Pra te falar a verdade, acho que esse é o lugar mais bonito que eu conheço. Eu gosto de trabalhar aqui, me dá paz.

LUÍS CARLOS. Eu achei que ia ser pior quando comecei, que ia sentir medo, mas é um trabalho normal.

Silêncio. Roberval e Luís Carlos contemplam o horizonte. Ouve-se o som de pássaros cantando, folhas balançando. Luís Carlos se levanta, espreguiça-se.

ROBERVAL. E você tá esperando o que?

LUÍS CARLOS. Pra ir embora?

ROBERVAL. Não já tá na hora?

LUÍS CARLOS. (sentando-se novamente no banco). É, tá. (silêncio). Dando um tempo só. Essa rotina cansa.

ROBERVAL. (rindo). Tomou quantos banhos hoje?

LUÍS CARLOS. Pois é. A recomendação é tirar a roupa e tomar banho depois de todo enterro.

ROBERVAL. (ainda gracejando). E o álcool gel!

LUÍS CARLOS. Também. (pausa) No começo, eu tava com muito medo de pegar a doença, porque a gente fica muito perto.

ROBERVAL. E não é o que? Ainda bem que a roupa de vocês chegou logo.

LUÍS CARLOS. Com certeza, dá uma segurança. (pausa) Até me acostumei já. (pausa) Mas não tô levando pra casa, não.

ROBERVAL. Que nada, deixa aí.

LUÍS CARLOS. Minha família já acostumou até, não se preocupa mais, sabe que a gente tá equipado. (pausa) Mas, mesmo lavando com cloro e sabão, eu prefiro deixar aqui, ninguém pega.

ROBERVAL. Ah, pega mesmo não! A roupa ali pendurada, o povo passa longe. Se duvidar, prende até a respiração.

Roberval e Luís Carlos riem.

LUÍS CARLOS. Mas o pessoal tem preconceito mesmo, olha estranho. (pausa) Mas é muito tranquilo. (pausa) Claro que a gente corre riscos, né? Mas aí só Deus pra guardar.

Silêncio. Roberval e Luís Carlos contemplam o horizonte. Ouve-se o som de passarinhos cantando, folhas balançando.

LUÍS CARLOS. (levantando e se espreguiçando). Coragem pra levantar!

ROBERVAL. (sentando-se no outro banco). Demora pra secar?

LUÍS CARLOS. O equipamento?

Roberval confirma com a cabeça.

LUÍS CARLOS. (sentando-se). Até que não.

Silêncio. Roberval e Luís Carlos contemplam o horizonte. Ouve-se o som de pássaros cantando, folhas balançando.

LUÍS CARLOS. (após um tempo). Vinte e quatro.

ROBERVAL. Salvador, né?

LUÍS CARLOS. Salvador.

ROBERVAL. Ontem eram vinte e dois.

LUÍS CARLOS. (levantando-se). Mais dois.

ROBERVAL. (após um tempo, reflexivo). Meu amigo, eu já tinha visto filmes sobre pandemia e eram cenas horríveis… (pausa) Eu vou te falar: nunca imaginei vivenciar essas coisas. Mas, agora, quando você aparece assim vestido de astronauta, parece que tô vendo aqueles filmes em minha frente. (pausa) Esses velórios só com o caixão na sala, só com algumas pessoas da família, sem amigos. (pausa) Caixão lacrado, sem poder ser tocado na despedida. É muito triste!

LUÍS CARLOS. (sentando-se). Triste demais. (pausa) Acho que isso não acostuma. (pausa) Eu tenho pouco tempo aqui, né, não sei. (pausa) Mas eu fico mexido com a dor da família. (pausa) Mesmo sendo um sofrimento diário, mexe comigo. (pausa) Não tô falando nem pelo movimento de agora, o movimento tá normal. A quantidade de enterros que a gente fazia antes do vírus continua, não mudou muito. Mas é o clima. Isso aí que você falou.

ROBERVAL. É, o movimento tá o mesmo. (pausa) As pessoas aqui em Salvador morrem mais na bala do que com esse vírus.

LUÍS CARLOS. Eu tava pensando isso hoje.

Silêncio.

ROBERVAL. É mais essa coisa que tá no ar que tá pesando mesmo.

LUÍS CARLOS. (breve gracejo). No ar, literalmente.

ROBERVAL. Pois é. (pausa) Em quinze anos, eu nunca tinha visto isso: cemitério fechado pra visitação, só abrir pra sepultamento? Fica estranho, né?

LUÍS CARLOS. Fica. Aí fica mesmo do jeito que o povo acha que é o cemitério, aquela coisa sombria. Eu achava que era assim antes de trabalhar aqui, aquela coisa mal assombrada.

ROBERVAL. (leve sorriso). Tem gente que apressa o passo pra passar aqui na frente. Eu acho graça. (silêncio) Mas o clima aqui é bom, normalmente.

LUÍS CARLOS. (levantando-se). Era isso que eu ia dizer: normalmente. Já esses dias… (pausa, achando graça) Tá tendo muito velório online, sabia? (silêncio) Não tô faltando com respeito, é que as coisas tão estranhas.

ROBERVAL. Tão mesmo. Pensar que tem velório aqui com música, gente se abraçando, tocando violão.

LUÍS CARLOS. A primeira vez que eu vi eu estranhei. O povo cantando, sei lá.

ROBERVAL. Eu acho bonito.

Silêncio. Roberval e Luís Carlos contemplam o horizonte. Ouve-se o som de pássaros cantando, folhas balançando. Luís Carlos se senta.

ROBERVAL. (após um tempo, apontando para a mochila de Luís Carlos). Veio de super-herói hoje?

LUÍS CARLOS. (rindo). É de meu filho, tô revezando com a minha. Hoje, boto essa pra lavar e amanhã uso a minha. Depois de amanhã, o contrário… E vou trocando.

ROBERVAL. Tá certo mesmo.

LUÍS CARLOS. Ele tá sem aula…

Silêncio. Roberval se levanta e volta a andar de um lado para o outro.

LUÍS CARLOS. É, já vou.

ROBERVAL. Coragem!

LUÍS CARLOS. Chego em casa, desmaio na cama.

ROBERVAL. Eu tô saindo daqui mais abatido, com certeza.

LUÍS CARLOS. (se levantando e fazendo um gesto de despedida). Valeu, Roberval. Até amanhã.

ROBERVAL. Vá lá, até amanhã.

Luís Carlos sai andando de mochila nas costas.

ROBERVAL. (observando a mochila, chamando Luís Carlos). Mas, olhe! Vou te dizer: essa mochila aí não é à toa! Os coveiros são verdadeiros heróis. Tão lá, trabalhando com os mortos, diretamente. Carregam caixão, enterram. (pausa) Sempre achei bonita a profissão de vocês. Agora então…

LUÍS CARLOS. Não vou mentir pra você: quando coloco essa roupa de astronauta, como você falou, me sinto assim, sabia? (meio sem graça) Meio herói.

Silêncio. Luís Carlos sai. Blackout.

 

Cena 5: Eu ainda tô de máscara

 

ESPAÇO

Avenida movimentada. Prédios com pontos comerciais no andar inferior e casas no andar superior.

PERSONAGENS

Itamar

Júnior

Guga

Tainá

TEMPO

Quinta semana de isolamento social em Salvador.

Todos os pontos comerciais estão fechados, exceto uma padaria. Ao lado direito da padaria, vê-se a porta de uma casa entreaberta; à esquerda, um portão fechado. Na padaria, televisão ligada no jornal. Itamar está no caixa. Júnior e Guga estão sentados em bancos altos de lanchonete, segurando, cada um, um saco de pão. Todos assistem TV e usam máscaras protetoras.

REPÓRTER TV. O desmatamento na Amazônia em abril tem sido o maior dos últimos dez anos e já conta com mais de 500 km² de floresta derrubada. Quase um terço de toda essa área está no Pará. Organizações ambientais alertam para o desmatamento em terras indígenas e reforça que esta população está entre as mais vulneráveis à Covid-19.

GUGA. Como se fosse daqui até sua terra, Júnior.

JÚNIOR. O quê?

GUGA. Iguaí fica a 500 km daqui.

JÚNIOR. (para Itamar). Rapaz, o cara ficou traumatizado.

GUGA. Quase acaba o São João e a gente não chega lá.

ITAMAR. Só que é quilômetro quadrado. (silêncio) Daqui até Iguaí (desenhando uma reta no ar) são 500km. O desmatamento na Amazônia (desenhando um quadrado no ar) é de quilômetro quadrado.

GUGA. Sim, claro.

JÚNIOR. Entendi. É Iguaí pra todo lado.

Itamar e Guga sorriem. Itamar coloca a TV na função “mudo”.

ITAMAR. E como é que ficou a coisa lá do trabalho?

GUGA. A escala foi flexibilizada.

JÚNIOR. Ou seja, dia sim, dia não.

ITAMAR. (para Guga). E D. Rita?

GUGA. Minha avó não tá indo, não. Foi liberada.

ITAMAR. Graças a Deus.

Entra Tainá, vinda do portão à esquerda da padaria. Tainá usa máscara protetora.

JÚNIOR. (referindo-se à última fala de Itamar). ‘Graças a Deus’, não! (apontando Tainá) Graças a Tainá!

TAINÁ. (rindo). Deu certo então?

JÚNIOR. Ó, a gente aqui.

TAINÁ. (para Guga). E D. Rita?

GUGA. Foi liberada.

JÚNIOR. Era disso que a gente tava falando.

TAINÁ. Tá bom de vocês irem pra casa, né?

GUGA. Eu já falei.

ITAMAR. (rindo). Vai ser bonito Ronaldo passar aqui e ver vocês se protegendo do coronavírus na rua.

TAINÁ. Ainda mais você, Guga, com D. Rita em casa.

JÚNIOR. E D. Rita fica em casa?

GUGA. Tá ficando sim. (para Tainá) Depois que você falou com ela…

ITAMAR. Parece que a Vianas lá de baixo tá revezando também os funcionários.

TAINÁ. Eu conversei com Rogério. Tá com menos movimento de qualquer jeito.

GUGA. (gesto de despedida). Bem, já fui.

TAINÁ. (para Guga). Me mande uma mensagem depois sobre o movimento lá de sua rua, viu?

GUGA. Deu uma diminuída já. Ainda mais quem trabalha por aqui e foi liberado. (breve pausa) Acho que não tem nem cara de ficar na rua.

TAINÁ. É isso, Guga, entendeu? Senão eu me queimo.

GUGA. (saindo). Fique tranquila. Eu te falo.

TAINÁ. (para Itamar). Me dê quatro de sal.

Itamar vai pegar o pão.

JÚNIOR. E sua velha?

TAINÁ. Tá lá em cima, reclamando como o quê.

JÚNIOR. Quem mandou ser mãe da vereadora?

TAINÁ. (achando graça). Vereadora!

JÚNIOR. (continuando). Tem que dar exemplo.

TAINÁ. Ela não é nem só pela idade. Fez a cirurgia do coração em janeiro.

JÚNIOR. Tá em casa desde janeiro, né não?

TAINÁ. (rindo). Pior que é. Minha mãe foi a primeira a fazer quarentena aqui na cidade baixa.

JÚNIOR. Por isso que ela tava agoniada!

TAINÁ. E fica eu e ela. O dia todo. Nem Lúcia não tá vindo. Já proibi.

ITAMAR. (debochando). Ah, Lúcia tem que proibir mesmo. Só vejo pra cima e pra baixo com a máscara no queixo…

TAINÁ. Que nada. Minha velha.

Ouve-se vozes se aproximando. Itamar entrega o saco de pão a Tainá. Itamar, Júnior e Tainá vão para a entrada da padaria ver o movimento. Chega um grupo de pessoas com cartazes.

HOMEM COM MEGAFONE. A Avenida Tônio Cardoso está novamente fechada. Ninguém passa, nem ônibus, até que as autoridades tomem uma providência.

Grupo de pessoas anda mais um pouco. Para.

HOMEM COM MEGAFONE. A Avenida Tônio Cardoso está novamente fechada. Ninguém passa, nem ônibus, até que as autoridades tomem uma providência.

Grupo de pessoas sai andando.

ITAMAR. E hoje vai cair de novo.

JÚNIOR. Vire essa boca pra lá.

ITAMAR. Você vai ver se daqui a pouco ela não chega aqui.

JÚNIOR. Choveu a noite toda, Itamar. Ela passou por aqui e já foi.

ITAMAR. (rindo, pra Tainá). Já foi? Só Júnior mesmo, viu? (para Júnior) A chuva vai e não volta não, é, Júnior?

JÚNIOR. Se ela acabou de passar por aqui…

ITAMAR. É cada teoria.

TAINÁ. (subindo de volta). Vá pra casa, Júnior. Você tá só, é?

JÚNIOR. Eu tô. Mainha não conseguiu voltar do interior, não.

TAINÁ. (saindo e entrando pela porta de onde saiu). Sim, mas vá pra casa que é melhor pra todo mundo.

JÚNIOR. (fazendo sinal de ‘paz e amor’). Tainá 2020.

Júnior estende a mão em despedida para Itamar. Itamar recusa o gesto jocosamente.

JÚNIOR. Ah é, ainda não acostumei, não.

Júnior sai e entra na porta da casa ao lado, entreaberta. Itamar desabilita a função “mudo” da TV. Itamar volta a assistir TV.

REPÓRTER TV. (…) o morador afirma que a água chegou nesta noite à altura do joelho, mas que a situação não é novidade, já que ocorre há muitos anos por falta de manutenção adequada na via.

MORADOR TV. (exaltado). Nós já estamos nessa situação há mais de quarenta e cinco anos.

ITAMAR. (percebendo que Morador TV é a mesma pessoa que passara com megafone). Ah!

MORADOR TV. (continuando). Existem projetos que não foram verdadeiramente concretizados. A problemática existente aqui, a nascente dela, é na Baixa do Fiscal. Essa via aqui não é aberta. A última manutenção nessa via foi há mais de vinte anos. Depois, ninguém nunca mais fez.

REPÓRTER TV. Desde a última semana que chove na capital baiana. Em alguns dias, o temporal foi mais forte, com grande volume de chuva.

Itamar coloca a TV na função mudo e passa a fazer contas usando calculadora e caderno pequeno para anotações. Após um tempo, começa a chover. A chuva fica cada vez mais forte. Itamar baixa manualmente a porta de aço até metade. Chuva fica ainda mais forte. Júnior sai de casa e vê que a padaria não está aberta. Júnior vai entrar em casa e volta. Júnior cola o corpo no muro para abrigar-se da chuva. Júnior fica um tempo olhando para a própria casa. Júnior bate na porta de aço da padaria.

ITAMAR. (voz de dentro). Fechado! Só depois que a chuva passar!

JÚNIOR. (meio sem graça). Sou eu!

ITAMAR. (voz de dentro). Júnior?

JÚNIOR. Tô precisando de ajuda.

Tainá aparece na janela de cima.

ITAMAR. (voz de dentro). É a chuva?

JÚNIOR. A geladeira, tô precisando levantar… (confuso) Eu tô de máscara ainda.

ITAMAR. (subindo a porta de aço e saindo). Bora lá.

Júnior e Itamar entram na casa de Júnior. Tainá observa movimentação da janela.

ITAMAR. (após um tempo, saindo da casa de Júnior e percebendo que este continua do lado de dentro). Bora, rapaz! (entra na padaria)

JÚNIOR. (da porta de casa). Mas já tá em seu horário de almoço!

ITAMAR. Eu sei, mas você vai ficar aí como? Mais dez minutos dessa chuva e já viu.

JÚNIOR. Já é meio dia, Itamar.

TAINÁ. (da janela). Suba, Júnior!

JÚNIOR. (para Tainá). E D. Rosa?

TAINÁ. Minha mãe tá aqui.

JÚNIOR. Ontem eu tava na rua, Tainá, sem máscara. Deus me livre acontece alguma coisa…

TAINÁ (apontando pra rua). Ó a água que tá vindo. (silêncio) Minha mãe vai pro quarto, venha, o portão tá aberto!

Júnior fecha a porta de casa e vai entrar pelo portão, quando volta a abrir a porta de casa. Júnior volta segurando um par de luvas. Júnior fecha a porta de casa.

JÚNIOR. (entrando pelo portão). Eu posso ficar na escada, de boa.

TAINÁ. Oxi.

JÚNIOR. É de boa!

TAINÁ. E se precisar ir no banheiro? Suba, rapaz!

Tainá sai da janela. Júnior sobe. Itamar sai da padaria e fecha a porta de aço. Itamar está saindo quando a chuva fica ainda mais forte. Itamar retorna e se abriga no muro da padaria.

ITAMAR. (gritando). Tainá!

Tainá aparece na janela.

ITAMAR. Pra se alagar pelo teto.

TAINÁ. Pra se alegrar?

ITAMAR. (jogando a chave para Tainá). É, pelo teto.

TAINÁ. (pegando a chave). Ah, valeu!

ITAMAR. (abrindo guarda chuva e saindo). Qualquer coisa me ligue.

Tainá fecha a janela.


Bárbara Pessoa é dramaturga e arte educadora.

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