Crítica | Visuais


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Study for Isis and Horus, 2011 Photograph- (c) 2012 Jenny Saville, image courtesy Gagosian Gallery
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O plano da pele – Jenny Saville

março de 2018

Edição: 19

A arte na era de sua reprodutibilidade em espelhos pretos:

espelhos estes que de forma infinita reproduzem um mundo de clichês, de mesmas ideias, de polarizações radicais e empobrecidas. Àqueles que não se definem, a pecha de bipolar. Engenho de Dentro no Brasil podia ser nome de genérico de Rivotril, ou mesmo para a mídia na era do espelho preto. O controle é o conformismo e nós dizemos sim a esta comunicação que nos torna o exato imaginário ocidental sobre a China de Mao: corpos iguais, roupas iguais, pensamentos igualíssimos.

A era do espelho preto cria uma demanda patológica nunca antes vista, a de viver por narrativas sociais da imagem – um instantâneo de experiência compartilhada é o que vale. As comidas não têm mais sabor, as ruas não têm mais cheiro: assepsia estética e profilaxia mental. Aqui estamos, condenados a rirmos para fotos assim como fazem as estrelas de Hollywood e seguirmos reproduzindo uma vidinha (de merda) ou a produzir corpos outros que refutem a reprodução e trabalhem com a argila-humano como matéria-prima de um novo pântano.

A pintura na era do espelho preto

Saímos do poente do catolicismo e entramos na programação 24h das tevês pentecostais e das programações sanguinárias do meio-dia que nos convidam a comer carne JBS no almoço. Na era do espelho preto, um calvinismo X foi desenvolvido para este novo estágio capitalista do mundo onde o que conta ponto para a transcendência são as imagens e não o trabalho. Você é o que posta e,  o mais importante: o que consome com os olhos.

A experiência transcendental religiosa da arte – ou a tessitura de narrativas estético-históricas que elevam o cotidiano ordinário a um imortal transcendente – toma dois caminhos na era do espelho preto: o da discussão sobre o papel da obra na contemporaneidade e o da reprodução de um comportamento em massa muito mais implicado no cotidiano da maioria. Estes dois caminhos se hibridizam no momento em que a obra de arte é concebida sob questionamentos acerca da reprodução comportamental dos nossos tempos e em quando a experiência transcendental passa a ser experiência pentecostal “das massas” e está num lugar muito mais implicado com o cotidiano daqueles que a praticam do que as formas clássicas da arte.

Se a arte viva hoje é marketing, por onde vamos vomitar as nossas mentes, senão através do mercado do espelho preto, nossas indisciplinadas, dopaminadas mentes, exprimindo, através das plataformas sociais, os platôs de conceitos publicitários, dos padres de consumo, da fiel operadora de telemarketing sentada a uma mesa de um prédio sujo em Bangladesh, atendendo um #chateado brasileiro e sofrendo de paixão pela morte?  Raise your hands over your heads! O indivíduo estava caminhando às 11 da noite e encontrou um mundo em 4K, que de assalto tomou os seus sentidos. Os atingidos foram todos e a pintura. Qual o sentido da pintura, na era do espelho preto, senão o de criar um outro plano de pensamento e procedimentos que diferenciem o lugar da imagem?

Estamos no crepúsculo artístico of black Friday e no amanhecer do mundo reverso; a prosperidade é a operação de quebrar o clichê, criando, por assim dizer, novas formas revolucionárias, ou que ao menos revirem nossos estômagos. Há hoje uma imensa produção de novas corporalidades na arte e novas formas do humano se modelar no campo. A arte hoje é trans, cyborg, feminista, mas também com chips de testosterona, anabolizada, bombada. Os corpos produzidos na arte acompanham essas modificações tanto na obra quanto na autoria e a publicidade alimenta um imenso mercado de imagem-carne.

O plano da pele

A pintora coroa, fumante e mãe de dois filhos, Jenny Saville, a qual conheci de boca por um amigo, constrói em sua obra gigantescas paisagens da carne, realiza em sua pintura um apanhado de processos de inscrição de memória nos corpos. Nas obras de Saville, a tela é um couro animal manipulado como uma base para inscrição de experiências vividas, especialmente em corpos de mulheres. A pintora promove uma desbiologização da pele com suas pinceladas de pintor de parede. Tratada como figura e fundo, a pele humana transborda os seus contornos, tornando-se base para uma catalogação corpórea da vida contemporânea em rizoma, um patchwork indistinto de carne.

A técnica de Jenny Saville traz questões relevantes no cenário da pintura. A primeira delas é sobre o atual protagonismo da fotografia na concepção do quadro: a submissão da pintura à fidelidade da cópia e a transposição do enquadramento fotográfico à tela. A pintora realiza algumas técnicas diferentes de criação de cena, sempre precedidas de fotos, envolvendo também modelação em argila de partes de corpos de modelos com as quais ela se veste e é fotografada. (Fig) Há um período de suas obras que são somente a prova da boa reprodução técnica em grande escala. Igualmente entediantes são as pinturas que retratam doenças raras, ou seja, a fuga do figurativo pela retratação do real estranho e enfermo. A pintora muitas vezes escolhe um jogo de cena e de luz excessivamente publicitários, que dão às suas figuras um tom maneirista humanoide.

A outra questão relevante é o papel da publicidade na concepção estética e na circulação da obra. Saville entra na cena da arte de salão pela mão de um de seus negociantes mais famosos, o publicitário Charles Saatchi, através de uma exposição pra lá de midiática, a YBA III (Young British Artists III), em 1994,  na  qual  figurou também nomes como os de Damien Hirst, Tracey Emin e Marc Quinn. A pintora abre a exposição com duas obras magníficas, a gigantesca Plan (plano) e Shift , a qual figura uma tapeçaria de pele.

No entanto, foi na etnografia dos processos publicitários impressos nos corpos que a pintora deu seu salto quântico. Patrocinada por Saatchi, Saville fez uma residência artística em uma clínica de cirurgia plástica nos Estados Unidos em 1994 e pôde acompanhar processos cirúrgicos que em muito alteravam a ordinária humanidade dos corpos operados. A partir daí, entronizando uma ética açougueira, os corpos na pintura de Saville passam a não ser corpos, mas sim pura carne a ser manipulada. Os primeiros trabalhos de pois da residência, como a pintura Hybrid, ja configuram uma base para a discussão de conceitos.

Os quadros começam a ilustrar as várias temporalidades e situações das modificações corporais, ora narrando o peso da estética marqueteira nos corpos como na obra Ruben’s Flap, ora hibridando corpos em situações cotidianas que extrapolam seus contornos temporais, como nas pinturas In the realm of the Mothers I e II, criando diálogos sobre o ordinário da vida para com os expectadores, que se reconhecem nos emaranhados de carne das telas. Longe do tempo publicitário do imediatismo, faz 10 anos que a pintora realiza pequenas séries de trabalhos de dois em dois anos, ou somente um trabalho cuja criação dura dois anos, como é o caso do grandioso Fulcrum.

Os mais recentes trabalhos da pintora, como Fulcrum e os estudos sobre Caravaggio, me fazem pensar na divinização da pintura, ou seja, a criação de algo novo: a divindade mãe de seres monstruosos, como no filme Alien. A pintora supera o estranhamento corporal e cria novos seres, coisas não-biológicas, um outro “nós”, tornando o processo de criação de memória coletiva não reprodutivo, mas acumulativo: um plano mnemônico da pele. Nestas obras com as quais é possível criar um plano de conceitos, os quadros não possuem separação de figura e fundo, lembrando a apoteose religiosa multi-corporal de Peter Paul Rubens, como no  Study for Isis and Horus. O procedimento da pintora é antropofagizar os corpos e os transformar em pura mancha. Voice of shuttle, ela estende e coletiviza os contornos das figuras e as converte num belo demônio Legião.

Se na pintura figurativa a pele está restrita aos seus contornos, nas pinturas de Saville, que por via de regra são grandes figuras flutuantes, a pele humana alisa a distinção narrativa de sujeito-objeto. Seus estudos de anatomia conseguem, com pedaços de corpos, de bichos e gente, artificializar, tirar a pele da relação com o orgânico e levá-la para um inorgânico estado de plano conceitual, no qual outros conceitos como beleza, de figuração, marketing, feminino e feminismo o perpassam nos proporcionando outros flancos na guerra contra a mesmice.


Amine Barbuda é editora da Barril, artista visual, arquiteta e urbanista

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