Ensaio | Literatura


Lorenzo de' Medici, o Magnífico em moeda de Niccolò Fiorentino - Samuel H. Kress Collection - National Gallery of Art - Washington, DC.

Giorgio Vasari, na “Vita di Sandro Botticelli, pittore fiorentino”, escreve sobre o tempo de Lorenzo de’ Medici dizendo que fu veramente per le persone d’ingegno un secol d’oro[1]; e André Chastel conta que, no século XVII (ou seja, dois séculos após Lorenzo) resolveram celebrar, na Toscana, “a era de ouro de Lorenzo, o Magnífico”, e os pintores oficiais foram encarregados por Giovanni Manozzi de compor, em 1635, três painéis alegóricos, afrescos que vemos ainda hoje no Palazzo Pitti: o primeiro representa Lorenzo em Careggi (onde se reunia a Academia Platônica florentina); o segundo o mostra como mecenas das artes, entre os artistas; e o terceiro, no governo de Florença. Chastel então comenta: l’homme d’État vient après le mecène et l’adepte de l’humanisme platonicien[2]. Chastel o faz em texto que chama “a lenda mediceia”, porque há a complexa infusão de fato e de amplificação retórica dos feitos do governante.

E no século XIX, se lemos as novelas das Chroniques Italiennes, de Stendhal, em particular “L’abesse de Castro”, achamos o seguinte sobre os tiranos das cidades italianas dos séculos XV e XVI:

O novo tirano era, de costume, o cidadão mais rico da defunta república, e, para seduzir o povaréu, ornava a cidade de igrejas magníficas e de belas pinturas. Tais foram os Polentini de Ravena, os Manfredi de Faenza, os Riario de Imola, os Cane de Verona, os Bentivoglio de Bolonha, os Visconti de Milão e, por fim, os menos belicosos e mais hipócritas de todos, os Medici de Florença[3].

Ainda que devamos exercer o não apenas cauteloso, mas necessário cum grano salis sobre discursos panegíricos (sobretudo quando discursos panegíricos eram parte indissociável daquele sistema complexo de clientelismo cortesão[4]), tão bem exemplificado pelo ceticismo da verve stendhaliana como pela mera evidência do que se chama em inglês statecraft, é notável que, dentre todos os muitos mecenas da arte na Itália dos séculos XV e XVI, há o destaque de Lorenzo de’ Medici. Pode-se pensar nele como o ponto culminante de um costume florentino com muitas peculiaridades, que resultaram nessa composição de personagem histórico e mito amplificado de um patrono das artes em sua “idade de ouro” (tópica que depois se dissemina com facilidade nas alegorias do poder do século XVI).

Há certos aspectos que, dentre outros, favoreceram Florença. Destaco os seguintes: o apontado por Alberto Tenenti em “Il mercante e il banchiere” [O comerciante e o banqueiro[5]], ou seja, que entre as três repúblicas (Veneza, Gênova e Florença), onde as duas atividades mais se desenvolviam, “aquela na qual a fortuna patrimonial se transformou mais explicitamente em predomínio político foi Florença”, observando ainda que o ambiente florentino de famílias de mesma atividade (como os Alberti ou os Albizi) facultou a possibilidade aos Medici, que se tornaram assim “capi efetivos do regime florentino por sessenta anos (1434-94)”; que em 1397 Manuel Chrysoloras (1355-1415) deixa sua Constantinopla natal para ir a Florença ensinar grego, onde fica uns três ou quatro anos. Lá, Chrysoloras ensina Leonardo Bruni (1369-1444), que chega a chanceler da cidade, escreve sua Historia e traduz Aristóteles e Platão, abrindo o precedente que levaria a Cristoforo Landino (1424-1498), Marsilio Ficino (1433-1499), Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494); que o Studio fiorentino era o único lugar da Europa onde se podia estudar grego no século XV[6]; que a “Paz de Lodi”, entre Florença, o papado e Nápoles (1455) foi importante enquanto durou, mas foi importante também quando rompida, pois daria então a Lorenzo a mecha da oportunidade de ser aclamado em face dos eventos da conspiração dos Pazzi[7] e conseguir o período que Vasari, entre outros, chamou áureo para as artes[8], a Pax Medicea.

Cosimo de’ Medici (1434-1464), avô de Lorenzo, deixara a poderosa herança, da Academia platônica em Careggi[9], dos livros e do mecenato artístico, plenamente desenvolvida em prática comum, como repete Vespasiano da Bisticci (1421-1498) várias vezes em seu precioso Vite di Uomini Illustri del Secolo XV [Vidas dos Homens Ilustres do Século XV], naquele capítulo abordando Cosimo e sua liberalità financeira para homens de letras, artistas e pensadores, nos casos sobretudo de Marsilio Ficino e Donatello.

Michelangelo mostra uma cabeça de fauno a Lorenzo, O magnífico (1635) - Ottavio Vannini, Palazzo Pitti, Florença.

Depois de assinalar como Cosimo mandara o banco fornecer semanalmente o dinheiro necessário para a vida e o trabalho de escultura de Donatello e mais quattro garzoni na sacristia de San Lorenzo, Vespasiano conclui: usava Cosimo di questa liberalità a uomini che avessino qualche virtù, perchè gli amava assai[10] [Cosimo usava de tal generosidade com homens que tivessem qualquer talento, porque muito os amava]. A hipótese mais correta ― e menos inocente ou interessada ― seria uma que incluísse o interesse de Cosimo, Piero e Lorenzo nas artes e letras, mas que levasse igualmente em conta o fato de que, sem ser família de antiga nobiliarquia, os Medici percebiam que se justificavam e eternizavam na ação consistente do patronato das artes, e isso se lê até mesmo em carta de Marsilio Ficino a Lorenzo, Quantum utile sit alere doctos [Quão útil é manter os doutos], de que traduzo o trecho abaixo:

Marsilio Ficino ao magnânimo Lorenzo de’ Medici: saudações.

Quase todos os outros homens ricos apoiam os servidores dos prazeres, mas tu apoias os sacerdotes das Musas. Eu te peço, continua, meu Lorenzo, pois aqueles outros acabarão como escravos do prazer, mas tu te tornarás o deleite das Musas. Foi por tua causa que Homero, o grande sacerdote das Musas, chegou à Itália, e alguém que até então não passava de mendigo e andarilho achou em ti doce hospitalidade. Protege em teu lar aquele jovem erudito em Homero, Angelo Poliziano, de modo a que possa pôr o rosto grego de Homero em cores latinas.

(…)

Continua a atrair tais pintores, Medici; pois outros pintores adornam os muros por um tempo, mas estes tornam seus habitantes ilustres para sempre[11].

Ficino, ele próprio um protegido dos Medici desde o período de Cosimo[12], falaria em cartas angelo politiano poetae homerico, e de como Lorenzo acolheu o dito Angelo Poliziano, sugerindo que continue a fazê-lo, não apenas porque, horacianamente, estará dando ao mundo algo aere perennius, mas também porque, ao dar ao mundo algo mais perene do que o bronze (ou, nesse caso, a distinção de Ficino entre pintores que pintam muros com tinta de pintores que pintam folhas com palavras), é assim que Lorenzo permanecerá ilustre para sempre: eis o critério expresso em quantum utile.

E assim Lorenzo o fez: como escreve Franco Cesati, “uma parcela considerável dos bens da família foi gasta na aquisição de manuscritos antigos, que seus emissários iam buscar até mesmo no distante Oriente”, de que, acrescenta, “se constituiria o núcleo inicial da Biblioteca Laurenziana[13], empregando dezenas de copistas e miniaturistas[14] para tanto; também renovou a Universidade de Pisa, e refundou o Studio fiorentino, entre outras coisas, o centro de grego na Europa, de onde veio, em 1488, a primeira edição impressa de Homero. Além de empregar Angelo Poliziano, protegeu Pico della Mirandola[15], especialmente quando fracassou o desejo do debate romano das 900 Teses[16], e Pico foi preso, escapando apenas por influência de Lorenzo.

Apesar de Lorenzo ser mais especificamente um homem de letras, e de ter sido agente (e protagonista) fundamental em um momento particularmente importante para as letras italianas, seu mecenato das artes por certo vai muito além das anedotas de Vasari, como aquela na qual Lorenzo teria visto um jovem Michelangelo esculpir em mármore uma cabeça de fauno velho e, notando que na boca semiaberta apareciam dentes perfeitos, teria observado que é raro que os velhos tenham tais dentes, o que levara Michelangelo a lascar um deles com o buril. Lorenzo mandou construir ou fortificar edificações[17], e estiveram sob seu mecenato direto ou do empório da família, naquele período, diversos pintores e artífices, como o próprio Michelangelo, Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli, entre outros. Lorenzo até mesmo quis que Spoleto lhe cedesse o corpo de Fillipo Lippi para sepultamento na catedral de Florença, mas, como anotou Burckhardt, “teve de se contentar com um cenotáfio[18]. Empenhava-se com variado interesse, em particular como Ficino escreveu naquela carta, e favorecia os pintores de palavras, além do “humanismo platônico”, como definiu Chastel acima.

Entretanto, o mecenato dos Medici tem ainda outro aspecto além da obrigação do mecenato e o da fixação do nome no poder, e para gerações futuras como exemplum (e é novamente Gombrich a apontar), pois, católicos, os senhores de Florença se encontravam em um delicado impasse: havia a prática de juros dos bancos ― uma das principais atividades dos Medici ―, a usura, condenada pela Igreja[19]. Gombrich escreve: “Para um homem devoto, como Cosimo demonstrou ser, o pecado implacável [o incômodo com a riqueza, mencionado por Vespasiano nas Vite] pode não ter sido nenhum crime em particular, mas seu próprio modo de vida. Suas próprias riquezas gritavam contra si. Não era possível ser banqueiro sem quebrar a injunção contra a usura, fossem quais fossem os métodos técnicos de evasão empregados[20].

Esses “métodos de evasão” consistiam, por exemplo, em financiar obras em igrejas, ou devocionais de alguma espécie, ou de utilidade pública. A quantidade delas, por um motivo ou outro, foi grande, e veem-se as palle (bolas) do escudo dos Medici por toda parte em Florença, assinalando as construções comissionadas pela família.

Lorenzo teve bons professores: um de seus preceptores no Studio fiorentino foi Cristoforo Landino, que lhe ensinou latim, retórica e certamente lhe transmitiu muito do que sabia sobre a poesia de Dante (redigiu um comentário sobre a Commedia) e de Petrarca (publicou uma edição do Canzoniere).

Mas a onipresença da poesia daquele doce Francesco como poeta mais importante da língua é em geral muito exagerada, e não apenas em sua ascendência sobre Lorenzo. Um dos motivos é que no Petrarca do Canzoniere há um só tema: madonna Laura; que esse tema serve um io igualmente repetitivo e insistente; que a imitação de Petrarca[21] aplainou o stilnovismo e apagou muitas vezes as marcas dos burleschi e realistici dos séculos XIII e XIV, como por exemplo Folgóre da San Gimignano (1270-1332); e que Petrarca tem mais a ver com o modelo de exportação da poesia italiana da época, no que basta ler alguns autores do século XVI, ingleses como Thomas Wyatt ou o Conde de Surrey, portugueses como Sá de Miranda e Luís de Camões, franceses como Clément Marot ou Louise Labé, espanhóis como Juan Boscán e Garcilaso de la Vega, etc. que partem de seu italiano menos característico, de vocabulário reduzido e de tendência ilustre[22].

Embora os poetas italianos dos séculos XV e XVI partissem das experiências anteriores no volgare, haviam igualmente desenvolvido a crítica dos “vícios” de seus predecessores. Por exemplo, o “quase divino[23] Pico della Mirandola escreve, em sua correspondência com Lorenzo de’ Medici, comparando a poesia de Il Magnifico com a de Petrarca: in illo est quod amputes, in te nihil redundans et nihil curtum [nele há o que cortar, em ti nada é redundante ou curto], com a intenção de favorecer o Magnífico diante de Petrarca, e, adiante, observa que Lorenzo tem a prudência de evitar problemas de res in Francisco [assunto em Petrarca] e verba in Dante [palavras em Dante[24]].

Ainda que seja evidente alguma adulação[25], não é demasiado dizer que Lorenzo tem tanto de Petrarca nos tópoi amorosos quanto tem dos poetas anteriores e até dos realistici e de Boccaccio, que traz em seus poemas o diferencial do olho atento das novelas do Decameron, da arte que se requer de um grande prosador. E a língua de Dante já não era a mais elegante ou cultivada, como pretendeu ensinar no tratado De Vulgari Eloquentia, a dulcior loquela que teria de ser a mais ampla e a mais apta a conter o sentido mais refinado possível, o de uma canção de amor ou o altíssimo decoro de quem, como na Commedia, escrevesse um poema teológico de rectitudo. No século XV, em que os estudos de grego, de latim e de retórica haviam retornado inclusive com a crítica filológica nascente[26], a lingua cortegiana era outra, que pressupunha inclusive o conhecimento do que viam como insuficiências anteriores.

A transformação do visível em visão de deuses e seres constantes permeia a obra de Lorenzo e Boccaccio[27], assim como permeia os sonetos de Matteo Maria Boiardo, ou os poemas em italiano e em latim de Angelo Poliziano. Sobre isso há uma frase especialmente oportuna na leitura que Gombrich faz da filosofia platônica de Marsilio Ficino:

Nada é, talvez, mais característico dessa filosofia do que esse modo de pensamento que permite que cada experiência seja transformada no símbolo de algo maior do que si mesma[28].

Gombrich ainda assinala, no mesmo livro, que Ficino produzia flutuações extremas de sentido interpretativo das alegorias ou potências figuradas pelos deuses, o que portanto não constituía, como por vezes se generaliza, um conhecimento fechado e dogmático. Ao contrário, penso que as aparentes contradições indiquem que se tratava algo muito vivo, em constante movimento[29].

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O arminho como alegoria da pureza (c. 1494) - Leonardo da Vinci, Fitzwilliam Museum, Cambridge.

Os poemas de Lorenzo seguem o princípio de que a Beleza perpassa simpaticamente seres e coisas, impregnando as almas de uns nas dos outros: as violetas são impregnadas da beleza de Lucrezia Donati, assim como Da Vinci faz com que o arminho branco, no retrato de Cecilia Gallerani, fosse um emblema de sua pureza[30]. Esteve também em contato com as melhores mentes de sua época, e a maior parte delas foi ele mesmo quem patrocinou.

Prova suficiente disso é o seu Comento sopra alcuni dei suoi sonetti [Comentário sobre alguns de seus sonetos, c.1480], texto que abre com a programaticamente humilde discussão de por que resolveu escrever sobre os próprios poemas; que prossegue definindo os tipos de poesia (abordando a elegia latina, o dolce stil novo, a canção) e chega ao soneto; que traça uma breve genealogia dos praticantes; que chega aos próprios textos, oferecendo uma leitura que parte da experiência da vida para as relações mais complexas (numa parte discute a então recente diferenciação da melancolia produtiva e da improdutiva[31]), e o platonismo. Já no Cortegiano, de Castiglione, é mencionado como uma autoridade talvez não menor do que Petrarca e Boccaccio[32]. Um trecho em que define a forma do soneto e seu uso é este:

É sentença de Platão que narrar breve e lucidamente muitas coisas não só parece admirável entre os homens, mas coisa quase divina. A brevidade do soneto não comporta sequer uma palavra em vão; e o verdadeiro assunto e matéria dos sonetos, por esse motivo, devem ser certa sentença aguda e gentil, narrada de modo conciso e restrita a poucos versos, fugindo à obscuridade e à dureza. Há grande semelhança e conformidade de estilo, dessa maneira, com o epigrama, quanto à agudeza da matéria e à destreza do estilo, mas o soneto é digno e capaz de sentenças mais graves, tornando-se, então, um tanto mais difícil. (…) As canções me parecem ter grande semelhança com a elegia (…) e por terem maior espaço em que possam vagar, não reputo tão difíceis quanto o soneto[33].

Lorenzo ainda acrescenta que escrever um soneto é difficillimo por causa de sua proximidade com o ritmo da prosa em hendecassílabos italianos, e que seria possível escrevê-los sem suono di versi; isto é, o soneto exigiria manipular musicalmente uma estrutura de argumento, prosaica, num claro decréscimo de qualidade cantável se comparada à canção, mas superando-a no que diz respeito ao artesanato exigido e à concisão.  

O importante a se salientar no caso é que a defesa do soneto, feita por Lorenzo de’ Medici, significa discordar frontalmente de Dante, que encarecia a canzone: Lorenzo enfatiza o trabalho necessário à compressão do argumento, o que exige igualmente uma habilidade concentrada em contrariar a vocação argumentativa e prosaica da forma, de modo que a dificuldade de manipulação do soneto — e de suas virtudes de concisão e filosofia — faz dele forma mais importante do que a da canção; é também um ponto importante porque sublinha a escrita dos sonetos, ainda naquele momento restrita quase que simplesmente à península itálica, mas que se tornaria extensiva à Europa e intensiva em quantidade nos próximos séculos.

Percebendo que o soneto sofria essa desvantagem em relação à canção, os poetas tiveram de redesenhar o som de tal modo que mudassem uma forma muito argumentativa em algo suave. Dante e seus colegas estavam ocupados com a dolcezza do vulgare (ou o “vulgar ilustre”), e sua ascendência sobre os sonetistas do Renascimento não é apenas patente como também reconhecida pelos próprios poetas. Os mestres mencionados por Lorenzo em seu Comento são Horácio, Ovídio, Tibulo, Catulo, Propércio, Dante, Guido Cavalcanti, Boccaccio, Petrarca[34]. Como lemos neste soneto do Canzoniere de Lorenzo, com o incipit musical que diz “Lascia l’isola tua tanto diletta”:

Deixa aquela ilha tua tão dileta,
deixa o teu reino belo e delicado,
Ciprina deusa: vem sobre o relvado
suave e verde em que um riacho deita.
Vem a esta sombra que a brisa espreita,
fazendo murmurar todas as árvores
ao som doce e amoroso de suas aves
e que esta por tua pátria seja eleita.
E se tu vens a estas claras linfas[35],
traz teu amado e caro filho contigo,
que aqui não se conhece o seu valor.
E tolhe a Diana as suas castas ninfas,
que agora seguem leves, sem perigo,
pouco prezando a virtude do Amor[36].

Ouvimos um eco do poema de Boccaccio, o Ninfale Fiesolano, no ponto de tolher a Diana suas castas ninfas, como Áfrico faz no Ninfale, e que constitui a ação daquele poema; e da ode XXX do livro I de Horácio, “O Venus Regina Cnidi Paphique”, que Lorenzo claramente emula nesse poema, igualmente invocando a mãe do Amor, e igualmente pedindo que traga consigo seu fervidus puer[37].

O Comento segue o modelo dantesco de prosimetron (texto em prosa, com poemas), a Vita Nuova. O livro, como vimos, compõe inicialmente a arte que professa, passa depois a uma narrativa amorosa, dotada de poemas agenciando instâncias amorosas exemplares, como, por exemplo[38]:

Belas, frescas, purpúreas violetas,
que aquela candidíssima mão colhe,
qual chuva ou então qual puro ar escolhe
tão belas flores pôr entre as eleitas?
Que orvalho, sol, ou ainda qual terra
tanta e vária beleza em vós recolhe?
Onde natura o olor suave colhe,
e o céu a tanto bem louvar se aferra?
Minhas caras violetas, a mão
vos elegeu entre outras, de tal sorte,
que de excelência e graça as fez ornar.
Aquela que colheu meu coração
e de vil o fez gentil e seu consorte,
é a quem deveis, não outra, sempre honrar.

[Minha senhora] se deleitava com a natureza, como com outras coisas gentis, e tinha em casa nuns vasos belíssimos certas violetas, às quais ela mesma socorria de água no calor excessivo, e de outras coisas necessárias a seu nutrimento. Escolheu então três violetas entre muitas outras que tinha; aquelas às quais ou a natureza quis mais bem, por fazê-las mais belas do que as outras, ou a fortuna, que antes das outras fez vir a elas aquela mão candidíssima. Tais violetas assim colheu e mandou dar-me; que, na verdade, nada vindo dela poderia melhor mitigar as minhas tantas dores. [O casal se encontrava separado]. No presente soneto fala-se portanto às três violetas acima citadas, as quais,  sendo por si mesmas de maravilhosa beleza, e sendo um dom da minha dama e colhidas por mão candidíssima, considerei que eram coisa que me parecia muito mais bela do que costuma produzir a natureza. E por isso convenientemente se pergunta, neste presente soneto, como é uso fazer a respeito de todas as coisas maravilhosas, sobre a razão de tanta excelência[39].

É evidente que um leitor do século XXI tem dificuldade de entender a necessidade de tantas hipóteses cheias de respeito, cheias de deferência; ou que esse mesmo leitor fareje sob aquele primero verso do soneto o primeiro verso da canção CXXVI do Canzoniere de Petrarca, Chiare, fresche e dolci acque [Claras, frescas e doces águas]; o soneto ainda rearranja e imita partes da famosa “Elegia V” de Angelo Poliziano, a que começa Molles o violae, veneris munuscula nostrae [Ó tenras violetas, presente da minha Vênus], como, por exemplo, na série de indagações sobre aquela mesma origem magnífica: quae vos, quae genuit tellus? quo nectare odoras/ sparserunt zephyri mollis et aura comas? [qual terra vos gerou? com qual néctar os zéfiros e a aura suave/espargiram vossa coma perfumada?].

Acreditava-se numa elaborada filosofia da ação da mente sobre a realidade, pois entendia-se que tornar visível o esplendor dispunha a mente e a vontade, numa intelecção estoica e platônica[40]. do mundo, assim como os antecessores os acompanhavam a cada passo, porque a arte propunha alinhavar toda a história de com quem se aprendeu: estabelecia continuidade, dava raízes e ramos àquilo que viemos a chamar cultura.

E então a linguagem também é alvo de mais do que o cuidado com a espécie mais nobre, por mais doce: trata-se de adequá-la às necessidades filosóficas que a estrutura platônica exigia, naquela nova rede de autores, como código aos iniciados que passarão do visível ao inteligível, reconhecendo e identificando em cada estágio as conjunções ― para utilizar o vocabulário de Ficino, que é devedor do que se lia como a antiga sabedoria egípcia e hierática de Hermes Trimegisto, por sua vez, veículo das estruturas místicas do Antigo Egito em seus ritos de ligar este mundo com o outro.

A linguagem exigia, então, as cláusulas de sentido para propor e imitar a delicadeza de algo belo, e, porque belo, também um código para a beleza imaterial e imortal que a tal imagem apenas indicia em sua natureza finita e corruptível; imagem porque, com Ficino, entende-se que a experiência visual contínua da beleza dispõe o caráter para reconhecer tanto sua contraparte terrena — mera sombra ou sinal —, quanto a adivinhar nela (e mesmo a ser favorecido por) a beleza divina, ou, como escreve o próprio Ficino, nos Argumentum et commentaria in Phaedrum [Argumento e comentários sobre o Fedro], de Platão, neste caso, o IV, “de furore poetico ceterisque furoribus et eorum ordine, coniunctione, utilitate” [Sobre o furor poético, os demais furores e a ordem, conjunção, utilidade de cada]: Sed postquam attentius sensibilem pulchritudinem spectaverimus, agnoverimusque divinam, deum tandem amamus ut pulchrum quem iam pridem dilexeramus ut bonum[41] [Mas após termos observado a beleza sensível mais atentamente, e reconhecido a beleza divina, então nós finalmente amamos a Deus como o belo, já muito antes o tendo estimado como o bem].

Isto é, Ficino propõe uma gradação da beleza sensível à beleza divina, supondo que o mecanismo da scala philosophica ajuste as proporções em todos os níveis, relacionando-os. E foi nesses termos que Ficino escreveu uma carta ao adolescente Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, ou “Lorenzo, o jovem”, primo do Magnífico, sobre arranjos para um desejável favorecimento de Vênus em sua vida, arranjos que propunham manter diante de seus olhos imagens minuciosamente compostas para reunir alegoricamente aquelas potências[42].

Lorenzo de’ Medici morreu em 1492, seis meses antes de Cristóvão Colombo aportar na América, continente que ganhou o nome de outro navegador que lhe acompanhava, Amerigo Vespucci, homem vindo do empório daquele outro, Lorenzino — aquele para quem se encomendou, com a receita místico-astrológica, a Nascita di Venere (c.1482-5) de Sandro Botticelli (1445-1510), e que foi mantida na villa medicea di Castello.

O chamado secol d’oro florentino — isto é, de certa forma, o século XV[43] — acabou em definitivo quando dos assassinatos por envenenamento com arsênico, em 1494, de Angelo Poliziano e Pico della Mirandola[44]; e, assim, a primazia de Florença como centro produtor e difusor de cultura na Europa. Veneza (juntamente com a Universidade de Pádua e seu notório grupo de aristotélicos) passa ao lugar de centro de irradiação, com Roma.

Pietro Bembo (1470-1547), veneziano, iria propor, no século XVI, uma revisão da língua italiana com base nos usos do século XIV, de Petrarca e Boccaccio, em oposição à de Dante Alighieri[45]. E o selo desse encerramento eu diria que foi a publicação, por Aldus Manutius (1449-1515), em Veneza, do belíssimo e ainda hoje misterioso código alegórico da religio amoris, da magia oculta em seu amplo repertório antiquário-místico, o Hypnerotomachia Poliphili (1499), de Francesco Colonna (c. 1433-1527), escrito numa mistura de latim e italiano, uma linguagem que, aliás, antecipa o Finnegans Wake (1939), de James Joyce (1882-1941)[46].


 

[1] Vasari, Giorgio. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti, Roma, Newton & Compton Editori, 1991, p.492: “foi, de fato, para as pessoas de engenho, um século de ouro”.

[2]“La Légende Médicéenne”, in: Chastel, André. Art et Humanisme a Florence au Temps de Laurent le Magnifique, Paris, Presses Universitaires de France, 1961, p.11: “o homem de Estado vem depois do mecenas e do adepto do humanismo ‘platônico’”.

[3] Le nouveau tyran fut d’ordinaire le citoyen le plus riche de la défunte république, et, pour séduire le bas peuple, il ornait la ville d’églises magnifiques et de beaux tableaux. Tels furent les Polentini de Ravenne, les Manfredi de Faenza, les Riario d’Imola, les Cane de Vérone, les Bentivoglio de Bologne, les Visconti de Milan, et enfin, les moins belliqueux et les plus hypocrites de tous, les Médicis de Florence. Stendhal. Chroniques Italiennes (introduction, chronologie, établissement du texte, notes, archives de l’oeuvre et index par Béatrice Didier), Paris, Garnier-Flammarion, 1977, p.63.

[4] Sobre esse assunto específico, interessa ler o ensaio de E. H. Gombrich, “The Early Medici as Patrons of Art”, in: Gombrich on the Renaissance, Volume 1: Norm and Form, New York, Phaidon, 2003, pp.35-57. Em art, lembrar que o cuidado linguístico e historiográfico de Gombrich não inclui poesia (e assim, também não inclui o papel de Lorenzo como poeta). E Gombrich matiza, no prefácio ao livro, algumas das afirmações de seu ensaio, de modo que interessa lê-lo sobre o tópico, igualmente. E os filósofos, os literatos, os pintores não tinham autonomia dentro desse sistema. Subordinados e súditos, Jean Starobinski discute o sentido histórico do que vai nomeado “adulação” em um ensaio importante: “Sobre a adulação”. O “prazer” de “ser julgado digno de fazer parte do ‘círculo’” (p.62), por exemplo, é um dos modos como descreve a pressão por reconhecimento e favores que facultem facilidades na corte, in: Starobinski, Jean. As Máscaras da Civilização (tradução de Maria Lúcia Machado), São Paulo, Companhia das Letras, 2001. No entanto, se é possível por um lado aduzir aspectos semelhantes e explicativos, por outro é necessário distinguir entre o tipo de corte italiana no século XV, no século XVI (até mesmo em função da cidade que se considerar) e a corte francesa dos séculos XVII e XVIII, pois algumas diferenças são tão vastas que praticamente não se fala da mesma coisa.

[5] Tenenti, Alberto. “Il mercante e il banchiere”, in: Garin, Eugenio. (a cura di). L’uomo del Rinascimento, Bari, Gius. Laterza & Figli, 2005, pp.203-36.

[6] Cesati, Franco. The Medici: Story of a European Dinasty, Firenze, La Mandragora, 1999, p.44.

[7] As moedas que foram cunhadas para a ocasião mostravam a efígie de Giuliano, o irmão morto, com a inscrição LVTVS PVBLICVS (luto público), e a de Lorenzo como SALVS PVBLICA (saúde pública).

[8] O fato de os Medici (particularmente Lorenzo) serem uma família de banqueiros, mas ainda mais comerciantes, ainda foi lido como um anátema no século XIX, nas conferências Sopra Niccolò Machiavelli do historiador Francesco de Sanctis (1817-1883), em que escreve: “Eis que sob as aparências de príncipes nos Medici tinha permanecido a alma de mercadores” (p.213). E, de uma família de nobreza recente, contraposto aos Pazzi, que retraçavam sua nobiliarquia dos antigos romanos, se lamuriava por respeito, não apenas em Florença, mas nas cercanias, pedindo a intercessão do duque de Milão, Galeazzo Maria Sforza, em questões políticas com o papado, por exemplo.

[9] Panofsky faz a lista: “Christoforo Landino, o famoso comentador de Virgílio, Horácio e Dante, e autor das bem-conhecidas Quaestiones (sic) Camaldulenses; Lorenzo, o Magnífico; Pico della Mirandola, que ampliou os horizontes intelectuais da ‘Platonica familia’ ao introduzir o estudo de fontes orientais, e em geral manteve uma atitude independente em relação a Ficino; Francesco Cattani di Diacceto (de quem o oposto é verdade); e Angelo Poliziano”, in: Panofsky, Erwin. Studies in Iconology (Humanistic Themes in the Art of the Renaissance), London, Harper & Row Publishers, 1972, p.130.

[10] Bisticci, Vespasiano da. Vite di uomini illustri del secolo XV, Milano, Hoepli, 1951, pp.418-19.

[11] Ficino, Marsilio. The Letters of Marsilio Ficino (translated from the Latin by members of the Language Departament of the School of Economic Science, London; preface by Oskar Kristeller), London, Shepheard Walwyn Publishers, 1978, carta 17, p.56 (traduzida por mim a partir do inglês, mas cotejada com reprodução do manuscrito disponível online, para ajustes de vocabulário).

[12] Dedica, por exemplo, sua tradução das Enéadas, de Plotino, “ad Magnanimum Laurentium Medicem”. Talvez Gombrich se interrogue do porquê da fama de Lorenzo como patrono pelo fato de que em seu texto não está considerando as letras, e o envolvimento de Lorenzo foi maior com humanistas, poetas e filósofos.

[13] Cesati, op.cit., p.44. Lauro Martines, em seu livro sobre a conjura dos Pazzi, relata que, além da reputação de péssimo homem de negócios (apesar de político e articulador reconhecidamente habilidoso) que arruinou a fortuna e os negócios da família, Lorenzo fora acusado de se apropriar do bem público em montante mais do que expressivo: “[Giovanni] Cambi põe a soma em 50.000 scudi (florins); Piero Parenti fixou uma quantia de mais do que 158.000 florins; e para [Alamanno] Rinuccini o roubo chegava a 200.000 florins”. Para uma estimativa do valor, Martines diz que 100.000 florins mantinham 4.000 estudantes universitários por ano, “com quarto e refeição”. De qualquer forma, Lorenzo anota (citado por Martines) que sua família havia gasto, de 1434 a 1471 “a quantia inacreditável de 663.755 florins em edifícios e construção, obras de beneficência e impostos, sem contar outros gastos”, in: Martines, Lauro. April Blood: Florence and the Plot Against the Medici, New York, Oxford University Press, 2004, pp.236-7.

[14] Federico da Montefeltro, de Urbino, entre alguns outros, também fez gastos semelhantes para sua biblioteca, como atesta detalhadamente seu loquaz cartolaio, Vespasiano da Bisticci.

[15] E Lucrezia Tornabuoni, mãe de Lorenzo, fez de Pico o mentor de seus netos, Piero e Giovanni.

[16] Conclusiones Nongentae (1486) foi o livro escrito por Giovanni Pico della Mirandola, conde de Concordia (1463-1494), no qual reuniu pontos filosóficos, matemáticos, místicos, religiosos, mágicos, alquímicos, cabalísticos dos gregos, dos latinos, dos egípcios, dos oráculos caldeus, dos sábios judeus e árabes, e da cristandade para a proposição de que una est religio in rituum varietate (uma é a religião na variedade de ritos), aquele princípio de Nicolau de Cusa (1401-1464). Pico tinha 23 anos de idade (Ficino o chamou pelo trocadilho mirandus ille iuvenis, ou “aquele jovem admirável”) quando concluiu sua obra complexa e eruditíssima, e a propôs à discussão pública em um amplo debate com especialistas de diversos lugares, línguas e religiões, em Roma, debate que ele abriria com aquela célebre oração que ficou conhecida como Oração sobre a Dignidade do Homem, mais tarde instrumento de defesa perante as acusações que sofreu: Inocêncio VIII (Giovanni Battista Cibo, 1432-1492), o papa, reagiu e redigiu uma bula, em 4 de agosto de 1487, na qual acusava o texto de heresia, determinando apreensão e queima de todos os exemplares, ameaçando de excomunhão quem tivesse entrado em contato com a obra. Pouco depois, Pico seria preso. Como o livro de Pico fora redigido para ser decifrado nos debates em Roma, e pelo fato de que o texto original nos chegou esparso por seu destino atroz de fogueira, é ainda hoje obra desafiadora.

[17] Maquiavel faz uma lista. Ver: Maquiavel, Nicolau. História de Florença (tradução, apresentação e notas de Nelson Canabarro), São Paulo, Musa Editora, 1998, pp.418-9.

[18] Burckhardt, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio (Tradução de Sérgio Tellaroli e introdução de Peter Burke), São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.121.

[19] Em relação às correntes reformistas, lê-se que a posição de Martinho Lutero era ambígua, e que Calvino não se opunha à prática de juros (uma vez que então usura significava qualquer aplicação de juros). Em todo caso, a posição da Igreja Católica vinha se modificando, e um dos motivos citados é o da atividade bancária estar se ampliando e diversificando. Ver, sobre o assunto: Jones, David W. Reforming the Morality of Usury (a Study of Differences that Separated the Protestant Reformers), Lanham, University Press of America, 2004. Embora possa ser discutível o aspecto da fé que levasse à culpa, o argumento de Gombrich me parece convincente.

[20] Gombrich, op.cit., p.38.

[21] E Maria Corti escreve: il Petrarca non è che una delle componenti del petrarchismo (Petrarca não é senão uma das componentes do petrarquismo), apud: Segre, Cesare e Carlo Ossola (a cura di). Antologia della poesia italiana: Quattrocento, Torino, Einaudi, 1997, p.339.

[22] Como escreve Bruno Migliorini a respeito de Petrarca, no “léxico, o que chama a atenção é o voluntário acanhamento (…) Quase não aparecem vocábulos característicos, raros, fortemente expressivos”, in: Storia della lingua italiana, “Il Trecento”, Milano, Bompiani, 2010, p.191. Dante, Boccaccio, Lorenzo (em particular em “La Nencia da Barberino”) todos utilizam palavras muito específicas, locais, ou vivas na língua da época.

[23] Como Maquiavel o chama.

[24] “Epistolae: Ioannes Picus Mirandula Laurentio Medico s. p. d.”, in: Garin, Eugenio (a cura di). Prosatori Latini del Quattrocento, Milano/ Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 1952, pp.796-7.

[25] Embora Pico ofereça explicações excelentes quod ne putes dictum ad gratiam, “para que não aches que o digo para agradar”, op.cit., p.796.

[26] Lembramos de Poggio Bracciolini encontrando manuscritos e fixando-os com o que seriam princípios ecdóticos, por exemplo.

[27] Não é à toa, também, que a obra poética latina mais lida no Renascimento tenha sido a de Ovídio. E não o velho Ovide moralisé, mas o Ovídio relido por conceitos platônicos (a Inglaterra e o prefácio moral do calvinista Arthur Golding à sua bela tradução do poema, de 1567, constituem uma exceção complexa). De Boccaccio, ver o Ninfale Fiesolano e a Amorosa Visione, por exemplo.

[28] Gombrich, E. H. “Botticelli’s Mythologies”, in: Symbolic Images — Studies in the art of Renaissance, New York, Phaidon, 1972, p.76. “Talvez nada seja mais característico dessa filosofia do que tal forma de pensar, que permite que cada experiência se transforme num símbolo de algo maior que si mesma”.

[29] “Há ampla evidência de que o próprio Ficino nunca quis estabelecer um significado fixo em seus arrebatamentos exegéticos sobre as Graças e os planetas. Mesmo dentro do âmbito da interpretação astrológica nós o encontramos mudando e trocando o significado de acordo com suas exigências”, E. H. Gombrich, op. cit. p.58.

[30] Atributo que Edmund Spenser também aplicaria ao retrato em versos da rainha Elizabeth I, Yclad in Scarlot like a mayden Queene,/and Ermines white, “vestida em escarlate como rainha virgem,/ e arminhos brancos”, The Shepheardes Calender (1579), “Aprill”, vv.56-7. Há esse desenho de Leonardo da Vinci no gabinete de desenhos e gravuras do Fitzwilliam Museum, de Cambridge, na Inglaterra, “O arminho como símbolo de pureza” (c.1494, figura acima), no qual da Vinci ilustra a história da pureza do animal, que se pode ler em seus Cadernos. Sob o título moderação, da Vinci escreve: “O arminho, por moderação, nunca come mais do que uma vez ao dia; e prefere permitir ser apanhado pelos caçadores do que se refugiar em uma toca imunda, de modo a não manchar sua pureza”. Vinci, Leonardo da. The Notebooks of Leonardo da Vinci (compiled and edited from the original manuscripts by Jean Paul Richter), New York, Dover Publications, Inc., 1970. Vol. 2, p.321.

[31] Assim como se diferenciava vida ativa e contemplativa, nas Disputationes Camaldulenses, de Cristoforo Landino (que incluía no diálogo a voz de Lorenzo). O diálogo é anterior à morte de Giuliano.

[32] Lorenzo de’ Medici, Francesco Cattani da Diacceto e Angelo Poliziano são mencionados como “talvez não menos sábios e judiciosos” do que Petrarca e Boccaccio. Castiglione, em seu livro, repetirá o julgamento que já encontramos na carta de Pico della Mirandola a Lorenzo sobre os escritores mais antigos, neste caso, os dois mencionados, dizendo que, caso estivessem vivos, não empregariam o mesmo vulgar que então utilizavam e que muitas de suas palavras caíram em desuso. O toscano permanecia sendo modelar, como defendia o próprio Pietro Bembo. Castiglione, Baldassare. O Cortesão (tradução de Carlos Nilson Moulin Louzada e prefácio de Alcir Pécora), Martins Fontes, São Paulo, 1997, pp.46-61.

[33]È sentenzia di Platone che il narrare brevemente e dilucidamente molte cose non solo pare mirabile tra gli uomini, ma quasi cosa divina. La brevità del sonetto non comporta che una sola parola sia vana; e il vero subietto e materia de’ sonetti per questa ragione debbe essere qualche acuta e gentile sentenzia, narrata attamente e in pochi versi ristretta, fuggendo la oscurità e durezza. Ha grande similitudine e conformità questo modo di stilo collo epigramma quanto all’acume della materia e alla destrezza dello stile, ma è degno e capace il sonetto di sentenzie più gravi, e però diventa tanto più difficile. (…)Le canzone mi pare abbino grande similitudine colla elegia (…)Le canzone ancora, per avere più larghi spazii dove possino vagare, non reputo tanto difficile stile quanto quello del sonetto. Medici, Lorenzo de’. “Comento sopra alcuni de’ suoi sonetti”, in: Opere (a cura de Attilio Simoni), Bari, Giuseppe Laterza & Figli, 1939, pp.22-3.

[34] E nomes de poetas toscanos que vão do Duecento, passando por Pulci e Boiardo, chegando ao próprio Lorenzo, numa lista semelhante à lida no Comento (embora mais ampla), se encontraria na perdida Raccolta Aragonese, antologia que o senhor de Florença ordenou compor para presentear o rei Frederico, de Nápoles, filho de Ferdinando I. Michele Barbi reconstituiu hipoteticamente a antologia, “La Raccolta Aragonese”, in: Studi sul Canzoniere di Dante, Firenze, Sansoni, 1965, pp.217-326. Dela, resta a epistola prefatoria, atribuída a Angelo Poliziano ― que se pode ler em Varese, Claudio (a cura di). Prosatori volgari del Quattrocento, Milano/Napoli, Riccardo Ricciardi Editore, 1955, pp.985-990 ―, na qual discursa sobre o poder da poesia com o lugar-comum do divino Homero, sem o qual “uma mesma sepultura teria recoberto o corpo e a fama de Aquiles”; mas acrescenta engenhosamente que, mais tarde, sem a intervenção de Pisístrato, que ordenou ― segundo Cícero ― a reunião de um corpus homérico, não haveria Homero, propondo assim o papel de Lorenzo em ordenar a raccolta, e seu papel (per mia opera tutti questi scrittori le fussino insieme in un medesimo volume raccolti) como antologista. São documentos ricos, como o Comento, sobre o costume poético do período, seja pelo elenco de poetas do Duecento ao Quattrocento, seja pelos argumentos postos a apresentar a antologia e, em especial, pelo vocabulário reunido para o critério da escolha, que é elogio das composições: a língua teria de ser pulitissima e abundante; a coisa tratada, gentile, florida, ornata, leggiadra; acuta, gentile, ingegnosa, sottile; alta, magnifica, sonora; ardente, animosa, concitata.

[35] “Águas”, no inefável jargão poético antigo.
[36] Lascia l’isola tua tanto diletta,
lascia il tuo regno delicato e bello,
Ciprigna dea, e vien sopra il ruscello
che bagna la minuta e verde erbetta.
Viene a quest’ombra ed alla dolce auretta
che fa mormoreggiar ogni arbuscello,
a’ canti dolci d’amoroso augello;
questa da te per patria sia eletta.
E se tu vien tra queste chiare linfe,
sia teco il tuo amato e caro figlio;
chè qui non si conosce il suo valore.
Togli a Diana le sue caste ninfe,
che sciolte or vanno e senz’ alcun periglio,
poco pressando la virtù d’Amore.

[37] O Venus regina Cnidi Paphique,
sperne dilectam Cypron et vocantis
ture te multo Glycerae decoram
   transfer in aedem.

fervidus tecum puer et solutis
Gratiae zonis properentque Nymphae
et parum comis sine te Iuventas
   Mercuriusque. 

Ó Vênus, rainha de Cnidos e Pafos,
deixa tua Chipre dileta, que chama
-te muito Glycera à sua casa 
com incensos.
Traz contigo o ardente menino,
Ninfas, e Graças de cintos já soltos,
e Juventude, que é nada sem ti,
e Mercúrio. 
in: Orazio. Tutte le Opere (a cura di Mario Scaffidi Abbate; traduzioni di Renato Ghiotto e Mario Scaffidi Abbate; testo latino a fronte), Newton Compton Editori, Roma, 1992, p.74. (Tradução minha).

[38] Medici, Lorenzo de’. “Comento sopra alcuni de’ suoi sonetti”, in: Opere (a cura di Attilio Simoni), Bari, Giuseppe Laterza & Figli, 1939, pp.69-70.

[39] Belle, fresche e purpuree viole,
che quella candidissima man colse,
qual pioggia o qual puro aer produr volse
tanti più vaghi fior’ che far non suole?
Qual rugiada, qual terra o ver qual sole
tante vaghe bellezze in voi raccolse?
Onde il suave odor natura tolse,
o il ciel, che a tanto ben degnar ne vuole?
Care mie violette, quella mano
che vi elesse intra l’altre, ove eri, in sorte
vi ha di tante eccellenzie e pregio ornate.
Quella che il cor mi tolse, e di villano
lo fe’ gentile, a cui siate consorte,
quella adunque, e non altri, ringraziate.

[La donna mia] Dilettavasi di natura, come di molte altre cose gentili, ancora di tenere in casa in alcuni vasi bellissimi certe piante di viuole, alle quali lei medesima soccorreva e d’acqua per li excessivi caldi e d’ogni altra cosa necessaria al nutrimento loro. Elesse adunque tre viuole tra molte altre che ne aveva, quelle alle quali o la natura volse meglio, per averle produtte più belle che l’altre, o la fortuna, che prima all’altre le fece venire a quella candidissima mano; le quali viuole così còlte mi mandò a donare: che veramente, da lei in fuora, nessuna cosa poteva meglio mitigare tanto mio dolore. Parla adunque el presente sonetto alle sopra dette tre viuole, le quali, et essendo per loro medesime di maravigliosa bellezza et essendo dono della donna mia e còlte da quella mano candidissima, ragionevole cosa era che mi paressino molto più belle che non suole produrre la natura; e per questo convenientemente si domanda pel presente sonetto, come si suole fare di tutte le cose maravigliose, della cagione di tanta excellenzia. 

[40] Conceitos como os lógoi spermatikói, o phantastikón e o phantasma estóicos (Cf. o ensaio de Jorge Sallum sobre o assunto, “Phantasía e retórica estóica” na revista virtual Germina Literatura), mais o noûs, o logos e a arkhé platônica, como concebidos por Plotino nas Enéadas.

[41] Ficino, Marsilio. Commentaries on Plato (edited and translated by Michael J. B. Allen), Cambridge/London, Harvard University Press (volume I – Phaedrus and Ion), 2008, pp.50-3.

[42] Gombrich (op. cit., p.43) menciona uma carta de Marsilio Ficino em benefício do jovem Lorenzo di Pierfrancesco, com uma nota a Giorgio Antonio Vespucci (tio do famoso Amerigo) e Naldo Naldi, explicando-lhes o seguinte: “Escrevo uma carta ao Lorenzo mais jovem sobre o destino próspero que com frequência nos é presenteado pelas estrelas que estão fora de nós e também sobre a livre alegria que adquirimos por nossa vontade própria, a partir das estrelas em nós. Explicai-a a ele, caso se faça necessário, exortai-o a aprendê-la de cor e a guardá-la em sua mente. Grandes como as coisas que prometo a ele são aquelas que conquistará por si, e para tanto bastará que leia a carta no espírito em que a deixo escrita”. A carta é um detalhamento do programa que terá servido de base para quadros de Botticelli (amigo de Ficino) como La Primavera e Nascita di Venere.

[43] Ou mais especificamente de 1434, no controle sobre Florença — após o exílio em Lucca e Veneza — de Cosimo de’ Medici (panegiricamente tratado de pater patriae), à morte de seu neto Lorenzo (apelidado também panegiricamente Il Magnifico), em 1492. Em 1494, com os Medici fora do poder, Girolamo Savonarola assume a cidade por bem pouco tempo após a invasão de Charles VIII. Seria queimado em 1498 na Piazza della Signoria, em Florença, como queimara livros e quadros imorais em sua Fogueira das Vaidades, também de 1494.

[44] Como sabemos desde 2007, após as exumações de Pico e Poliziano.

[45] Por exemplo, as contínuas revisões que Ariosto fará no Orlando Furioso, procuravam adequar a língua do poema às novas exigências de elegância postas em circulação por Bembo. Comentando as várias revisões que sofreu o texto do Orlando Furioso nas três edições que teve na vida de Ariosto, Margarita Periquito escreve: “Numa época em que se buscava, entre tão variados dialectos, um padrão para a língua culta italiana, Ariosto quis imprimir à sua obra a evolução lingüística teorizada por Pietro Bembo (…)”, in: Ariosto, Ludovico. Orlando Furioso (tradução, resumo, notas e introdução de Margarita Periquito), Lisboa, Cavalo de Ferro Editores, 2007 (primeira edição), pp.15-6.

[46] O Hypnerotomachia ainda está por ser lido como texto importante para a escrita de James Joyce no Finnegans Wake (mas já antes, a segunda parte do Hypnerotomachia, mais curta, quando Polia passa a descrever o amor entre ela e Poliphilo, foi por exemplo parodiada no fluxo de consciência final de Molly Bloom, que assume a narrativa, no Ulysses). Joyce definiu FW como um livro sobre a noite, assim como Ulysses era o livro sobre o dia. Pode ser lido como o sonho de Humphrey Chimpden Earwicker, ou um sonho coletivo dos personagens (Here Comes Everybody). E, construindo essa figuração de sonho, Joyce naturalmente se utiliza das técnicas de vanguarda (a arte do fragmento, a collage), mas de modo extremo, criando uma língua que, sendo basicamente o inglês, sofre interferências frequentes de dezenas de outras línguas, e assim a língua do FW não só é apenas a língua do FW, como oferece grande resistência à leitura. Nesse sonho é possível ler, aqui e ali, alusões ao Hypnerotomachia, como, já de princípio, há Anna Livia Plurabelle ― The Bringer of Plurabilities ―, que tem no próprio nome a multiplicidade que lemos igualmente na personagem alegórica de Polia.

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