Perfil | Música


Ilustração de Milton Mastabi

A perversão no avançar da idade é um clichê que alcançou a guitarra baiana. Aos 70, nas mãos de Armandinho, o pau elétrico é escancaradamente pornográfico. Os sons cintilam desejos e pecados, bajulando os convertidos e catando seduzir os cristãos-novos.

É difícil escapar ao aliciamento. A destreza garante a hipnose. Armandinho afina os acordes – e o primeiro deles é o afeto.

“É uma festa para encontrar as pessoas, sentir a energia, tocar com os amigos e se divertir. Nada pode ser mais bonito que fazer isso do lado de quem a gente tanto ama”, diz o músico, em sentença derretida. 

Embaixo, a ternura entrelaça semi-desconhecidos, que, ano após ano, quase sempre se encontram no mesmo trio sem cordas, emulando a fobica, modelo Ford 1929, matriz do Carnaval da Bahia que ainda perdura. 

Em 2020, a folhinha garantiu a data redonda e uma agenda lotada. O trio elétrico, criado por Dodô e Osmar (pai de Armandinho e dos Irmãos Macedo), completou 70 anos neste Carnaval. A maratona foliã incluiu apresentações do grupo em cinco dias da festa, guardando exclusivamente o sábado para o Recife – embora o plano tenha sido parcialmente frustrado por um inexplicável atraso da companhia aérea. 

“Perdi a apresentação do Galo da Madrugada, que eu estava contratado pra tocar. O voo atrasou quase 11 horas e ficamos lá dormindo na cadeira do aeroporto esperando embarcar. Tocamos no dia seguinte em Olinda, mas foi na raça, porque comprometeu toda nossa programação”, reclama.

Antes mesmo do Carnaval começar, as escalas já estavam definidas em itinerários saudosistas. No dia 19 de janeiro, Armandinho foi um dos convidados para um dueto com Luiz Caldas, comemorando 57 anos na ocasião, na Chácara Baluarte, no bairro do Santo Antônio. Naquela noite, o pioneiro do Axé dividiu o palco com uma gama de conterrâneos, entre Saulo, Durval Lelys, Gerônimo e Carlinhos Brown. O ápice foi o aparecimento surpresa de Gilberto Gil, cantando “Toda Menina Baiana”. 

Em um fictício pódio de emoções e assombro, a medalha de prata caberia tranquila no pescoço de Armandinho, pela entrada frenética, enquanto Luiz Caldas e Durval Lelys distorciam suas guitarras em uma competição Rock n’ Roll. 

“Quando vi os dois tocando, avisei ao contra-regra: me prepara que vou entrar. Não dava pra ver um duelo de guitarristas, no estilo de rock, sem participar daquilo. Entrei fora da hora, ainda sem todos os plugues, mas fiz meu som também”, diz, entre risos vaidosos.

Os riffs de guitarra uniram três músicos de base roqueira. Luiz se inspira nos irmãos Knopfler (guitarrista e vocais da banda britânica Dire Straits); a trajetória de Durval Lelys, como bandleader do Asa de Águia, começa no rock com ascendência em Roger Waters e David Gilmour, do Pink Floyd. Já Armandinho não nega o entusiasmo inabalável com o quarteto de Liverpool: John, Paul, George e Ringo.  

“Tinha entre 12, 13, 14 anos quando ouvi Beatles pela primeira vez. Aquilo foi me arrebatando. A sonoridade era muito forte, eles eram descolados, modernos. Meu pai, no entanto, dizia que aquelas músicas não nos representavam, que eu precisava tocar o som da nossa gente. Mas a gente queria mesmo era ser roqueiro”, lembra.

Parte desta história está contada no espetáculo Irmãos Macedo, Carnaval, Música e Revolução, que, pelo segundo ano seguido, ocupou no mês de janeiro o palco do teatro da Casa do Comércio, na Avenida Tancredo Neves. 

Na peça, Armandinho e seus irmãos André, Aroldo e Betinho contam como o trio elétrico transformou o Carnaval da Bahia e o contexto musical do período. Em uma das cenas mais vibrantes, os quatro emendam clássicos dos Beatles e, ao fim do pot-pourri, emulam a icônica capa do álbum Help (lançado em agosto de 1965).

O diretor do espetáculo Andrezão Simões diz que a cena traduz a importância daquilo que, como pasticho, nomeia de MTB: Música Trieletrizada Brasileira. “A cena demonstra como Armandinho e seus irmãos deram à guitarra baiana a possibilidade de ser uma antena para capturar o que de mais moderno e libertário acontecia no mundo. E os Beatles estavam na vanguarda desse movimento. Dodô e Osmar criaram o som eletrizado e produziram a guitarra baiana. Mas foram seus herdeiros que fizeram a conexão com os elementos globais e as coisas que aconteciam na Bahia”, diz.

Além da participação no convescote do pai do Axé e de interpretar o papel de si mesmo no teatro, Armandinho ainda teve uma última prova de fogo no verão, antes de estrear definitivamente no Carnaval 2020: o comando do trio no Furdunço. A festa acontece desde 2014 no último domingo antes do Carnaval de Salvador. Desde a primeira edição, Armandinho e os Macedos batem ponto religioso nesta recente tradição, que sai com circuito invertido: de Ondina até a Barra e leva o nome de Orlando Tapajós (homem responsável por profissionalizar a criação de Dodô e Osmar e criar alguns dos trios mais icônicos da folia baiana – entre eles, a Caetanave, de 1972).

Com os acordes acelerados em instrumental, o trio saiu por volta das 17h30, logo atrás do estampido suingueiro da banda de pagode GuigGhetto. Todos os clássicos foram entoados em na sequência no percurso, entre “Chame Gente”, “Pombo Correio”, “Baianidade Nagô”, o frevo secular de “Varre Varre, Vassourinha”.

“Esse é o Setentrio”, brincavam, volta e meia, os irmãos num trocadilho numérico.

Se a novidade do repertório está longe de ser a força motriz para reunir tanta gente em torno dos Irmãos Macedo, o carisma, a beleza dos antigos clássicos e a sensação de sorver uma fonte de água pura, conectada à origem do Carnaval baiano, tratam de alimentar a alma do folião e ajuntá-los, trepidando como mariposas em torno de uma luz incandescente – e elétrica.

CARNAVAL E RETICÊNCIAS

Do esquente para o Carnaval à vera passaram-se apenas quatro dias. Na quinta-feira, com a cidade já em chamas para a abertura oficial, os irmãos saíram primeiramente no Campo Grande. O que parecia uma decisão sensível e acertada dos curadores do Carnaval provou-se, no entanto, um primeiro indício de um movimento de esvaziamento do centro.

Primeiro, pontuando o acerto. Colocar os Macedo para iniciar o desfile dos 70 anos no Campo Grande é uma prova de bom senso, dada a conexão entre a história e o circuito mais tradicional e charmoso da folia. Ainda mais levando em consideração que Osmar, o pai dos quatro, batiza justamente este trajeto.

Por outro lado, o Campo Grande se mostrou amuado em 2020.  E, aquela noite de chuva fina, porém rápida, deu pistas da tônica que dominaria os seis dias dali pra frente. Enquanto Armandinho aquecia a guitarra para sair no cortejo, apenas alguns grupelhos se formavam na concentração. Do outro lado da cidade, na Barra, Carlinhos Brown, Bell Marques, Daniela Mercury, Cláudia Leitte tocavam sem cordas arrastando uma multidão na pipoca.

O número pequeno de foliões (aos poucos foi aumentando) não desanimou os músicos. À tiracolo, na frente do trio, eles trouxeram o comerciante Dilson Chagas, eleito o Rei Momo, onze dias antes do início da festa. No auge dos seus (conferidos) 142 quilos, Chagas vestiu-se à caráter com trajes de monarca e, como manda o figurino real, demonstrou pouca afeição pelo público, passando boa parte do tempo entretido em seu próprio celular. Volta e meia, sem disfarçar um ligeiro tédio, sorria e acenava apontando a chave cênica que, horas antes, havia recebido do prefeito ACM Neto. 

O gesto simples de trazer Momo deu um toque de realeza aos herdeiros do trio. A reverência era clara. Semiótica pura. “Um salve a Dodô e Osmar, meu pai, que criaram o Carnaval da Bahia”, disse Armandinho, quando o caminhão rompeu a saída do Teatro Castro Alves.

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Na sexta, os irmãos Macedo voltaram a se apresentar. Desta vez em cima do palco, no Largo do Pelourinho. O público foi muito maior que da noite anterior e o show, mais animado. O repertório foi basicamente o mesmo, numa prova viva que a excitação do público emana potência para os acordes do pau elétrico.

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Sábado, Armandinho enfrentou o périplo pernambucano e as provações de um simples mortal que tenta se locomover na malha área brasileira. 

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Domingo, não descansou. Retornou, sim, triunfante para sua melhor apresentação no Carnaval. O trio dos Irmãos Macedo saiu galopante e, logo atrás, veio o caminhão trazendo Luiz Caldas. Entre os dois abriu-se um vão temporal de homenagens e reverências. O público, inteligentemente, entendeu que o filé era permanecer ali, naquele vácuo sonoro, esperando a melhor música puxada por cada um para decidir qual o melhor destino do momento. 

“Agora é Tieta. Corre pra Luiz Caldas”. “Tocou Vassourinhas. Bora pra Armandinho”. “É Fricote! Volta, porra”. “Caralho, agora é Chame Gente. Fudeu”.

Naquele vai e vem, a chegada até Ondina provocou muito mais cansaço que o habitual, além das patelas e tornozelos reclamarem descanso no dia posterior. 

Assim como o festival de Woodstock produziu lendas de roqueiros que, desavisados, não perceberam o fim dos shows e passaram a morar no parque à espera das próximas atrações; não é de se duvidar que ainda existam foliões perambulando na orla esperando ouvir os primeiros acordes de um clássico para decidir qual a próxima ponga.

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Na segunda, o calunga Homem da Meia Noite veio direto de Recife para reverenciar o trio de Armandinho, Dodô e Osmar. Em cima, a orquestra 100% Mulheres também tocou clássicos do frevo. Uma recombinação estética e histórica.

Os primeiros sons produzidos por Dodô e Osmar no trio foram as marchas, os sambas e os frevos pernambucanos.

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Na despedida da festa, terça, alguns momentos de brilhante inspiração. Na largada da Barra, antes dos camarotes das TVs, Armandinho conversou com Ivete Sangalo, que havia montado sua própria cabina para interagir com os artistas na varanda – ao menos, com aqueles que, na avaliação da cantora, valia a pena bater um papo.

Com Armandinho, o diálogo se deu entre o verbal e a guitarra. Com os acordes distorcidos, ela disse coisas como “tudo bem aí?”. Ivete respondia. E a guitarra chorava: “tô bem também”. 

Naquele fortuito encontro, uma sinopse de um Carnaval potente. As estrelas do Axé pouco falam da criação ou dos criadores do trio elétrico mesmo em datas redondas que ensejam homenagens, embora devam parte de suas carreiras a esta invenção. Quando encontram Armandinho e os Irmãos Macedo, no entanto, tratam de produzir festejos, o que indica que o ‘esquecimento’ não se trata de pura e simples ignorância – ainda que, em alguns casos, sim.

Enquanto Ivete brincava com Armandinho, a guitarra vibrava obscena querendo falar. O folião, embaixo, demonstrava impaciência. “Vamos Armandinho, toque pra gente. É aqui que está seu afeto. Seu Carnaval é pra gente. Só, somente só”.


André Uzêda é jornalista. 

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