Treta | Cênicas


Parte I – Gestores Públicos

Considerando que a reverberação da crítica na nossa cidade ainda oscila entre o silêncio rancoroso e a histeria biliosa, decidimos escrever este humilde manual dividido em duas partes. Ele deverá ajudar gestores e artistas a portar-se frente a objeto tão estranho. Com esta iniciativa esperamos evitar choques traumáticos, infartos, hemorróidas ou qualquer dessas enfermidades psicossomáticas demasiado frequentes em classe tão vulnerável.

I. Se vossa senhoria é gestor público (federal, estadual ou municipal):

1. A primeira coisa que se deve fazer quando se é um gestor público é entender vosso lugar entre os demais cidadãos. Se vossa senhoria é um gestor público e continua sendo artista, por hora deverá agir como se realmente estivesse ocupando um cargo provisório, a bem dizer, sendo delegado pela sociedade civil a administrar temporariamente certas coisas públicas, neste caso, políticas culturais.

2. Munido desta humildade provisória de burocrata investido de poderes provisórios, deverá prezar pela escuta mais que pela fala, pela consideração mais que pela opinião. Há uma certa etiqueta bastante recomendável e cada vez mais rara, que consiste em tornar vossa figura mais respeitável que intimidadora, mais solícita que provocadora.

3. Cuidado com a emissão de opiniões em lugares públicos. Entendendo que o campo artístico de qualquer lugar é bastante restrito e afeito a fofocas e futricas, lembre-se sempre que as paredes tem ouvidos. Um artista é amigo de outro artista, que é amigo de outro. Quando estiver caminhando por corredores de teatro, bastidores, repartições e oficinas de cenografia, aconselha-se a quietude e, quando irreprimível, emissão de opiniões apenas a pessoas mais próximas, sempre a meia voz, para que outros não escutem. À sociedade não interessa saber o que pensa intimamente um gestor, a não ser quando tal opinião venha traduzida nesta ou naquela ação social.

4. Se houver uma iniciativa crítica na vossa cidade, e ainda mais, se esta for uma das únicas iniciativas críticas na vossa cidade, muito cuidado ao rotulá-la. Se por exemplo vossa senhoria for pego maldizendo algum colunista desta mesma iniciativa por “excessivo intelectualismo”, tal opinião impensada poderá render-lhe alguns problemas. Principalmente porque o que se espera de uma pessoa pública é que seja minimamente afeita à intelectualidade. Deve ser curiosa, estudiosa, pesquisadora, e se possível, sábia; e mesmo que não possua nenhuma dessas qualidades, posar como se as tivesse é mais recomendável que recusá-las como sendo defeito dos outros.

5. Se o gestor público caçoa da intelectualidade alheia pode querer dizer que este indivíduo despreza tal qualidade em si mesmo, o que projetará visões nada agradáveis sobre vosso caráter, e em alguns casos poderá colocar em xeque vossa orientação política frente a opinião popular. Por exemplo, se vossa senhoria, como artista, prefere tal tipo de arte àquela, pode ser que as pessoas comecem a pensar que, como burocrata contratado provisoriamente, esteja usando o cargo para promover vossas próprias convicções estético-políticas, amigos e artistas afins. E se a esta consideração soma-se o ter ouvido falar do vosso desprezo à intelectualidade, pode ser que entendam que vossa senhoria esteja usando o cargo para executar um programa político de regeneração de uma arte caduca, que aliás vossa senhoria deve praticar há muito e de bom grado. E se trabalha para um partido reacionário, deverá triplicar o cuidado — e mesmo assim, nunca será o bastante.

Em breve, “10 dicas de como lidar com a Crítica — Parte II: Artistas”

6. Deve-se fazer um esforço em compreender a importância da crítica em qualquer campo de produção, mesmo que vossa senhoria, intimamente, não goste dela ou nunca tenha lido um livro sequer. Falar de uma iniciativa crítica, ainda mais quando esta é formada por “uma juventude inquieta e provocadora”, exige muito respeito e cuidado.

7. A priori, para uma pessoa pública, toda crítica deverá ser tida como naturalmente boa. Toda crítica deverá ser boa porque todas são iniciativas do pensamento de um povo em dado momento e em dado lugar, além de constituir um dispositivo de fomento e difusão cultural, sendo portanto, fruto direto da própria concepção de cultura, que por sua vez é ou deveria ser objeto do vosso trabalho e pensamento diários.

8. A sociedade civil pode e deve falar tudo e criticar tudo, inclusive a vossa gestão. A opinião é livre para os demais cidadãos, e restrita para um burocrata em cargo representativo. O gestor cultural pode e deve falar apenas algumas coisas, e criticar apenas por meio de ações válidas e visíveis para a sociedade. Suas orientações políticas devem ser claras, de forma a possibilitar debate e embate. Mas não se recomenda que vossa senhoria exponha demais suas opiniões estéticas em redes sociais, pois tal demonstração gratuita de si mesmo só tende a revelar uma egolatria superior à desejada, e preferência de certos gostos em detrimento de outros. Lembrar-se sempre: a egolatria deve ser um luxo reservado apenas aos artistas, que aliás o fazem sempre e de bom grado, com maior ou menor elegância.

9. No entanto, se fermenta em seus interiores uma opinião muito bem formulada e que pense ser de extrema importância para os concidadãos, deverá expressá-la da melhor maneira possível, elegante e — se possível — alegremente, sem nunca fazê-lo por meio de indiretas e provocações. O ressentimento, a arrogância, a prepotência e as indiretas devem ser privilégios optativos, circunscritos apenas a não-burocratas de toda espécie, incluindo aí artistas, e, é claro, críticos.

10. Por fim: se um artista mui considerado por vossa senhoria reclamar da vossa gestão publicamente, de forma que outros escutem o chamado para o debate e compareçam, vossa senhoria deverá comparecer mais escutando que falando, como exposto no ponto 2. Nunca deverá terminar a conversa convidando o artista em questão para uma reunião a portas fechadas — dado que em muitas cidades do nosso país a política de balcão ainda é uma praga difícil de exterminar — o que poderia soar como se vossa senhoria estivesse com nostalgia da época em que tudo se resolvia com um aperto de mãos entre homens cordiais.

Em breve, “10 dicas de como lidar com a Crítica — Parte II: Artistas”

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