Treta | Audiovisual


Foto do filme "The Square"

UM FILME DE SÉRGIO BIANCHI

junho de 2018

Edição: 20


Sobre The Square, de Ruben Östlund

 

Eu queria que esta coluna fosse um poema

contemporâneo

sobre o problema contemporâneo

da arte

que se resolve em uma única

ideia

e não se complexifica.

 

Aviso 1: Há ótimas maneiras de rir da classe média branca “esclarecida”: uma delas é assistir ao filme O Homem ao Lado (2009), de Gastón Duprat e Mariano Chn.

Aviso 2: Há tretas que valem textão no facebook, há tretas que valem um doutorado. O filme em questão merece um meme, talvez este aqui:

Mentira, ele merece este aqui:

“Ze Squérr”, de Ruben Östlund, conta a história de um refinado curador de museu que se vê possuído pelo fantasma de David Brent/Michael Scott. Aterrorizado, ele entra inadvertidamente no enredo de Cronicamente Inviável (2000), de onde, infelizmente, não consegue escapar. Quase ao final do filme, o preparador de atores de Planeta dos Macacos tenta nos tirar daquele poço de obviedades, mas tudo vai por água abaixo quando também ele se vê inserido na trama política do bug do milênio.

“Ze Squérr” chega todo trabalhado no lugar-comum e riso superior, com piadas sobre Comic Sans, pessoas que não sabem o significado da palavra paradoxo, mulher louca com macaco de estimação, discursos ensaiados para parecerem de improviso, funcionária bonitinha que faz sugestões burrinhas, homem com síndrome de Tourette que grita palavrões no meio de palestra sobre arte contemporânea etc. Seu roteiro é uma justaposição de cenas feitas para incomodar o espectador: chefe constrange subordinado, subordinado arranha o carro do patrão, mulher cigana mal-educada pede comida em loja de conveniência, homem faz criança cair da escada.

Há uma cena especialmente mal-feita, digna de atenção: nosso curador está sozinho em seu apartamento, tomando vinho e lendo uma carta que o ameaça, quando ouve a maçaneta da sua porta ser forçada. Ele caminha lentamente por seu apartamento até chegar ao corredor de entrada. SUSPENSE. Ele para. Ouvimos apenas o barulho insistente da maçaneta. De repente, os gritos das crianças: “Papai, você não nos pegou na escola!” O pai abre, as crianças começam a gritar e se estapear freneticamente (Mas não antes. Antes elas estavam tentando abrir a porta EM ABSOLUTO SILÊNCIO, BEM AO FEITIO DAS CRIANÇAS DESESPERADAS). Respira fundo, pausa para apreciar o build-up de tensão e o plot twist:

Resumo da curva dramática do filme: 1. Você não descobre nada dos personagens que não tenha sido mostrado na primeira cena. 2. Todos são o que deixam transparecer desde o início. 3. Tudo é fácil e pouco elaborado, e cada cena serve ao mesmo propósito.

Agora aproveitemos para falar de O Homem ao Lado. No longa argentino, família classe média alta é incomodada por um vizinho “popular”, Víctor, que abre uma janela na empena que dá diretamente para o living envidraçado da casa de Leonardo e Ana. Víctor é um personagem delicioso, e tão imperfeito e familiar quanto o casal vizinho que aborrece. Assim que aparece, ele toma as rédeas da narrativa e está lá para mostrar todas as pequenas contradições e hipocrisias dos refinados vizinhos, donos da única casa feita por Le Corbusier em todo continente americano. Leonardo e Ana são extremamente críveis; eles são ridículos como NÓS somos ridículos: eles têm pudores, tentam ser civilizados, demonstram um misto de admiração e repulsa pelos traços rústicos do vizinho, e a presença de Víctor em suas vidas tem, inclusive, o poder de desequilibrar seu casamento (por isso, inclusive, não gosto do fim do filme, quando todo esse cálculo complexo é desprezado em prol da explicitação de um desejo). Após muitas tentativas frustradas de impedir que seu precioso imóvel seja devassado pelo olhar pouco qualificado de Víctor,  Leonardo perde a civilidade e agride verbalmente o tio idoso do vizinho. Após o momento de explosão, Leonardo refugia-se em seu carro, sentindo-se um fracasso. A cena para demonstrar o sentimento é deliciosa e hilária. Quem nunca teve a consciência pesada por não se comportar à altura do que desejaria?

“Ze Squérr”, então, estaria distante de O Homem ao lado e próximo de Cronicamente Inviável, filme que demonstra a obtusidade do pensamento da esquerda do Brasil da época (além do nosso nível inferior de direção, fotografia, roteiro, atuação e montagem em relação aos hermanazos). Em C.I., se lugares comuns abundam, imagens “chocantes” abundam ainda mais. Vou dar apenas um exemplo, do início do filme, já que a Barril não me paga o suficiente para que eu reassista até o fim a essa bomba de arrogância e mau-gosto:

Imagens do Carnaval em Salvador. Um homem branco se destaca da turba por seu olhar compenetrado. Voz do narrador: “Uma perfeita forma de dominação autoritária: a felicidade. (..) Mantém todo mundo pobre, colocam um som pra tocar e pronto. (…) Mas por que os que não querem ser felizes são obrigados a participar?” O homem, nosso personagem iluminista, caminha em reflexão em meio aos foliões descerebrados. Terminado o lindo discurso (que é bem mais longo do que a seleção acima), vemos a imagem de dois homens negros mijando na rua. O mijo escorre pela calçada até molhar o corpo de uma criança negra, que dormia no chão.

Shocking!

Ainda não quis sair correndo? Tem muito mais! Em minutos, é possível inferir que o discurso do filme partilha lógica e sistema de valores com o sistema opressor que pretende denunciar. Tal discurso é inequivocamente elitista, e parte do pressuposto de que seu enunciador é culturalmente, moralmente e intelectualmente superior aos tipos e dinâmicas satirizadas na narrativa. Os personagens são rasos, as situações esquemáticas; não há sutileza, progressão, curva, nuance. Todas as cenas convergem para um único objetivo: fazer com que o espectador  1. Se choque com a “realidade”, 2. Aponte o dedo para o outro, mesquinho e hipócrita, e 3. Respire aliviado por não se enquadrar ali.

Soa familiar? Voltemos a “Ze Squérr”, especificamente para este Grand Finale:

Ao fim da cena da performance do gorila, um salão com cerca de 200 pessoas resta imóvel enquanto um homem arrasta uma mulher pelos cabelos e tenta violentá-la. É uma das cenas mais burras que vi na vida. Aqui não há adjetivo melhor do que burro, porque só a burrice não reconhece a complexidade que esta situação tem. No filme vemos, por cerca de dois minutos, pessoas covardes que se recusam a ajudar uma mulher para conseguir salvar a própria pele. Que essa mulher seja rica, seja filha de alguém importante, seja ela mesma alguém importante, tenha muitos contatos, seja uma patronesse do museu, não importa para o filme. Que nenhum dos ricaços tenha chamado os seguranças, mandado um zap pro guarda-costas, pro motorista, tampouco o filme acha que você deva considerar estranho. E então chega o esperado Grand Finale, aquele sob medida pra satisfazer moralistas sedentos por sensação de superioridade: após o primeiro homem finalmente agir e tirar a mulher das mãos do performer, vários outros homens vêm para linchar o artista já caído ao chão, que agora é espancado aos gritos de “Matem-no!” (Shrek 3 tem uma cena parecida, mas muito melhor).

VIU COMO VOCÊ É MELHOR DO QUE ELES?

(Insira seu meme ou GIF favorito)

Algumas verdades finais:

  1. Östlund, assim como Bianchi, precisa deixar uma distância segura entre ele e os personagens que ridiculariza.
  2. Isso caracteriza covardia.
  3. Por isso, em “Ze Squérr”, nada se constrói, tudo se amontoa.

    Clara Lobo é diretora de vídeo e escritora.

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