Ensaio | Cênicas


foto: Colectivo rebelArte

Movimento Social*

maio de 2020

Edição: 21


O problema do movimento é central para a situação em que vivemos. Talvez seja importante pensar menos naquilo que parece se deter e mais naquilo que segue se movendo e que nos coreografa.

Estamos em uma situação de bloqueio, de paralisia. Ao menos de nossas coreografias habituais. Apesar disso, e no subterrâneo da detenção, coisas e relações seguem se movimentando, como um corpo que está quieto na aparência, mas segue com o coração batendo, o sangue correndo, os pulmões enchendo e esvaziando.

O movimento é uma peça fundante da identidade globalizada, e por isso o famoso “sujeito transnacional” não sabe o que fazer ou do que viver se é proibido de se movimentar. Sua subjetividade foi formatada em torno da impossibilidade de se deter. Se na pós-modernidade global a grande conquista tem sido a capacidade de mobilidade, poderia ser este o vírus da paralisia? Quais movimentos não podem e não devem ser detidos?

O movimento está desde sempre na base das lutas sociais. São seu meio, mas também seu fim. Os movimentos (sociais) vêm lutando por deter propriedade sobre seu próprio movimento, o dos sujeitos coletivos e também dos indivíduos que os integram.

As lutas são para podermos nos mover quando quisermos e parar quando assim for decidido, mas o que acontece quando a situação impossibilita a escolha? Priorizamos a autonomia do movimento, a do sujeito movente, a dos efeitos dos movimentos? A autonomia do movimento pressupõe a do sujeito que se move ou pressupõe a sua submissão? O livre mercado é uma forma de liberdade do movimento?

A questão sobre quem e o que controla nosso movimento assombra não apenas a política como também a dança. E nossas diferentes danças terão diferentes respostas. Algumas estão organizadas por um ideal de movimento; para outras existe um especialista capaz de nos fazer mover melhor; outras entendem que devemos responder unicamente àquilo que emerge de nosso movimento interno; outras reivindicam o não mover-se. Existem danças que propõem renunciar à predefinição de qualquer movimento e aceitar que estamos sempre improvisando. Há debates para saber se improvisação é a mesma coisa que espontaneidade. Sabe-se que não são a mesma coisa: aquilo que compomos sozinhas e aquilo que criamos coletivamente. Ao tentar a repetição, aquilo que acontece é um enigma. Estes problemas coreográficos são, em si mesmos, problemas políticos do presente.

Pina Bausch dizia: não me interessa como as pessoas se movem, mas o que as move. Porque a escolha entre nos movermos ou pararmos tem a ver com a autonomia, com os desejos e as necessidades do sujeito (e não só do movimento). Mas o sujeito devém como tal no movimento. Observar, então, atentamente o que nos move – ou nos paralisa – hoje pode nos aproximar de entender como isso está afetando as nossas subjetividades.

O CORPO COMO EXTENSÃO DOS MEIOS. Mas aí onde dizíamos paralisia, aí onde (ah, enfim!) nos depararíamos com a detenção do incessante, esgotante e inclemente movimento que o neoliberalismo coreografa para os nossos corpos, nos deparamos com outra coisa. Zoom, Whatsapp, Jitsi Meet, Tik Tok, Hangouts, de Google, Instagram, Skype, Telegram, Messenger, Facebook, Twitter, Youtube: nos dizem como seguir produzindo. O mundo está no seu telefone e, surpreendentemente (ou não), já estávamos preparados. Em menos tempo do que levou para acabar minha primeira leva de mantimentos, já estava manejando todos esses aplicativos e interagindo afetiva e laboralmente por meio delas. Até poderia parecer que já se estava esperando por tudo isso.

Meu novo cyborg é precário e instável. Um dia não tenho voz, em outro dia perco a audição, apareço e desapareço fazendo de minha presença um ato fantasmagórico. Se eu estou moderando a reunião, é possível que minha conexão caia e volte meia hora depois, que fique cortada e meu discurso se torne absurdo, lero-lero. É possível que eu tenha que escutar pelo celular, falar pelo computador e tomar notas em um tablet. Mas o movimento segue enquanto os problemas técnicos impossibilitam dar atenção aos acontecimentos no meu corpo. Além disso, quando termino a reunião no Zoom, tenho dezenas de páginas web que, preocupadas com o meu tédio, me oferecem entretenimento ilimitado online: ópera, teatro, museus virtuais e filmes recém-lançados.

A mobilidade segue estando. A aceleração também. A mudança está na qualidade dos vínculos, nas conversas que não estamos tendo enquanto nos movemos de um lado para o outro com cabos e baixamos apps. A conectividade agrava a sensação de isolamento, como quando finalmente saímos, vemos o vazio na cidade e dizemos: minha casa é menos inóspita que isso, vou voltar para dentro.

O PROBLEMA DO COREÓGRAFO. E de repente somos youtubers, manejamos o humor das novas tecnologias, nos viciamos no modo cômico-irônico do Tik Tok, ao formato-síntese do Twitter, à lógica visual do Instagram. Ajustamos a performatividade ao hiperestímulo da internet,  nos apropriamos de seus discursos e somos, mais que nunca, atores. Fazemos para que outros vejam, publicamos para existir. Existimos quando outros constatam nossa presença em seus dispositivos. A expansão tecnológica está em festa. Não é casual o nome do Youtube. Me? Os aplicativos entendem o que queremos ou, melhor dizendo, ao contrário: nossa subjetividade entende e se adequa ao que eles necessitam. 

Como em toda formatação das relações sociais, sempre há algo que nos estrutura e algo que, com nossos hábitos, estruturamos. Poderíamos chamar isso de “o problema do coreógrafo”: me movimento em uma dança que eu mesma criei? Quanta liberdade há em dançar o que o outro coreografa? Toda coreografia captura minha liberdade de me movimentar? É possível se movimentar sem coreografia? É possível governar todos e cada um de meus movimentos? O movimento é um problema individual ou coletivo?

A PIOR POSIÇÃO É A FIXA. Se esse é um problema coreográfico, o que os mandachuvas da dança têm a dizer do corpo? A ontologia lenta da performance; teorias sobre a potência da imobilidade; os meios como extensões, a virtualidade e o espectral; a performatividade das identidades; corpos e contágio: repasso títulos e autores e por momentos sinto que já pensaram em tudo, que se trata, finalmente, de colocar em prática suas ideias. Outras vezes penso que tudo isso já não serve, que a situação mudou radicalmente e que é preciso pensar tudo de novo. 

Desde o campo cênico vínhamos dizendo: reivindicando o direito de parar, de ir mais devagar. Diante do biopoder dizíamos: não nos podem deter, somos livres para nos movermos por onde e quando quisermos. A partir do autocuidado dizíamos: o sistema nos impulsiona à exploração e à violência, devemos no autoproteger. A partir da análise do poder víamos: as instituições que dizem nos cuidar, nos vigiam, castigam e reprimem. Desde o liberalismo dizíamos: tenho direito de fazer o que quero sem condições. Desde o pós-modernismo dizíamos: comunidade, mas com diferenças. Desde o anarquismo dizíamos: desconfie do Estado, não precisamos dele. Desde o feminismo dizíamos: meu corpo, meu território.

Mas agora o vírus (e seus efeitos) se comporta contra muitas das premissas que estamos manejando. Outras são postas, pelo menos, em conflito. E de resto me pergunto se estou pronta para levá-las adiante, agora que já não são metáforas atrativas intelectualmente, senão urgências que dançam ao ritmo da vida ou da morte.

CONFIAR NAQUILO QUE RESPIRA. Quem, então, controla nosso movimento? O que nos coreografa hoje em termos situacionais e subjetivos responde a uma lógica radicalmente diferente da que vínhamos pensando. Andávamos desejando uma coreografia que quebrasse tudo, que rachasse o chão. Ela está aí. Não somos seus atores exclusivos, mas sim seus intérpretes. E sabemos que, nesse âmbito, há muito espaço de criação. Nesse contexto repensar tudo e criar coreografias que nos potencializem segue estando em nossas mãos, pés e orelhas. Talvez não se trate de parar – porque, definitivamente nada parou -, mas de seguir de outras maneiras. Talvez se trate de superar a frustração de não estar completamente no comando de nossas coreografias e, ainda assim, seguir dançando, sem cair na resignação.

Que a possibilidade de tirar “algo bom” da situação não nos faça esquecer de que existem coreografias da detenção que estão mudando vidas. Que questionar o poder não nos faça perder de vista as coreografias que sim estamos escolhendo para nos perguntarmos se não poderíamos estar dançando outra dança. Por exemplo, se não podemos parar de trabalhar, talvez possamos redirecionar aquilo que produzimos para que chegue a quem mais precisa ser cuidado, que jamais poderá pagar porque não tem com que. A reivindicação de parar não tem porque significar ocupar-se apenas de nossas necessidades e interesses pessoais, e inclusive podemos atuar fora de nossos contratos salariais; sair e fazer por e com outres, de máscara e luvas ou como for possível.

Podemos (e isso também é lutar contra a doença) resistir à apropriação e detenção da nossa força vital por parte de empregadores e governos. Podemos ativar as técnicas do hackeamento para infiltrar os canais que já existiram. Podemos tatear, escutar e lamber esses movimentos que sim estão acontecendo, e os que estão por vir. Podemos começar a treinar, confiando em tudo aquilo que respira.


Tradução de Mariana Ruggieri.

Lucía Naser é artista, docente, pesquisadora e militante. 

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.