Perfil | Música


Pérola Mathias 2018

Zé Manoel – Percurso aberto

junho de 2018

Edição: 20


Quem vê as apresentações dobradinhas de Zé Manoel na Casa da Mãe se repetirem sempre cheias, com o músico circulando à vontade e cheio de sorrisos pelo Rio Vermelho, acha que sua relação com Salvador começou por causa das apresentações de Canção e silêncio.

Mas não. Ele já tinha excursionado por lá tocando sanfona com o grupo Matingueiros – “tocando não, enrolando. Tem a parte das baixarias que eu até hoje não sei fazer, então tocava só as teclas, que são iguais às do piano”. Antes ainda desse episódio, Zé guarda a memória de ter passado muitas férias de infância na Bahia, divididas entre Irecê, onde uma parte da família de sua mãe morava, e Salvador. Seus pais saíam de Petrolina numa Pampa com todas as crianças na carroceria: “a gente colocava um colchão atrás e íamos sentados, uma vez foi até minha avó! Naquela época podia. Era um máximo, vento na cara e a gente brincando o tempo todo. O pessoal acha estranho, acha que eu não conhecia Salvador, mas chego lá e tenho amigos de vários lugares, de todo jeito”.

Entre a infância e as apresentações, já como músico, quando tinha uns 20 anos Zé comprou uma mochila e foi passar um tempo na cidade. “Por isso tenho curiosidade de saber quem é meu público em Salvador. Toco sempre na Casa da Mãe porque eu gosto e o pessoal me convida. Da última vez que fui, toquei dois dias seguidos, os dois encheram. Pedem pra eu tocar em outro lugar, mas eu nem saberia onde. Fora que não dá pra levar a banda, e aí eu me apresento sozinho”. Tirando a vez que se apresentou no Teatro do Sesi, no lançamento do disco de Antônio Carlos Tatau.

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Zé Manoel é o 5º filho da família Carvalho. Permaneceu como o caçula da casa por nove anos, quando nasceu a sexta irmã. Foi por volta dessa idade, 9 ou 10 anos, que um coleguinha de escola deixou um teclado em sua casa. Com a deixa de ter o instrumento por um dia, largou o violão de lado e, antes de devolver o teclado, aprendeu de ouvido a tocar algumas músicas. Ali decidiu que queria aprender piano.

O violão era o instrumento do pai, que contratou a professora Rose para dar aulas aos filhos. As irmãs também aprenderam. A mais velha era a melhor, mas ninguém se interessou mais a fundo. Hoje os irmãos de Zé Manoel são quase todos professores: Roberta é engenheira de alimentos e professora do IFPE em Petrolina; Ana Paula é pedagoga; Ana Carla é bióloga de formação e mora no Chile; Luquinha é engenheiro agrônomo e também professor; e Manuela faz pós doutorado em Farmácia. Vivendo no seio de uma família superprotetora, Zé diz que acabou fazendo tudo que a família não imaginava que ele faria. Ninguém imaginou que ele seguiria a vida de artista, que faria turnês, que gravaria discos e que fosse viver de música integralmente. Devido à sua seriedade, hoje respeitam a forma como ele encara a profissão e o apoiam de todas as formas possíveis.

Essas descobertas frustraram minhas expectativas bourdiesianas sobre a história de Zé Manoel. Ele nunca teve um piano em sua casa. Depois do episódio com o teclado do colega, ele começou a parar na escola de música de Petrolina todos os dias quando voltava do colégio para perguntar quanto custavam as aulas de piano. A repetição do gesto irritou a professora, que lhe devolveu: “Menino, eu já lhe disse o valor. Só volte aqui o dia que você for estudar. ”

Na escola de música da professora Lúcia as aulas duravam uma hora. E nesses 60 minutos era difícil mantê-lo concentrado. Se tocava uma nota errada, Lúcia gritava de seu escritório: “Zé Manoeeel!”. Escutava o mesmo grito quando Lúcia percebia que ele estava xeretando as salas alheias para conversar e ver o que os colegas estavam tocando – geralmente um repertório diferente do dele. Por intuição ao que ouvido de Zé já àquela época se afinava, Lúcia o mergulhou na música brasileira de Chiquinha Gonzaga, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Edu Souto. Enquanto os demais aprendiam Bach, Chopin, dentre outros compositores europeus. Quando Lúcia ia escolher a música que ele deveria estudar, Zé pedia que ela as tocasse no piano para saber qual gostava mais. O pedido era também uma desculpa para não ter que ler a partitura; enganava a professora para ficar de olho em suas mãos e atento ao som, pegando a uma parte da música de ouvido e observando Lúcia: “eu me arrependo, porque minha leitura hoje em dia é péssima”, confessa.

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Numa tarde de papo com Zé Manoel no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, ele diz ter dificuldades de fazer planos a longo prazo –  “não sei nem se vou estar vivo” – e que sempre teve problemas para organizar a vida de modo concreto, a não ser a médio prazo. Atribui isso a algumas experiências que teve e ao signo que compartilhamos, capricórnio – apesar de sermos tarimbados pela obstinação da cabra subindo a montanha, organização e planejamento não é nosso forte.

“Me imaginar fazer outra coisa que não música? Queria ter vários imóveis, cair fora do circuito de música e viver de renda. Porque a gente dá a vida e tem pouco retorno, digo financeiramente”. Mas Zé nasceu artista e, apesar de dizer que ficaria longe da atividade, logo reformula: “quero que minha obra tenha uma coerência. O resto vai se desenrolando pelo caminho. Caso eu morra amanhã, eu não queria estar aqui em São Paulo, por exemplo, porque não era o que queria para a minha vida pessoal. Eu sinto falta de água, do mar ou do rio. A rotina é mais pesada aqui e você não tem muita fuga, o que às vezes é desgastante. Poderia estar morando em Salvador, por exemplo”.

Zé nasceu no sertão e foi criado à beira do rio São Francisco. Depois, a cidade em que morou por mais tempo foi Recife. Esse trânsito entre água doce e salgada marca suas composições – além de ter sido em alto mar que a carreira solo começou e que o Zé Manoel cantor de suas próprias composições foi se moldando.

Em Canção e silêncio ele não pensou na temática da ligação com a água como algo que daria unidade ao disco. Ela estava naturalmente lá, porque faz parte de sua vivência e do que o constituiu. Zé tem um entendimento da vida bastante formal. Quando escreve, as coisas acabam sendo muito literais ou imagéticas porque quer, em primeiro lugar, ser compreendido. Isso gera, segundo ele, muitas dificuldades pois se considera péssimo para entender ironias, dualidades etc. Precisa que os sentidos sejam diretos. Água doce, por exemplo, que abre seu segundo disco, é um relato fiel de “quando a chuva chega no sertão”. Zé estava conversando com sua mãe quando ela olhou para o céu e disse: “vai chover”. Mas é muito difícil chover em Petrolina. Às vezes fica nublado, o céu fica carregado, e não chove. Quando sua mãe disse que daquela vez choveria, ele perguntou “como a senhora sabe?”. Ela sabia pelo movimento das nuvens no céu: “desembesta o vento em ventania / o cinza no céu rodopia/ e o sertão inteiro se arrepia”.

Um dia de chuva no sertão é um dia mágico: o humor das pessoas muda, as crianças faltam à escola: “é como se você tivesse o mundo real e aqui o mundo ao contrário” – Zé mostra o peito da mão e a vira para baixo –, “e ele se inverte. Está tudo seco e de repente fica tudo verde, é muito rápido. Mexe com tudo de forma mágica mesmo. Então eu uso a letra e a música para tentar causar a sensação do que eu sinto nas pessoas”.

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Zé me diz que poderia estar morando em Salvador. Faz um desses dias em que o sol quase disfarça a friaca que chega, agora, sem escapatória, todo fim de tarde, acompanhada do vento gelado.

No bar em que nos sentamos na Rua Dona Veridiana, à medida que a tarde ia caindo, eu vestia as blusas que tinha tirado no caminho de ônibus da Brigadeiro até o largo da igreja. Zé usava bermudas, tênis e apenas uma camiseta. Além de sua correntinha dourada para dentro da blusa. Antes de ligar o gravador, nosso papo girava em torno da pergunta: o que estamos fazendo aqui em São Paulo?

Zé veio pra cá quando estava gravando o disco financiado pela Natura Musical. Na ocasião, se hospedou ali perto de onde estávamos – e me mostrou, apontando com o dedo para fora do bar, que tinha sido por aquelas redondezas. Ficou um tempo na casa de uma cantora que também estava gravando pela Natura e que o tinha abrigado.

Depois, quando veio para morar definitivamente – ainda que a vida de músico seja de trânsito constante –, passou um período no Alto da Lapa, uma região “cara, estranha e longe”. De lá, alugou um quartinho na Luz com dois roomates que trabalhavam fora. O que era ótimo, porque tinha seu tempo em casa livre e, quando eles chegavam, estava na hora de Zé sair para tocar. Dali foi para Pinheiros, entre a Faria Lima e a Fradique, onde ficou outro período. A localização era ótima, mas ainda precisava de um canto mais certo. Foi uma saga de meses entre casas de amigos e quartos provisórios até encontrar o novo lar, perto de onde nós estávamos. Ao todo, foram mais de 4 endereços em dois anos.

Zé já conhecia a vida cigana. Em 2007 ele saiu de Petrolina para fazer faculdade em Recife. Nesse meio tempo, mudou-se inúmeras vezes: foi com a mãe e os irmãos para Itabaiana, Estância, Aracaju, Campina Grande e, por fim, Recife, onde cumpriu parte da vida escolar. Mas voltou para Petrolina para concluir o ensino médio na sua cidade natal, na mesma escola que sempre estudou, o Colégio Dom Bosco. Conseguiu pagar as mensalidades tocando na Igreja aos domingos e nos eventos da paróquia. Terminou o colégio e se virou dando aula de piano, de musicalização infantil e tocando na noite. Alguns anos depois, decidiu que deveria fazer vestibular e prestou licenciatura em música na Universidade Federal do Pernambuco.

“Vindo do interior para a capital, você é sempre o matuto”. Em Recife as pessoas eram fechadas em seus grupinhos; na universidade, as aulas eram chatas, porque quase não tocava, já que tinha muita teoria e a maioria das matérias eram de educação. Ao mesmo tempo, coisas muito mais interessantes do que a universidade foram aparecendo, como o convite para tocar em um cruzeiro por três meses.

Antes de embarcar, Zé se mudou para João Pessoa, onde passou dois meses ensaiando para subir a bordo do navio que saía de Santos, passava por Cabo Frio, Búzios e Angra dos Reis, depois Itajaí, Punta del Este e finalmente chegava em Montevidéu.

Eram muitos músicos e apresentações diferentes. Zé tocava piano na banda que se apresentava no bar. O vocalista da banda, Gean Ramos, ao longo da viagem fazia jornada dupla no bar e nos musicais do teatro, com os horários das apresentações coincidindo. Então, muitas vezes, Zé assumia os vocais para cobri-lo e foi a primeira vez que se apresentou cantando, puxando boleros e samba-canções. Foi aí que pensou em apresentar as próprias músicas e seguir a carreira da maneira como faz hoje.

O resto do tempo no navio era entediante. Não tinha muito tempo livre porque os músicos eram os últimos a desembarcar numa parada e os primeiros a voltar. Passava os dias em seu quarto. Até que descobriu uma loja de discos e livros em Montevidéu, e toda semana ia comprar livros e CDs de música latina, argentina e uruguaia, sobretudo.  Ao fim da viagem, juntou tudo que tinha de maior importância numa sacola… e a perdeu.

Fora da faculdade, conheceu a cena de chorinho do Recife, que rolava toda quarta-feira no Retalhos Bar, na Rua da Aurora. Era ali que uma turma boa se reunia, incluindo Isadora Mello, que participou de seus dois discos.

No movimento do choro, de cara adorou Isadora por ela ser uma figura muito divertida; se deram muito bem. Mas não foi assim tão fácil a aproximação, pois Zé se considera muito fechado: “as pessoas chegam achando que eu sou fofo, descobrem que não e se afastam”. Quando o chamam para sair, raramente Zé aceita de primeira. Aí logo acham que é pessoal, mas não é. É porque o capricorniano tem seu tempo e seu mood, é difícil acertar os ponteiros. Zé, quando sai, sai só, vai andando pela rua, acha um botequinho, conversa com quem estiver por perto, ou nem conversa… Mas Isadora persistiu nos convites.

A cantora entrou no primeiro disco de Zé na música Cinema nacional, que era para ser instrumental: “mas eu inventei um parapapara pra Isadora cantar porque queria muito que ela entrasse”. No segundo disco a voz de Isadora também aparece em Volta pra casa – que ela executou no lançamento de Canção e silêncio, no Teatro Solar de Botafogo no Rio.

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Canção e silêncio foi lançado em 2015, com produção de Carlos Eduardo Miranda e Kassin. Zé acha que no primeiro disco, lançado em 2009, ele tinha uma visão muito fechada, no sentido de que não queria se parecer com nada pop. Foi então que Miranda entrou, dizendo que ele precisava apenas ser o que já era. O exemplo maior está na canção que dá nome ao disco, sua música mais conhecida e tocada, regravada por Filipe Catto e interpretada por Ana Carolina na coletânea Delírio de um romance a céu aberto.

Quando chamou Miranda para produzir o disco, Zé queria alguém que não respeitasse muito seu jeito já meio formatado de trabalhar, justamente para que ele saísse do lugar e fosse desafiado. Nesse sentido deu certo, pois Miranda cobrava bastante. Além disso, foi ele quem trouxe Kassin, com quem Zé diz que gostaria de trabalhar novamente.

Zé sempre diz em entrevistas que tinha medo de ser considerado um “cantor romântico” pela crítica ou pelo mercado. Pergunto de onde vem esse medo, qual seria o problema e se ele se considera romântico na forma de ver a vida e no amor. Ele explica que quando chegou em Recife, na virada dos anos 1990 para os anos 2000, pegou o “pós-mangue”. Por isso sentia vergonha de falar de amor enquanto todo mundo estava falando das mazelas da cidade, da transformação do mundo, de tecnologia, de cultura popular etc. Hoje ele não se preocupa mais com isso. No entanto, quando fala sobre o próximo disco que está compondo, diz que não pode fazer um disco “fofo” em meio ao período que estamos vivendo. E diferentemente daquele momento, em que uma música ou outra do Manguebeat chegava a Petrolina, Zé agora está no olho do furacão. Agora pode mesclar as coisas, porque um artista “precisa ter liberdade para se expressar e elaborar o que surge dentro dele”.

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Depois das andanças e percalços de um longo trajeto percorrido, literalmente, mas ainda no começo, Zé prepara outro disco. Se em Canção e silêncio a afetividade com a água foi um fio condutor da poesia, das sensações e realidades espaço-temporais exploradas, agora é um senso agudo da realidade política e social conservadora e de uma vida urbana desgastante que intrigam Zé.

Zé é um artista negro. As sociabilidades nas muitas cidades por que passou foi fundamental para que entendesse sua própria identidade. Ainda que vejamos em seus traços a mestiçagem típica brasileira e do sertão nordestino: os olhinhos puxados, a pele parda, o cabelo black. Hoje, é como negro que ele se reconhece. E o processo de se reconhecer como negro ainda está em curso, pois, como diz, não cresceu como negro dentro da própria casa. Mesmo que seus pais tenham fenótipos nitidamente negros, os irmãos saíram diferentes entre si: “como que a gente vai dizer que é uma família negra? Tem descendência indígena, tem todo tipo de mistura. Eu me descobri negro, mas não posso cobrar que minhas irmãs se descubram negras. É como pessoas brancas que elas são recebidas no lugar em que vivem, que é muito miscigenado. Quando você sai é que começa a encontrar outros referenciais. Hoje eu penso em situações que vivi em Petrolina e que eu não sabia que era racismo”.

Estão delineadas as questões do próximo disco. Só resta esperar que venha, agora, a beleza, o drama e a formalidade da visão do capricorniano com ascendente em câncer vendo – e ouvindo – o mundo do olho do furacão que é São Paulo.


Pérola Mathias é crítica e socióloga.

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