Ensaio | Audiovisual


"Mon cher, je suis fatigué, et j'ai Besoin de ropos; je vais flâner au Brésil!", obra de Luís Arnaldo.
Amine Barbuda 2018

O filósofo foi ao cinema

junho de 2018

Edição: 20


Walter Benjamin entre as salas de Moscou e Paris

Pelos cinemas de Moscou

O ano de 1927 talvez tenha sido um dos mais decisivos na vida de Walter Benjamin [1892-1940], sobretudo em sua relação com a política e, especialmente, em sua interpretação da trama que se estabelece entre política e cinema. Entre os meses de novembro de 1926 e janeiro de 1927, Benjamin havia realizado uma viagem até a Rússia e pôde ver de perto o funcionamento do regime de Stálin. Sem mediações jornalísticas e ao lado da revolucionária diretora teatral Asja Lasis [1891-1979], deparou-se com as mais improváveis contradições sociais. Há quem diga que nesta viagem Benjamin encerrou qualquer vaga possibilidade de filiação ao Partido Comunista Alemão, mas não nos parece menos verdadeiro dizer também que ela lhe adensou o vínculo com o pensamento marxista. Um enlace, aliás, como já se notou, muito particular. Das suas impressões, recolhidas entre notas e diários, originaram-se alguns ensaios sobre a situação russa sob o domínio de Stálin e, especialmente, sobre a situação do cinema produzido naquele país.

Em Sobre a situação da arte cinematográfica russa (1927), Benjamin lamentou o fato de os russos serem muito pouco críticos com relação ao volume de filmes ali produzido. Em sua estadia em Moscou, notou que o que havia de melhor no cinema exibido na cidade já poderia ser visto em Berlim sem maiores prejuízos, já que o crivo da crítica especializada alemã já havia separado o joio do trigo, os bons e os maus filmes. Lembra que o sucesso de Eisenstein com Encouraçado Potemkin (1925), por exemplo, foi decidido na Alemanha e atribuiu o estado acrítico dos russos à falta de parâmetros em relação ao que era produzido no restante da Europa. Da perspectiva da produção, viu na censura um dos maiores entraves para a realização dos filmes médios na Rússia – igualmente usual no teatro e, em menor proporção, na literatura. Os temas relacionados à Revolução constituíam o maior interesse da indústria cinematográfica. Adaptações de grandes romances russos ambientados na Rússia Oriental procuravam destacar a soberania e independência daquele país em relação aos demais, incluindo aí a recusa da ideia romântica de um “Oriente distante” e exótico.

Em A sexta parte do mundo (1926), Dziga Vertov começa apresentando uma relação dialética entre os lugares de trabalho e os lugares de lazer da capital, para logo em seguida expor “uma descrição dos povos e das regiões da Rússia cuja relação com a sua base econômica é sugerida de forma muito nebulosa”[i]. O argumento do filme segue uma premissa formal que procura liberar a expressão fílmica de qualquer aparato decorativo, apoiando-se na ideia de que é possível mostrar a própria vida nela mesma e dar seguimento ao lema “Libertemo-nos das máscaras”. Lema que, segundo Benjamin, explica o papel diminuto da “estrela do cinema” nos filmes russos daquele período, uma vez que o que realmente importava era a espontaneidade do camponês e do trabalhador, suas imagens livres da ideia de uma re-presentação.

Foi conferido ao camponês o protagonismo nas produções russas e foi também a ele que se dirigiu o grosso daquelas montagens. Segundo Benjamin, os temas variavam entre o conhecimento histórico e político até noções técnicas e de higiene. Entretanto, no decorrer dessas experiências, notou-se o grau de dificuldade que a assimilação do camponês encerrava diante de um filme cuja complexidade residia na alternância de mais de uma sequência. A sua percepção diferia daquele espectador urbano habituado à exposição cinematográfica. Não era treinado nos choques dos citadinos, não havia sido exposto ao tumulto das ruas e aos disparos propagandísticos das empresas publicitárias. Passou-se então a produzir filmes direcionados aos chamados “cinemas ambulantes”, responsáveis por levar os filmes aos mais remotos confins da Rússia. Parte deste material era destinado diretamente aos camponeses e exibiam cenas como o controle de pragas, manuseio de ferramentas e combate ao alcoolismo. Outra parte, de alcance mais restrito, era destinada aos membros sovietes de aldeia e correspondentes camponeses, supostamente mais preparados para as montagens mais complexas. De todo modo, aos cuidados do Comitê Central, os temas eram pautados de acordo com o propósito de despertar o esclarecimento nos trabalhadores do campo.

A seriedade com que o cinema russo encarou a bandeira pela industrialização, e com ela também a questão da técnica, despertou especial interesse em Benjamin. Noutras praças, como a norte-americana, por exemplo, o burlesco ocupou-se de satirizar as nossas relações com a técnica, enquanto entre os russos, ao contrário, a postura foi de absoluta austeridade e aposta nos processos industriais. Este dado explica, em grande medida, o fracasso das comédias importadas exibidas na Rússia. Benjamin observou que “o novo russo é [era] incapaz de compreender um ponto de vista irônico e cético em relação à técnica”[ii], assim como também se mostrava intolerante com os chamados “problemas da vida burguesa”. Dramas de amor, traições, suicídios e afins foram vistos como excessos grosseiros. O cerne do debate russo daquele período se dava em torno dos temas, em saber qual o tipo de assunto que se mostrava relevante em ser levado às telas e, o mais importante, quais as suas chances de promover a emancipação popular. Com certa utopia, Benjamin conclui que “o cinema russo só poderá se assentar numa base segura quando a situação da sociedade bolchevista (…) for suficientemente estável para poder aguentar uma nova comédia social, novos papéis e novas situações-tipo”[iii]. Aqui o filósofo Benjamin assume o lugar de um espectador que percebe certa pobreza na produção nacional, ao mesmo tempo em que guarda alguma esperança por um cinema assentado numa “base segura”. Como se poderiam oferecer as tais bases seguras é algo que permanece em aberto, mas o que poderia o cinema oferecer a partir daí parece encontrar o seu arquétipo em Eisenstein, autor do Encouraçado Potemkin, “um grande filme, daqueles que raramente acontecem”[iv], diz Benjamin.

 

Pelos cinemas de Paris

Quando Benjamin deixou Moscou, em janeiro de 1927, perambulou solitário pelo interior da França até que, por fim, fixou morada em Paris. Estava disposto a desfrutar da rica atmosfera cultural que pôde presenciar, apesar da difícil situação material que já se encontrava naquela altura. Por uma temporada viveu no miserável Hôtel Midi, na Avenue Du Parc Montsouris, onde “ocupava um quarto igualmente miserável, minúsculo e malconservado, que mal continha uma cama de ferro e poucas peças de mobília”[v]. Em A história de uma amizade, Scholem [1897-1982] relata o encontro entre os dois amigos. O último havia acontecido cinco anos atrás e a imagem que guardara era a de um homem que sabia exatamente para onde queria ir, inteiramente firme em seus propósitos. No entanto, o reencontro entre os dois em 1927 exibiu um Benjamin em intenso processo de fermentação e aberto a novas perspectivas no plano prático e intelectual. Por essa época, Benjamin se divertiu no Grand-Guinol, um teatro parisiense que exibia espetáculos de horror e realizou as suas primeiras experiências com o haxixe, a mescalina e o ópio, descritas em Haxixe em Marselha (1932). Frequentou com assiduidade a Bibliothèque Nationale, leu Breton e Aragon e se afinou, em certa medida, com os interesses surrealistas, dos quais extraiu os elementos que moldaram as primeiras páginas do seu inacabado projeto Passagens. Foi também o ano em que marchou de gravata vermelha e um terno surrado pelas ruas de Paris contra a famosa execução de dois anarquistas italianos vitimados por um processo jurídico norte-americano calunioso embalado exclusivamente pelo “temor vermelho” contra os comunistas. Em raro gesto de ativismo direto, Benjamin se opôs com veemência às sentenças de morte de Sacco e Vanzetti – anos depois imortalizados pela voz de Joan Baez em Here’s to you. Também naquele ano de 1927, Benjamin frequentou as salas de cinema parisienses, e muito.

As suas impressões cinematográficas daquele ano, aliadas a uma constante reflexão sobre a técnica, o marcariam de tal modo que mais tarde lhe renderam outros trabalhos de maior impacto. Em seu famoso ensaio sobre A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (1935), escreveu que “se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização (…) engendrou nas massas (…), perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização (…) através de certos filmes”[vi]. Alguns diretores de cinema lhe pareceram fundamentais diante da percepção de que seria possível uma imunização contra a técnica por meio dela própria, ou seja, pela própria arte industrial por excelência, o cinema. Na Paris de Hemingway, Henry Miller e Gertrude Stein, Benjamin viu filmes com regularidade, sobretudo quando havia em cartaz alguma película estrelada pelo norte-americano Adolphe Menjou, por quem nutria grande admiração. Dentre os filmes com participação de Menjou, produzidos e exibidos no período anterior a 1927, dois dos seus diretores podem nos oferecer algumas pistas sobre a orientação teórica de Benjamin em torno do cinema e de sua ideia de imunização contra uma técnica que se impõe como dominação: Charles Chaplin [1889-1977] e D.W. Griffith [1875-1948].

Citado por Benjamin em inúmeras passagens, Chaplin encarnou justamente aquele espírito satírico em relação à técnica que os russos ignoravam. Um insurgente contra aquilo que Benjamin chamou de uma “segunda natureza”, uma natureza “que o homem inventou mas há muito não controla”[vii], ou seja, a técnica sob a forma de dominação. Chaplin, o clown, pôs por terra a ordem da representação cênica. Sua capacidade de desestabilizar o corpo humano, habituado ao movimento mecânico que mimetiza a máquina, teria cumprido o sentido social-pedagógico que Benjamin atribuiu ao cinema e que o filme burlesco norte-americano executara tão bem. Para ele, o cinema tem como tarefa histórica tornar toda a maquinaria técnica do nosso tempo o “objeto das inervações humanas”, de modo que uma de suas “funções sociais mais importantes é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho”[viii].

Griffith encaminha essa função ao amplificar certos recursos já conhecidos do cinema, mas relativamente pouco explorados até então. Tido como criador de uma nova gramática cinematográfica, Griffith aplica técnicas como o close-up e a montagem, por exemplo, que reverberam na criação do conceito de “inconsciente ótico” forjado por Benjamin. Ao falar em “inconsciente ótico”, pensa na ênfase da objetiva sobre os pormenores ocultos e na sua capacidade de nos descortinar as múltiplas formas de condicionamentos a que estamos acometidos, assim como na sua possibilidade de nos abrir novos espaços de liberdade. Percebe “que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que a que se dirige ao olhar”[ix]. No lugar do espaço consciente que habitualmente lidamos, encontramos um espaço inconsciente, quiçá recalcado, experimentado pelo “inconsciente ótico”. Segundo Benjamin, os desarranjos visuais oferecidos pelo filme afetam diretamente os nossos sonhos, alucinações e psicoses e se oferecem como uma contrapartida em que, pela primeira vez, a percepção coletiva se apropria das alucinações, sonhos e psicoses privadas. O cinema subverte a lógica heraclitiana, segundo a qual “o mundo dos homens acordados é comum, [e a] dos que dormem é privado” e se oferece como antídoto às massas por meio do riso coletivo, uma “explosão terapêutica do inconsciente”. É nesse sentido que o cinema abre novos espaços de liberdade e é aí que Chaplin e Griffith se situam. Mais do que temas ou formas artísticas, Benjamin reconheceu que os progressos elementares da arte estão subjugados a uma antecipação técnica, e o cinema é elucidativo nesse sentido. A câmera nos mostra que a simples representação diante do aparelho não é o suficiente, mas que a maneira como o mundo é representado graças ao aparelho que é decisiva. E isso Benjamin percebeu, pelo menos, desde aquele longínquo ano de 1927, tanto em Moscou como em Paris.

[i] Benjamin, W. Sobre a situação da arte cinematográfica russa. Em Walter Benjamin: estética e sociologia da arte, 2017, p. 135.

[ii] Ibidem, 136.

[iii] Ibidem, ibidem.

[iv] Benjamin, W. Réplica a Oscar A. H. Schmitz, em Walter Benjamin: estética e sociologia da arte, 2017, p. 143.

[v] Scholem, G. Walter Benjamin: A história de uma amizade, 1989, p. 136.

[vi] Benjamin, W. A obra de arte em sua reprodutibilidade técnica, 1984, p. 190.

[vii] Ibidem, p. 174.

[viii] Ibidem, ibidem, 189.

[ix] Ibidem, Ibidem.


Rodrigo Araújo é professor de filosofia do IFBA.

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