Selfie | Audiovisual


Frame do filme "Miúda e o Guarda-Chuva"

Estive em janeiro de 2020 na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, representando o longa de animação Miúda e o guarda-chuva, exibido na Mostrinha, sessão do festival dedicada ao cinema infantil. Desembarquei, fui recebida pela equipe da mostra e compartilhei a van com ninguém menos que a atriz Marcélia Cartaxo. A vida nos prepara cada festa! Meu coração era um carnaval silencioso e discreto. Tenho ganas de chorar toda vez que lembro da Macabéa de Marcélia. Miúda nasceu ali. O poder das histórias, da leitura de quem dirige, mas principalmente da carne de quem interpreta mobiliza minhas vísceras. Não consegui falar com ela. Não consegui. Ela ali esbanjando simpatia e eu, muda e agradecida, toda pequenininha, colocando a musa no altar.

Outra Macabéa também inspirou muito meu imaginário de mulheres que, olhando para o chão, veem além; a interpretada por Alexandre Casalli, um dos grandes palhaços ativos em Salvador, no espetáculo A hora da estrela, de Meran Vargens e sua Cia de Teatro Os Bobos da Corte. Ali temos a mística do palhaço associada a uma das personagens mais marcantes da minha historiografia pessoal da literatura brasileira, imaginada antes por Clarice Lispector no seu último romance, A hora da estrela.

Minha Macabéa surgiu metade em 2007 e metade em 2009, quando finalizei o conto Miúda e o guarda-chuva. Ainda não havia crença ou confiança, só desejo de escrever e respirar melhor. Ali surgia um universo que me acompanharia pelos próximos 13 anos e mais. Mas ali, ninguém sabia. Miúda, no conto, era uma menina ou uma mulher, sem idade ainda definida, que vivia com uma planta carnívora de estimação. Para alimentar a planta, ela tinha que catar, com hashis, as formigas de seu quintal. Indignadas, as formigas tentam chamar a atenção de Miúda com planos mirabolantes, que trazem fatos extraordinários à vida daquela garota. Na trama, se vê que a planta estabelece uma relação por vezes oportunista e manipuladora com a protagonista. Suas outras companhias, Inércia, a vizinha, e Seu Zé, o carteiro, compõem a rede de personagens que tenciona a triangulação Miúda-Planta-Formigas. Miúda precisa compreender a mensagem das formigas e tomar uma posição.

Naquele nascedouro a história ainda nem se vinculava exatamente ao universo infantil, muito embora tivesse elementos propícios a essa relação. E então veio Victor Cayres, topando recriar o conto em peça, dividindo dramaturgia e direção comigo. Nosso primeiro ponto ali foi entender a quem se direcionaria essa adaptação. E resolvemos encarar a conflituosa gaveta do pode-não-pode das obras destinadas à infância. Nossa peça estreou em 2009, no Teatro Martim Gonçalves. Naquela ocasião, já tínhamos a Miniusina de Criação,à época com a figura de Igor Souza e Alice Athayde, na composição dos figurinos. Depois, veio Amadeu Alban, produtor-visão-além-do-alcance, soprando bons ventos futuros. E veio Igor Souza, agora na direção de arte, criando outro corpo, além da cena, para um sonho de sonhar bem junto. E lá íamos nós, fab-four, rumo ao ANIMATV, concurso realizado pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura do governo brasileiro, em parceria com a TV Cultura e a TV Brasil, em sua única edição, de 2010, viver uma experiência absolutamente inédita para todos, a realização de um episódio piloto de série de animação.

Eram 17 pilotos dos quais dois teriam todos os episódios de sua série produzidos. Não ficamos para essa etapa, mas conseguimos ser selecionados para o Festival international du film d’animation d’Annecy, como curta-metragem de animação. Edital de mobilidade, corre ali, corre aqui e vamos nessa. Levamos cara, coragem e aquela sensação dendê magia de ir, mesmo sem saber exatamente como. Ninguém sabia. Lá vivemos a primeira feira de cinema, a MIFA, associada ao festival, com as primeiras críticas, retornos entusiasmados e muitas situações engraçadas em diferentes línguas, naquele inglês-vai-que-cola, que precisou melhorar bastante para enfrentar as muitas etapas que viriam adiante. Longa estrada pela frente. Na peça e no piloto, ainda lidávamos com nossa necessidade de não enquadrar tudo, frente a um universo que sistematiza o que é adequado para cada grupo etário da infância. Tínhamos uma Miúda, cuja idade sonhávamos em não definir, mas que se aproximava mais de uma mulher e uma planta carnívora constantemente associada a uma relação abusiva.

No ano seguinte, 2011, aprovamos, pela FUNCEB-Bahia, o longa de animação, que levaríamos oito anos para finalizar. Acho graça de quem diz que animação é massa porque pode tudo. Foram tantas as limitações e aprendizagens, da criação à produção, ao longo desses anos, lida com orçamentos pífios, mágica sendo feita por animadores competentíssimos e talentosos de viver, toda sorte de sorte e de dificuldades. Não, não é simples. Não, não pode tudo. Mas é como o amor para Miúda: grande, enorme, imenso!

No longa, eu e Victor entramos como argumentistas, roteiristas e co-diretores. Amadeu assumiu a direção, montagem e produção. E Igor, a direção de arte, com ampla liberdade criativa para os animadores que deram vida aos desenhos. E ali, nas múltiplas transformações do roteiro para o longa, nossa Miúda encontrou sua melhor forma, a de uma criança de seis anos, em vias de fazer aniversário de sete, idade de transição, idade mística. Dois destaques aqui devem ser feitos. Aleksei Abib, nosso consultor de roteiro, que trouxe excelentes problematizações e foi nosso companheiro de caos e o elenco afiado que trouxe voz e afeto à palavra escrita. A dublagem é um trabalho que, em casos como o nosso, de baixo orçamento, precisa ser feito antes de qualquer movimento, como base de som da animação. Muito do que os animadores materializaram vem da intenção sugerida pela voz dos atores. No filme, temos o talento de Daniel Calibam e Yoshi Aguiar, atores no projeto desde a peça e que inspiraram os tipos físicos de seus personagens, as formigas, Ariane Souza, que faz a vizinha Inércia, Harildo Déda, nossa planta carnívora, Fábio Costa, que faz o carteiro Seu Zé e a incrível Luana Carrera, que interpreta a personagem título e sem a qual não haveria Miúda. O olhar dessa criança para o mundo faz mais sentido na voz de Luana e com isso volto a Marcélia e a Macabéia. Os desafios de um texto ancorado na poesia só voam na boca de quem olha para a poesia sem medo, como se dizer “fruta”, “mato”, “permanecências”, “tanta língua enjoa o dente” e “verde é uma cor que sobra” fossem da mesma natureza simples de um peixe que nada ou de um passarinho que voa.

Miúda intrigou tanto as minhas próprias reflexões, que até me rendeu um estudo, uma pesquisa de Doutorado, no PPGAC/UFBA, para pensar sobre como literatura, teatro e cinema leem o pode-não-pode das infâncias. O trabalho, ainda não publicado, mas disponível no repositório da UFBA, recebeu esse título-chave: Issoé infantil?: perspectivas, expectativas e tabus transmidiáticos a partir de Miúda e o guarda-chuva. Nas críticas que ali e acolá pipocam sobre o filme, ainda vejo o mesmo olhar que não se atualiza, nem se expande sobre o que é ou não adequado, do ponto de vista das escolhas formais e temáticas, principalmente no que toca à criança cujos pais não aparecem, nem são mencionados na trama. As solidões da infância, sejam físicas ou metafóricas, são um terreno árido que demanda muitas águas. E estivemos, nós adultos, todos nele, inevitavelmente. Alguns, inclusive, não saem dele nunca. Essa é uma das fendas que deixamos na obra. Existem outras.

Miúda é minha Macabéa de coração. É o que reverberei de Clarice, tanto quanto de Marcélia e Alexandre. A do filme, pelo olhar de Luana, traz tanto carisma e empatia, que, se um dia alguém olhar para Miúda-Luana, como eu olho para Macabéa-Marcélia-Alexandre, com a curiosidade que os processos de aprendizagem reivindicam, aqueles que são puro desejo e coragem, como ação do coração, o meu estará todo vermelhinho, carnaval silencioso e discreto, em festa.


Paula Lice é dramaturga, roteirista e diretora teatral.

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