Ensaio | Visuais


Praticante de selfie tendo ao fundo a Fontana del Nettuno, na Piazza della Signoria, em Florença
Diego Mauro 2015 d.C.

Último selfie em Pompeia

junho de 2018

Edição: 20


Mãe! Tudo bem por aí? Sei que ando meio sumido, mas a faculdade tem me demandado tanto que, durante o pouco tempo que tenho livre, me sinto exausto. O ar aqui é ruim e não me dou bem com máscaras de oxigênio. Mas está valendo a pena, porque é uma puta oportunidade participar das escavações desse sítio arqueológico que promete mudar o jeito como a gente entende os povos de quinhentos anos atrás. Ainda estou imerso em hipóteses e dúvidas, mas vou te falar um pouco sobre como estão as coisas por aqui, porque a melhor forma de matar as saudades é saber o que o outro tem feito.

A cidade em cujas escavações estou participando se chama Pompeia, um dos sítios arqueológicos mais importantes da Terra. É o único lugar onde ocorreu a sobreposição de duas camadas históricas muito distantes temporalmente. Vou tentar explicar de modo simples: na maior parte das cidades, mesmo aquelas não muito antigas, ocorre um fenômeno chamado palimpsesto. Palimpestos são camadas históricas que se acumulam ao longo do tempo, em um processo que dura séculos. Um exemplo simples: no início do século XX d.C., ainda haviam muitas ruas de terra batida nas cidades. Essas ruas foram pavimentadas com paralelepípedos. Depois veio o asfalto, um composto à base de um derivado de petróleo que tornava as cidades quentes e impermeáveis – mais uma estupidez do século XX d.C., disseminada por conta de automóveis também movidos com combustíveis fósseis. O palimpsesto deixa para nós, arqueólogos, indícios preciosos de como viviam as pessoas de determinada época. Uma camada nova recobre a mais antiga, mas essa camada anterior fica ali, preservada. Ainda hoje, se a gente escavar por baixo dos bulevares verdes das cidades, encontraremos em diversos lugares o asfalto e embaixo dele, o tal do paralelepípedo. E o que torna Pompeia tão diferente é a sobreposição direta da camada do século I d.C. com a camada do século XXI. d.C.

Bem perto daqui existe o monte Vesúvio, na verdade um vulcão adormecido, o que é diferente de um vulcão extinto e significa que ele pode entrar em erupção a qualquer momento. Foi justamente uma dessas erupções devastadoras do Vesúvio que imortalizou o último instante das dez mil pessoas que estavam naquele dia em Pompeia. Uma onda fulminante de calor e gases venenosos matou as pessoas sem dar a elas tempo de se mover Essas pessoas foram enterradas por uma camada espessa de pedras e cinzas que deixou a cidade intacta desde o século XXI. d.C. até as nossas escavações.

Apesar de ser pequena para os padrões do século XXI d.C. – os vinteunos adoravam cidades gigantes que mais se pareciam com formigueiros humanos, veja que loucura – Pompeia talvez tenha sido a cidade mais cosmopolita do Mediterrâneo. Haviam povos de todos os cantos do mundo, mas haviam principalmente asiáticos.

Quase ninguém morava em Pompeia. A grande maioria vinha fazer um ritual de um dia, coisa rápida porque os vinteunos eram muito práticos, e por isso não haviam dormitórios na cidade. Nápoles, uma cidade maior a 22km de distância, era uma cidade-dormitório de Pompeia. Os visitantes de Pompeia não socializavam muito entre si e sua maioria se comportava como se estivesse em pequenas procissões, normalmente de vinte a quarenta pessoas. Não parece que entoassem nenhum cântico. Há algumas poucas caravanas com mais de cem pessoas, normalmente de asiáticos. Para cada uma dessas caravanas, havia um líder que se distinguia claramente dos demais por estar à frente, meio destacado, normalmente portando algum artefato em riste. Às vezes, esse artefato era um disco com algarismos indoarábicos, às vezes um guarda-chuva (uma proteção arcaica contra a chuva ácida), qualquer coisa banal mas que assumia a função de totem. Não está claro se esses líderes representam um vínculo privilegiado com alguma deidade ou se eram a própria deidade encarnada. De todo modo, esses líderes funcionavam como guias: os membros de um mesmo grupo estavam sempre atentos à direção apontada pelo seu líder e ao que ele tinha a dizer.

Havia aquelas pessoas que preferiam andar sozinhas, talvez fossem anarquistas e não quisessem se submeter à relação verticalizada de poder dos grandes grupos. Talvez estivessem fundando novas religiões. Esses vinteunos desgarrados podiam também andar em grupos muito pequenos e sem um líder. Os desgarrados portavam uma caixinha com botões feita de plástico, conectada por um cabo até um dispositivo que unia um ouvido ao outro. O plástico é um material poluente muito comum no século XX d.C., mais uma substância tóxica derivada do petróleo. Felizmente foi proibido. Essas caixinhas enviavam instruções sonoras para aqueles que executavam o ritual sozinhos. Me pergunto se Pompeia não seria um sítio sagrado para se pagar algum tipo de promessa ligada à ideia de caminhar. Porque as pessoas basicamente caminhavam, paravam e prestavam atenção a ruínas sem graça e esculturas de pouco valor artístico. Ainda existem pinturas bastante preservadas do século I d.C. , bem feias na verdade, com cores carregadas: vermelho, azul, amarelo. Pra você ver como gosto é que nem **, não é mesmo? Essas caixinhas plásticas eram distribuídas aos montes logo na entrada da cidade, onde havia uma espécie de guarita com a bandeira de alguns países modernos, indicando que essas instruções eram dadas em línguas hoje incompreensíveis. Era preciso pagar (!!!) para se realizar o ritual. E todos aqueles vinteunos caminhavam sobre a Pompeia do século I d.C., como que buscando alguma espécie de conexão com os seus antepassados…

Em meio às curiosidades sobre os vinteunos, a mais intrigante é que eles todos (sem exceção) portavam consigo um artefato retangular e fino que cabe na palma de uma mão. Boa parte desses artefatos possui a mesma insígnia, uma maçã mordida, numa menção ao pecado original (seria aquele o sítio que os vinteunos achavam ser o Éden?). Tais objetos possuem uma tela de vidro em uma das suas laterais, o lado vitroso sempre voltado para o olho do seu portador. Havia um prazer imenso em sorrir para esse vidrinho, talvez indicando status social. Umas das minhas hipóteses é que, quanto mais você tentasse se mostrar feliz pro vidrinho, mais rico você seria.

Outro hábito obscuro era acoplar este aparelho com tela a uma vara cilíndrica, uma espécie de haste, um pau metálico, dito de forma grosseira. As pessoas estendiam esse pau em alturas diversas, ou às vezes só o estendiam para a frente mesmo. E ofereciam o seu melhor sorriso, sorrindo sozinhos ou em grupos. Gosto de pensar que isso poderia ser um gesto de dedicar a sua felicidade à divindade de sua preferência. Ou isso podia ser alguma prática ligada à virilidade – os vinteunos ainda eram muito apegados ao tamanho do pênis, o que hoje, sabemos, é comuns às sociedades ditas modernas.

Havia um único refeitório para toda Pompeia, onde os vinteunos usavam três utensílios pouco anatômicos e de plástico para se alimentarem. Veja que divertido: um cabinho, no qual as pessoas seguravam, conectado a uma espécie de elipse côncava, um cabinho conectado a quatro ganchinhos para espetar o alimento e um cabinho com pequenas cerdas. Tudo isso vinha embalado numa embalagem plástica transparente. Alguns vinteunos já tinham noção do quanto aquilo era antiquado e preferiam comer com a mão, até porque esses utensílios quebravam bastante.

Os vinteunos guardavam água em vasilhames plásticos, ingerindo as toxinas do plástico sem se preocupar. E bebiam uma substância tóxica que foi banida: o refrigerante. Estudos a partir de vestígios orgânicos e dos dentes dos vinteunos permitem supor que o efeito do refrigerante era uma espécie de barato causado pelo altíssimo teor de açúcares, que ajudava a sorrir para o vidrinho com mais entusiasmo. Entusiasmo, aliás, vem do grego ultrarcaico, que quer dizer “ter um deus dentro de si”.

Havia muito gás no refrigerante. Além de ser indigesto, o propósito era fazer as pessoas emitirem gases do estômago pela boca, algo ruidoso que eles chamavam arroto. O arroto era um elogio em algumas partes da Ásia e, com a dominação asiática desta parte do mundo, o hábito de arrotar em público se difundiu pelo Mediterrâneo.

Será que, por meio dos vidrinhos, as pessoas acreditavam se comunicar com as pessoas mortas do século I.d.C., os nossos ancestrais? Sabia que na América Central as pessoas reservavam um dia para celebrar os mortos? Será que elas conseguiam falar com os mortos olhando para o vidrinho em Pompeia? Eu quero acreditar que sim. Os vinteunos não aceitavam bem a morte. Eles gostavam de ruínas antigas, talvez isso os fizesse pensar sobre a brevidade da vida.

Os vinteunos cultuavam vestígios de corpos e objetos de períodos remotos. E logo eles, paradoxalmente, ficaram congelados no seu melhor ângulo, no seu melhor instante. Eles pareciam estar felizes. O século XXI deve ter sido um século de pessoas felizes. E isso me faz bem.

Depois que tudo o que a humanidade produziu ter sido colocado num sistema de armazenamento chamado Nuvem (veja se dá pra confiar numa coisa chamada nuvem!) e ter sido tudo perdido no fim do século XXI d.C., a tarefa dos arqueólogos ficou muito especulativa. Mas nós tentamos mesmo assim.

Os vinteunos fizeram moldes de gesso – gesso era uma substância fácil de manusear mas muito poluente e que caiu em desuso – que mostram os unos nas mais diversas posições na época da erupção de 79 d.C. Calma, mãe, isso não é triste, porque muitos dos unos morreram serenos. E nós estamos fazendo a mesma coisas com os vinteunos. Os corpos deles se desintegraram com o tempo, deixando buracos entre as camadas de cinzas e destroços. Isso é uma das minhas atividades aqui: supervisionar os aparelhos que injetam uma solução que preenche esses vazios, revelando como os vinteunos estavam no momento da erupção de 2020 d.C.

Talvez Pompeia tenha sido o lugar mais sagrado do Mediterrâneo. O que eles viam através do vidrinho? Porque tantos asiáticos? Daria a minha vida pra saber. Só não mostre pra ninguém o meu relato, ok, mãe? Estou preparando um artigo bombástico. O meu orientador é especialista nos vinteunos e está muito contente com essas hipóteses. Mas tudo tem que ser inédito.

Um beijo enorme pra você, cheio de amor e saudades. Assim que o preço das passagens para Marte baixarem, prometo uma visita. Fico pensando em como você ia gostar de ver os vinteunos, eles são divertidos. Não sei se você já ouviu falar, mas está rolando uma febre nova por aqui que se chama turismo: as pessoas vão até um lugar para conhecê-lo, saber como as pessoas de outros lugares vivem, como são as suas construções, a sua arte. E sobretudo, para adquirir coisas que eles possam levar como recordação. Confesso que tenho preguiça de ir a lugares com muitos turistas. Espero que essa moda seja passageira. Mas eu vou te dar um toque assim que eles liberarem a visitação em Pompeia. Vá juntando milhas, porque aqui tem tudo pra encher de turista.


Diego Mauro é arquiteto e urbanista, ensina no curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Ibirapuera, em São Paulo. Escreve roteiros, contos e outras ficções.

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